Mecanismos de controle e modulação do trabalho nas plataformas digitais

2 de maio de 2025

Rosimeire Ventura Leite Juíza de Direito no Tribunal de Justiça da Paraíba / Professora do Mestrado Profissional da Enfam

Wanessa Mendes Juíza do Trabalho substituta no Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região

Compartilhe:

O avanço das tecnologias de comunicação e informação possibilitou o trabalho em massa conectado por redes de internet, mantendo disponível grande grupo de trabalhadores 24 horas por dia, sem necessidade de instruções diretas sobre horários e forma de prestação de serviços.

Surge novo padrão de ingerência e modulação do comportamento dos trabalhadores, introduzindo técnicas sutis de gerenciamento por meio de programação algorítmica e avaliação reputacional. Esses mecanismos conformam a prestação de serviço nas plataformas digitais, formatando o suposto livre-arbítrio do trabalho, ainda que o trabalhador não perceba que é impelido pelos resultados e pelas avaliações a adequar-se a parâmetros não estabelecidos por ele.

A precificação, a distribuição de tarefas e o disciplinamento da força de trabalho – características da gestão patronal tradicional – dão lugar a formas de controle automatizadas e despersonalizadas, recebidas como sugestões e dicas que disfarçam a voz impositiva do empregador, introduzindo novo patamar de sujeição.

Na era cibernética, a ciência reorganiza o paradigma antigo para afastar-se do arquétipo de sujeição jurídica característico da relação empregatícia tradicional, em favor de um padrão que evita a subsunção aos elementos da relação de emprego, constituindo mais uma das fugas da tutela jurídica do trabalhador.

Múltiplas são as possibilidades de trabalho em plataformas digitais, desde transporte de passageiros, entrega de refeições, serviços de faxina, até contratação de freelancers, tornando impossível defini-las como fenômeno único e dificultando resposta regulatória unificada, embora muitos elementos de controle sejam comuns.

Este artigo, portanto, analisa os mecanismos exercidos pelas plataformas digitais intermediadoras de serviços. Demonstra-se que, por trás do discurso de trabalho com liberdade e independência, existe amplo gerenciamento do trabalho humano, por meio de formas sofisticadas de controle que se valem das redes e dos algoritmos para escapar à regulamentação trabalhista, prejudicando trabalhadores cada vez mais vulneráveis.

Controle por programação, avaliação e incentivos psicológicos – As empresas tecnológicas utilizam “truques psicológicos” para induzir a atuação dos trabalhadores sem necessidade de ordens diretas. Destaca-se o “direcionamento de renda”, no qual o trabalhador informa suas metas financeiras, que servem de base para a plataforma instigar sua atuação. Por meio de alertas constantes sobre essas metas, o trabalhador é incentivado a produzir mais.

Essa técnica, como observa Noam Scheiber (2017), mostra-se eficaz por induzir o prestador a dedicar mais horas ao trabalho. Para quem não informa objetivos, a empresa utiliza o “laço lúdico”, demonstrando o progresso e a proximidade de quantias financeiras, baseando-se em históricos laborais, como motivação.

As plataformas também comparam a performance do próprio prestador, exibindo seu histórico para instigar comportamentos autodesafiadores. Scheiber demonstra que a Uber e outras plataformas utilizam técnicas de videogame, gráficos e recompensas para incentivar mais horas de trabalho, mesmo em locais e tarefas menos lucrativos.

A programação visual e linguística é cuidadosamente arquitetada para criar ambiente convidativo, em que comunicações formais dão lugar a emoticons, gráficos e emblemas que elogiam, monitoram e disciplinam os trabalhadores. Esses recursos de “gamificação” induzem comportamentos, destacando conquistas por meio de emblemas e estrelas no perfil do prestador.

Inspiradas no algoritmo da Netflix, as plataformas implementaram o “despacho antecipado”, disponibilizando novo serviço antes do término da tarefa atual, incentivando o trabalho contínuo ao reduzir tempos de espera.

Quando a oferta de trabalhadores é insuficiente, a plataforma dispara mecanismos de incentivo por meio de preços e áreas dinâmicas, revelando clara interferência nas lógicas de mercado.

A massa crítica de usuários impacta diretamente o modelo, pois as informações coletadas por aplicativos, geolocalização e avaliações subsidiam a gestão do negócio e determinam o sucesso do trabalhador. Maior engajamento significa tarefas mais lucrativas e permanência na plataforma.

Conforme Gustavo Gauthier (2016), ao delegar a avaliação à massa de usuários, as plataformas criam poderosa ferramenta de controle que supera formas tradicionais de ingerência. Os prestadores são observáveis durante toda a execução da tarefa e mesmo fora dela, pois dados de suas atividades são utilizados para formular políticas em tempo real.

Valerio de Stefano (2017) destaca que este controle por avaliação pode suplantar o nível de supervisão das relações empregatícias tradicionais. A competição entre trabalhadores garante qualidade alta apesar de retribuições baixas.

A formação de um “exército de reserva” de trabalhadores assegura o monitoramento constante da qualidade e impõe tarifas reduzidas, enquanto a plataforma mantém suas margens de lucro devido à concorrência entre os próprios trabalhadores.

Alex Rosenblat e Luke Stark (2016) explicam que o controle baseado em algoritmos cria formas de vigilância opacas, com ordens ocultadas, como comandos automatizados. O controle à distância substitui a supervisão direta, monitorando o trabalhador mais intensamente, porém sem intervenção humana visível, desde a aceitação da tarefa até o controle sobre as ferramentas utilizadas.

A programação algorítmica cria infraestrutura invisível de gestão (ALOISI, 2016), na qual aplicações informáticas organizam e supervisionam a força de trabalho similarmente às prerrogativas patronais. Entretanto, esses comandos são frequentemente interpretados por juristas como meras orientações, supostamente incapazes de gerar sujeição jurídica.

O disfarce da ordem como “dicas” e “sugestões” dificulta o reconhecimento das novas formas de gestão algorítmica como modalidade de subordinação jurídica. Tal interpretação é equivocada, pois a programação por comandos não eliminou a interferência sobre o serviço – apenas a despersonalizou, mantendo-a intensamente presente.

O controle por programação substituiu a figura humana supervisora, fazendo que trabalhadores sigam “regras do programa” em vez de ordens explícitas. Uma vez programados, não agem livremente, apenas exprimem reações esperadas (Carelli, 2017).

O algoritmo, reprogramável a qualquer momento, garante resultados esperados sem ordens diretas. A subordinação tradicional cede ao controle por stick (punição) e carrots (premiação): quem segue a programação recebe bonificações, quem não se adapta é penalizado ou excluído.

Essas tendências revelam o poder do capital para desregulamentar relações trabalhistas, comprometendo proteções consolidadas e transformando o trabalho em mero meio de subsistência (Antunes; Braga, 2009).

Em suma, contrariando a retórica de neutralidade, as plataformas digitais controlam, em vários graus, a prestação de serviços por meio de mecanismos sofisticados que dispensam a intervenção humana direta. Controle algorítmico, fiscalização por desempenho e incentivos psicológicos mantêm o trabalhador conectado por mais tempo e moldam seu comportamento para garantir o padrão de qualidade estabelecido, revelando que a propalada liberdade não resiste ao exame sob a perspectiva do Direito do Trabalho.

O sistema de controle por algoritmos e avaliação reputacional, associado aos incentivos comportamentais, constitui nova forma de subordinação jurídica adaptada à era digital. Em vez de ordens diretas, utilizam-se mecanismos indiretos que produzem igual ou maior efeito controlador sobre os trabalhadores.

A ausência de marcos regulatórios específicos para essas relações laborais permite que as plataformas utilizem livremente estratégias psicológicas que seriam questionáveis ou mesmo proibidas em relações de trabalho tradicionais ou nas relações de consumo já regulamentadas.

O discurso de empreendedorismo e autonomia esconde, portanto, realidade de controle sofisticado, na qual trabalhadores assumem riscos sem correspondentes benefícios, enquanto as plataformas mantêm poder decisório sobre aspectos fundamentais da atividade, como preços, alocação de tarefas e padrões de serviço.

Urge, portanto, que o Direito do Trabalho atualize suas categorias conceituais para abranger essas novas realidades, reconhecendo que subordinação jurídica não se manifesta apenas por meio de ordens diretas, mas também por meio de sistemas algorítmicos e reputacionais que, de forma igualmente eficaz, restringem a autonomia do trabalhador e o mantém sob controle da plataforma, em uma relação que, apesar de suas particularidades, conserva a essência da assimetria de poder, característica das relações laborais que o Direito do Trabalho visa proteger.

Conteúdo relacionado:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *