Vale-transporte: possível sua substituição por dinheiro?

30 de junho de 2011

Compartilhe:

I- Preâmbulo
Sob três perspectivas, pelo menos, pode-se visualizar o Vale-Transporte: na primeira, constitui-se inegável e relevante benefício social, para os empregados em geral, que antes do seu advento eram obrigados a suportar integralmente o custeio do seu deslocamento casa-trabalho e vice-versa, anos após anos; na segunda, funciona como incentivo para o transporte de passageiros que passaram a contar com significativo aumento da demanda de passageiros; na terceira, contribui para mitigar o absenteísmo dos empregados, o que, à evidência, beneficia o empregador, até por que os empregados, até positivação desse benefício, eram transportados até a porta do empregador (pessoa física ou jurídica), sem que este arcasse com qualquer parcela desse custeio.

Como tudo adquire significado somente em relação a determinado contexto, é relevante conhecer-se a circunstância histórica, em que a Lei nº 7.418/85 — instituidora do Vale-Transporte — veio a lume, de onde veio o impulso exterior para a sua criação.

Coexistia-se com inflação galopante, em que os salários simplesmente eram corroídos, mormente para a população de baixa renda que não podia se socorrer de aplicação em cadernetas de poupança, chegando-se a ponte de abrir uma por dia, para que o dinheiro não escapasse pelos dedos, como areia.Foi nesse cenário sombrio, em que os assalariados mal tinham dinheiro para alimentação, quanto mais para o seu transporte, que se tornou obrigatório o Vale-Transporte, por força da Lei nº 7.619, de 30 de setembro de 1987, promulgada pelo Presidente Jose Sarney, que também editou o Decreto de execução nº 95.247, de 17 de novembro de 1987.

Já agora pelo menos o empregado passa a contar com o Vale, impresso em papel na maioria das cidades,  destinado ao seu deslocamento para o trabalho e ao seu retorno.
Depreende-se que esta é a occasio legis, sendo o seu fundamento racional a obrigatoriedade de o empregador antecipar o Vale a seu empregado num mês, para a sua consequente utilização  no mês seguinte.

II- Da substituição do vale  por dinheiro

A despeito da regra do art. 5º, do Decreto nº 95.247/87, em sintonia com a disposição contida na Lei nº 7.418/85, diversos empregadores, dentre os quais, estabelecimentos bancários passaram a substituir o Vale-Transporte por dinheiro.

Em julgado do STJ(Recurso Especial nº 194229 – RS (98/0082257-7), o entendimento “(…) o vale-transporte, quando descontado no percentual estabelecido em lei do empregado, não integra salário-de-contribuição para fins de pagamento da previdência social. Situação diversa ocorre quando a empresa não efetua tal desconto, pelo que passa a ser devida a contribuição para a previdência social, porque tal valor passou a integrar a remuneração do trabalhador.”

Em outro julgado do STJ (Recurso Especial nº 806.374 – RJ (2005./0215025-5), o entendimento da sua 2º Turma foi no sentido de “(…) se o auxílio-transporte é pago em pecúnia, e não por meio de vales, como determina a Lei nº 7.418/85, o benefício deve ser incluído no salário de contribuição para efeito de incidência da contribuição previdenciária e do FGTS. Precedentes da Turma.”

Ao se admitir que o Vale-Transporte possa ser concedido, apenas em dinheiro e não pela forma que esse benefício social passou a ter desde o seu advento (papel, cartelas etc.)  —- aqui neste Estado, praticamente apenas em cartão eletrônico —- chega a ser axiomático que muitos empregadores passarão a sonegar esse benefício social aos  empregados com o pagamento em dinheiro, como se fora aumento.

Aliás, essa era a preocupação do autor do projeto de lei, que originou a Lei nº 7.418/85 do Vale-Transporte, o então Deputado Afonso Camargo de conceder o Vale em cartela, papel, ou qualquer outra forma, excluído o dinheiro, pois se assim fosse o Vale-Transporte, como benefício social, seu efeito seria inteiramente nulo.

III-  Da decisão do STF

No recurso extraordinário nº 478.410-São Paulo, que se originou de ação declaratória de inexistência de relação jurídica ajuizada, perante o Juízo da 24ª Vara Federal de São Paulo, pelo UNIBANCO – União de Bancos Brasileiros S.A., em face do INSTITUTO NACIONAL DE SEGURO SOCIAL – INSS, porque esse ente federal questiona o não-recolhimento de  “contribuições devida à Seguridade Social não recolhidas, correspondentes à parcela da empresa, aos segurados empregados, ao Seguro de Acidente de Trabalho – SAT e as destinadas a terceiros: salário-educação e INCRA”, relativo a todas as agências – matriz e filiais – no período de abril de 1989 a agosto de 1998, incidentes sobre “valores pagos pela empresa a seus segurados empregados, a título de  Ajuda Transporte e Vale-Transporte.

O UNIBANCO, segundo o INSS, indevidamente amparado em Convenção Coletiva de Trabalho considerou tais pagamentos como não integrantes da base de cálculo das contribuições supracitadas, em desacordo com a legislação de regência.

Julgado procedente o pedido para declarar a inexistência de relação jurídica entre o UNIBANCO e o INSS relativamente à obrigação de inclusão na base de cálculo das contribuições referidas e como conseqüência a decretar a nulidade das notificações de débitos fiscais , extingui-se o processo a teor da regra contida no art. 269, inc. I, do CPC.
Interposta apelação pelo INSS, o TRF da 3ª Região, em votação unânime, deu provimento à apelação, por entender que “os pagamentos habituais, como é o caso da ajuda transporte e do vale transporte, em dinheiro, integram o salário de contribuição para fins previdenciários (art. 201, § 11 e Lei 8112/91, art. 28,I)”.

Ante essa decisão colegiada, o UNIBANCO interpôs recurso extraordinário nº 478.410 – SP, a invocar a contrariedade dos artigos  5º, do Decreto nº 95.247/87 e 150, inciso I, da Constituição de 1988 e de outros dispositivos.

Essa Excelsa Corte deu, então, provimento a esse recurso excepcional interposto pelo UNIBANCO.

Nesse inconformismo excepcional, o UNIBANCO questiona decisão colegiada do TRF da 3ª Região, a sustentar a incompatibilidade com regras da Constituição de cobrança de contribuição previdenciária sobre o valor pago em dinheiro, a título de Vale-Transporte aos seus empregados.

Segundo a decisão do TRF-3ª Região, “o pagamento do vale-transporte e da ajuda transporte em dinheiro ao empregado, o que é vedado, configura salário e compõe a remuneração, donde é exigível a contribuição previdenciária incidente sobre tal verba.”

Com efeito, a regra do art. 5º, do Decreto nº 95.247/87, que regulamentou a Lei nº 7.418/85, veda de fato a substituição do Vale-Transporte por dinheiro, mas está em sintonia com as regras contidas no art. 4º e 5º, da referida Lei nº 7.418/85.

No voto condutor do acórdão do STF, o Ministro Eros Grau assevera, em fragmento, que “(…) a admitirmos não possa esse benefício ser pago em dinheiro sem que seu caráter seja afetado, estaríamos a relativizar o curso legal da moeda nacional ” (grifou-se).

E prossegue que “(…) a cobrança de contribuição previdenciária sobre o valor pago, em dinheiro, a título de vales-transporte, pelo recorrente aos seus empregados afronta a Constituição, sim, em sua totalidade normativa “ (grifou-se).

Para concluir que “(…) por estas razões, o artigo 5º, do Decreto n. 95.247/87 é absolutamente incompatível com o sistema tributário da Constituição de 1988.’
Embora no acórdão tenha-se entendido que a vedação de substituição do Vale-Transporte por dinheiro (prevista no art. 5º do Decreto nº 95.247/87) é absolutamente incompatível, com o sistema tributário da Constituição de 1988”, essa decisão transcende desse âmbito.

Ainda que se admita que o pagamento em dinheiro, como substituto do Vale-Transporte, não possa se constituir em fato gerador da contribuição previdenciária prevista no art. 201, § 11, da Constituição de 1988, mesmo assim a vedação de substituir o Vale-Transporte por dinheiro tem por objetivo impedir a dissimulação de determinados empregadores, que eventualmente sonegam esse benefício social, estando essa vedação em sintonia com a regra do art. 7º, caput, da Lei Fundamental: “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem a melhoria da condição social;”

Parece que, neste caso, poder-se-ia adotar o mecanismo de controle de constitucionalidade, segundo o qual se declara ilegítima a leitura da norma infraconstitucional em contraste com o princípio normativo contido no art. 5º, inciso XXXV, da Lei Fundamental, preservando-se demais leituras compatíveis com a Constituição.

Como se sabe, trata-se da chamada interpretação conforme a Constituição, em que o órgão jurisdicional declara qual das possíveis interpretações de uma norma legal se revela compatível com a Carta Magna, cabendo notar que o texto do art. 5º, do Decreto nº 95.247/87, há de permanecer íntegro, mas sua aplicação restrita ao sentido declarado pelo STF.

De  se reconhecer a inegável correção do decidido no acórdão e a riqueza e a profundidade da fundamentação do voto condutor da lavra do eminente Ministro Eros Grau.

E isso, no sentido de se evitar que leituras forçadas de trechos isolados e descontextualizados do voto como um todo e do âmbito das considerações, levantadas nos debates havidos possam colocar em risco não apenas o direito subjetivo dos trabalhadores ao vale-transporte —- enquanto benefício específico, que o teor do decidido corretamente visa proteger —- mas, igualmente, o direito objetivo de todos os cidadãos a políticas públicas, consistentes, sobretudo — ou mais diretamente — a de transporte coletivo, haja vista a complexidade da fundamentação apresentada.

Assim, por isso, torna-se necessária a explicitação da relação entre o teor do decidido e a fundamentação do acórdão, o que foi propugnado através do recurso adequado.
Foi, precisamente, para melhor fundamentar a decisão —- contrária ao entendimento predominante nos Tribunais da Justiça Federal —- de que o fato de o  empregado haver percebido o vale-transporte em pecúnia não descaracteriza a natureza jurídica indenizatória e não salarial do benefício.

E, portanto, não tem o condão de ensejar o dever de recolhimento de tributo (contribuição previdenciária) sobre a parcela, ao arrepio do princípio constitucional da legalidade em sua dimensão tributária, que todo o profundo excurso acerca da natureza jurídica, convencional, da moeda, foi empreendido pelo Ministro Relator, para assim bem firmar o conceito de “curso legal da moeda”.

Desse modo, sempre a limitar, expressa ou contextualmente, a argumentação à comprovação do caráter abusivo da pretensão levantada pelo fisco, é que afirma “(…) a admitirmos não possa esse benefício ser pago em dinheiro sem que seu caráter seja afetado, estaríamos a relativizar o curso legal da moeda nacional(grifou-se).

O que relativizaria o curso da moeda seria, exata e precisamente, a hipótese de se admitir a possibilidade da alteração da natureza do benefício, quando pago em pecúnia, porque “(…) a cobrança de contribuição previdenciária sobre o valor pago, em dinheiro, a título de vales-transporte, pelo recorrente aos seus empregados afronta a Constituição, sim, em sua totalidade normativa.

E conclui, rapidamente, no final do voto: “(…) o artigo 5º do Decreto n. 95.247/87 é absolutamente incompatível com o sistema tributário da Constituição de 1988.

Como se vê, toda a fundamentação foi desenvolvida para reforçar a não incidência de tributo, restringindo-se, assim, a incompatibilidade afirmada do artigo 5º do decreto regulamentar  da Lei nº 7.418/85, ao âmbito do princípio da legalidade em sua dimensão especificamente tributária, tal como prefigurado no “sistema tributário da Constituição de 1988”.

Nota-se, assim, que se aplicou,   precisamente, uma interpretação conforme sem redução de texto do art. 5º do Decreto que regulamenta a lei do vale-transporte que encerra o voto do relator quando expressamente afirma “(…) “o artigo 5º do Decreto n. 95.247/87 é absolutamente incompatível com o sistema tributário da Constituição de 1988”.

Contudo, esses mesmos trechos do acórdão poderiam, numa leitura descontextualizada, ensejar o entendimento de que na presente lide se estaria a declarar incidentalmente a inconstitucionalidade tout court do art. 5º do Decreto no. 95.247/87, afastando-se do ordenamento jurídico a vedação de pagamento em pecúnia do benefício do vale-transporte, o que traria, como se observará, consequências desastrosas não somente para o direito subjetivo do trabalhador ao benefício, como para todos os usuários dos sistemas urbanos de transporte coletivo.

Como bem salienta o Ministro Relator, o curso legal da moeda nacional foi fixado pelo Decreto-Lei nº 857/69 e, conquanto o seu art. 2º estabeleça exceções vinculadas a pagamentos típicos em moeda estrangeira, essas não afetam o conceito jurídico próprio de curso legal da moeda, pelo contrário, o delimitam no marco legal.

O referido decreto-lei foi recepcionado, no cabível, como lei ordinária na ordem constitucional de 1988.

Por seu turno, a Lei n º 7.418/85, que instituiu o Vale-Transporte, foi também recepcionada, no mesmo escalão normativo.

Assim dispõem os arts. 4º e 5º da referida lei:

LEI Nº 7.418/DE 16.12.1985
“Art. 4º – A concessão do benefício ora instituído implica a aquisição pelo empregador dos Vales-Transporte necessários aos deslocamentos do trabalhador no percurso residência-trabalho e vice-versa, no serviço de transporte que melhor se adequar.
…………………………………………………………………….
Art. 5º – A empresa operadora do sistema de transporte coletivo público fica obrigada a emitir e a comercializar o Vale-Transporte, ao preço da tarifa vigente, colocando-o à disposição dos empregadores em geral e assumindo os custos dessa obrigação, sem repassá-los para a tarifa dos serviços.”
………………………………………………………………
(grifaram-se)

Como se observa, os artigos ora transcritos instituem um sistema complexo que possibilita o aprimoramento do sistema de transporte coletivo custeado com recursos advindos do empregador, com vista a assegurar não apenas o direito subjetivo do empregado de não arcar com o ônus de seu deslocamento para o trabalho, mas com repercussões públicas que ultrapassam em muito esse mister.

Nessa vertente, desde sua criação nos anos 80 do século passado, o Vale-Transporte se consolidou como uma eficaz garantia de fortalecimento do transporte coletivo nas cidades brasileiras.

Ao canalizar recursos para que os usuários pudessem ter acesso ao serviço, esse relevante benefício social  permitiu a efetivação de uma Política Pública direcionada a garantir a mobilidade da população brasileira, não só daquela que recebe diretamente o benefício, mas de todos os usuários que são beneficiados indiretamente com a melhoria do serviço.

Houve uma melhoria significativa na qualidade dos serviços prestados, que pode ser comprovada, entre outros fatores, pela redução drástica de protestos contra o serviço.

Ao viabilizar a utilização dos sistemas públicos de transporte coletivo, sejam eles oferecidos através de metrô, trens urbanos, ônibus, microônibus,  o Vale-Transporte tem permitido carrear recursos para investimento, manutenção e operação destes sistemas, garantindo que nossas cidades possam desenvolvê-los e viabilizando políticas públicas de redução dos níveis de poluição causados pelos veículos particulares.

Conduzir os recursos dos empregadores diretamente para o sistema de transporte público contribuiu, inclusive, para a maior efetividade das políticas públicas nas áreas de saúde e meio-ambiente, com significativo impacto na melhoria da qualidade de vida nas cidades brasileiras (conf. a pesquisa “Vale-Transporte: 20 anos de história”, publicada em 2005 pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos – NTU – DOC. XII).

A criação de tal sistema complexo, nos artigos transcritos, já contém em si, implicitamente, a vedação que será expressa no Decreto no. 95247/87, que regulamenta a referida lei, nos seguintes termos:

DECRETO Nº 95.247/87
……………………………………………………………..
“Art. 5° É vedado ao empregador substituir o Vale-Transporte por antecipação em dinheiro ou qualquer outra forma de pagamento, ressalvado o disposto no parágrafo único deste artigo.
Parágrafo único. No caso de falta ou insuficiência de estoque de Vale-Transporte, necessário ao atendimento da demanda e ao funcionamento do sistema, o beneficiário será ressarcido pelo empregador, na folha de pagamento imediata, da parcela correspondente, quando tiver efetuado, por conta própria, a despesa para seu deslocamento.”
………………………………………………………………

Tanto é assim que a única ressalva admitida no parágrafo acima transcrito vincula-se à impossibilidade de o empregador cumprir o disposto no art. 4º da lei, em razão de a empresa operadora do sistema de transporte coletivo público não ter realizado a contento a obrigação, a ela atribuída pelo art. 5º da mesma lei, de emitir e comercializar o vale-transporte.

Desse modo, é que, ainda que se considere que tais disposições legais configurem uma limitação ao curso legal da moeda nacional, esta foi fixada em dispositivos legais de mesmo escalão normativo e devidamente regulamentada, pois o dispositivo do decreto simplesmente explicita a vedação já legalmente suposta e requerida como condição de viabilidade do instituído na própria lei.

Por isso mesmo, quando essa vedação já implícita na lei foi expressa pelo artigo 5º do referido Decreto, cumpriu-se aí tão-somente o papel estrito de uma norma regulamentar, que nada de novo acrescentou ao ordenamento jurídico, apenas explicitou o que, já na lei, era uma norma de Direito Positivo necessariamente suposta.

Prova disso é precisamente que o sistema instituído na lei, tal como prefigurado em seus artigos 4º e 5º, restaria completamente frustrado sem a vedação neles necessariamente já implícita e explicitada no art. 5º do decreto regulamentar.

Assim, uma leitura que propugnasse pela inconstitucionalidade tout court do artigo 5º, do decreto regulamentar seria equivocada.

Por, a um só tempo, inviabilizar o sistema instituído na lei corretamente regulamentada e desconhecer precisamente a Constituição, como totalidade normativa que, nos termos do parágrafo segundo do artigo 5º, da Constituição, envolve não apenas os direitos sociais consagrados no art. 7º, como todos aqueles advindos do processo democrático, enquanto vivência institucional da nossa comunidade de princípios, no sentido mais amplo do termo.

O fato de este último aspecto não haver sido sequer abordado em nenhum dos votos, nem nos que alicerçaram o entendimento majoritário, nem nos vencidos, e de que tampouco foi objeto de qualquer menção ou discussão nos debates havidos, vem reforçar o entendimento de que com a frase conclusiva do voto condutor, em que se consubstanciou o acórdão, realizou-se uma interpretação conforme a Constituição, sem redução de texto, do dispositivo regulamentar.

Interpretação conforme referente à inviabilidade, por absoluta incompatibilidade com o sistema tributário nacional, da pretensão da obrigatoriedade de recolhimento de contribuição previdenciária do Vale-Transporte ainda quando percebido pelo empregado em moeda.

Dessa forma, impõe-se ler a última frase do voto condutor à sua melhor luz, ou seja, como realizando a referida interpretação conforme sem redução de texto, no sentido de que assim preserva a integridade do sistema do Vale-Transporte, criado na década de oitenta do século passado, e a manutenção da condição estrutural de sua continuidade, restando plenamente válida a vedação legal expressa no dispositivo regulamentar em questão.

No cerne do decidido, este v. acórdão de nossa Suprema Corte vem contribuir decisivamente para a unificação do entendimento dos tribunais inferiores ao afirmar que o pagamento em moeda do vale-transporte não altera a natureza indenizatória do benefício e que, portanto, não pode constituir fato gerador de arrecadação de contribuição previdenciária.

O Excelso Supremo Tribunal Federal, à luz da Constituição como totalidade normativa, consagra assim o entendimento preponderante do TST acerca da matéria.

São inúmeros os julgados que reconhecem que o Vale-Transporte, ainda quando pago em dinheiro, não possui natureza salarial, mas indenizatória e, que, por isso mesmo, não autorizaria a incidência de contribuição previdenciária (a título de exemplo, os seguintes julgados: TST-AIRR-174240-84_2005_5_01_0245, TST-RR-6900-33_2008_5_12_0010, TST-RR-246200-28_2005_5_02_0066).

Consoante o entendimento acolhido na seara da matéria, o que é determinante para a definição da natureza (salarial ou indenizatória) de um benefício não é a remuneração em espécie ou in natura, mas o seu caráter de contraprestação ou não do trabalho.

Em outras palavras, quando a verba se destina a remunerar o trabalho, ela assume feição salarial, e quando a parcela tiver por objetivo compensar ou prevenir um gasto feito pelo empregado em virtude do trabalho terá ela natureza indenizatória (ou, simplesmente, não-salarial).

E isso porque tradicionalmente a legislação trabalhista atribui natureza salarial a todas as parcelas recebidas pelo empregado e que se destinam a remunerar o trabalho (ou seja, que correspondem a uma contraprestação ao trabalho efetuado).

O pagamento da remuneração pode ocorrer, inclusive, sob a forma das chamadas utilidades, que não são fornecidas em pecúnia, mas, sim, por meio de benefícios ou prestações in natura pelo empregador.

Por outro lado, a mesma legislação retira a natureza salarial da prestação in natura quando ela tiver por objetivo/finalidade viabilizar a própria prestação dos serviços ou quando se destina a evitar/compensar um gasto feito pelo empregado em virtude do trabalho. Seguindo o mesmo critério, afirma a Súmula n. 367, I, do TST que “a habitação, a energia elétrica e veículo fornecidos pelo empregador ao empregado, quando indispensáveis para a realização do trabalho, não têm natureza salarial (…)“.

A natureza salarial também é excluída quando o legislador objetiva incentivar a empresa a fornecer certos benefícios; assim ocorre com a educação fornecida pelo empregador, cuja natureza salarial é afastada pelo inciso II do § 2º do art. 458 da CLT.

Assim, pode-se compreender o profundo enraizamento no campo do Direito do Trabalho do entendimento de que o Vale-Transporte – cuja finalidade é prevenir o gasto do empregado com o deslocamento até o trabalho e o seu retorno a casa – possui natureza indenizatória e não salarial.

O fato de ser fornecido em pecúnia não altera sua natureza indenizatória. O que importa é o fato de que o Vale-Transporte não tem por objetivo remunerar o trabalho.

E a lei expressamente reconhece isso. O art. 2º da Lei nº 7.418/1985 dispõe que o vale-transporte “não tem natureza salarial, nem se incorpora à remuneração para quaisquer efeitos” (alínea “a”) e “não constitui base de incidência de contribuição previdenciária ou de Fundo de Garantia do Tempo de Serviço” (alínea “b”).

O Decreto nº 95.247/1987, a seu turno, repete isso no art. 6º, da Lei nº 8.212/1991 – que trata do custeio dos benefícios da Previdência Social – expressamente exclui da incidência da contribuição previdenciária a parcela recebida a título de vale-transporte (art. 28, I e § 9º, “f”).

IV- Da conclusão

O Vale-Transporte é direito social que se extrai do dispositivo contido no art. 7º, última parte, da Constituição de 1988.

Decerto o pagamento em dinheiro, como substituto do Vale-Transporte, não pode  constituir-se em fato gerador da contribuição previdenciária prevista no art. 201, § 11, da Constituição de 1988.

Mas nem por isso a vedação de substituir o Vale-Transporte por dinheiro, que tem por objetivo impedir a dissimulação de determinados empregadores, que eventualmente sonegam esse benefício social, estando essa vedação em sintonia com a regra do art. 7º, caput, da Lei Fundamental: “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem a melhoria da condição social, pode ser considerado inconstitucional nessa leitura.

A forma de se preservar a regra do art. 4º, da Lei nº 7.418/87 e do art. 5º, do Decreto nº 95.247/87 é a de que  ao se proceder ao exame de inconstitucionalidade das normas investigam-se os vários sentidos que compõem os significados desses dispositivos.

Assim, declarar-se-ia, de modo  a não se mexer no texto, a inconstitucionalidade daqueles incompatíveis com a Constituição Federal, como o sentido de que o pagamento em dinheiro pudesse se constituir fato gerador da contribuição previdenciária prevista no art. 201, § 11, da Constituição de 1988, sendo nula a norma que extraísse com esse sentido.

Mas, por outro lado, declarar-se-ia constitucional a  vedação da substituição do Vale por dinheiro, preconizada nos referidos dispositivos (art. 4º, da Lei nº 7.418/87 e do art. 5º, do Decreto nº 95.247/87), pois compatível com Constituição da República (art. 7º, última parte), preservando-se esse instituto no seu aspecto mais relevante: o social.