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União estável e serviço público

5 de outubro de 2003

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Vivemos nós, durante muitos anos, em perfeita harmonia. No começo, éramos simplesmente chamados, acolhidos, festejados, trazíamos o nosso capital, o nosso investimento, o primeiro veículo. E assim “casávamos”. Em geral, nenhum papel era entre nós firmado. Nunca cuidamos dessas superficialidades. Muito antes de se proclamar, no direito de família, a união estável, já havíamos descoberto a fórmula da associação de esforços para a realização de fins coletivos no serviço público. E vos falo da união estável informal que havia entre o sistema de ônibus, dos tempos do pioneirismo até sua consolidação, e o poder público.

Naquela época primitiva, pessoas que tinham no espírito a vocação de servir, encontravam um campo de desafios em estradas inexistentes, ruas inacabadas, atoleiros, dificuldades, tecnologia incipiente de transporte. Bandeirantes modernos, não conhecíamos regulamentos e foi assim que construímos uma parcela do serviço público que acabou tenho reconhecimento constitucional em 5 de outubro de 1998, quando a Constituição democrática, em nome do povo brasileiro, proclamou que éramos um serviço essencial. Já naquela época, penso que transportávamos mais de trinta milhões de pessoas por dia somente nos sistemas urbanos. As cidades cresceram sobre nossas rodas. Os empregos foram gerados dentro dos nossos ônibus. Os filhos dos trabalhadores chegaram às escolas porque nós existíamos. Saúde e Lazer, todos esses bens que constituem objetivos do destino individual das pessoas, se tornaram concretos graças ao formidável investimento em que se transformou o trabalho dos pioneiros nessa atividade de mediação da liberdade das pessoas. Atividade de libertação. Sem nós, até o futebol nosso de cada domingo seria uma paixão platônica.

Hoje, apesar de sermos responsáveis pelo transporte diário de sessenta milhões de pessoas, por dia, nas cidades brasileiras e mais de 90% dos passageiros que se deslocam em meios de transporte no País, hoje,  lamentavelmente, essa união estável terminou. Vivemos, agora, o momento da união instável. Há, contra o sistema de permissões de ônibus, uma pregação demolidora.  Boa parte da ação do Ministério Público, tal como consta de seu Programa de Ação, consiste em apontar o dedo acusador contra a nossa (ex) união estável com o poder público, tacando-a de ferir a moralidade administrativa e uma das razões apontadas é a perenidade dessa relação de muitos anos.

Diante disso, muitas cidades e Estados brasileiros, para aplacar essa onda de equivocado moralismo, editaram leis que conferiram alguma estabilidade ao nosso setor, já em si abalado por uma onda de gratuidades, de assaltos, de queima de ônibus. Mas nada disso aplacou a fúria ministerial: ações de inconstitucionalidade começaram a ser produzidas em massa contra as chamadas prorrogações das permissões, a par de ações civis públicas para obrigar a administração pública a licitar serviços existentes anteriores à Constituição de 1988. Quanto à ação do crime organizado contra os ônibus, nada de concreto foi feito. Ninguém nos indenizou. Nenhum incendiário foi processado, preso ou condenado. A tese do Ministério Público, quanto à imoralidade da nossa permanência “apesar de tudo”, não resiste a um mergulho mais profundo, porque, em verdade, as funções públicas, por serem, necessariamente continuas, são incompatíveis com pessoas temporárias, sejam elas físicas ou jurídicas. Na função pública, tanto o servidor como as pessoas jurídicas prestadoras de serviço delegado pelo estado devem, no mínimo, ser protegidos por um guarda-chuva chamado estabilidade. Especialmente contra intempéries do poder político. O ministério Público, por exemplo, é armado com um escudo de proteção denominado vitaliciedade. Grande parte das suas importantes funções não teria como ser exercidas se ele tivesse de submeter-se a concurso público de dez em dez anos. Atividade permanente, também essencial, um ministério público temporário, concursável de tempos em tempos,  seria uma contradição com a essencialidade de sua atividade. Essa proteção é tão forte, no servidor público, que se estende `a aposentadoria, com a garantia de vencimentos compatíveis. Até depois da morte do servidor, o Estado amplia seu manto paternal através da pensão. Cada servidor que morre gera dois outros, o pensionista e substituto. No caso do Ministério Público, cada  promotor gera dois. Nada contra. Todos nós trabalhamos e pagamos impostos para que essa proteção tenha recursos orçamentários para ser sustentada. E  não somos contra porque subscrevemos a tese de que o serviço público,  contínuo e essencial, deve ser necessariamente estável e protegido, mas isso nos inclui, nós a s prestadoras de serviços essenciais por ônibus. Queremos, todos, a mesma coisa: estabilidade, segurança jurídica, certeza para investir. Por que, então, essa guerra contra as prestadoras de serviço público, exatamente querendo que elas sejam empresas temporárias, subordinadas a  licitações periódicas?

Há um dogma novo na religião do direito, chamado princípio da licitação. No seu altar, o Ministério Público pede o sacrifício das permissões de ônibus e a cabeça dos empresários. Antes disso, éramos convidados, solicitados, instalados para converter nosso investimento privado em investimento público e nos atiramos nesse projeto social por atração do  desconhecido e pelo espírito desbravador da atividade. Está certo que, depois de 1988, as portas da legitimidade passaram a ser as da licitação. Mas quem ingressou no serviço público antes de 1988 não pode ser, agora, acusado, de infração as leis da moralidade administrativa que ainda hoje não estão claramente definidas. Quem entrou depois, sem a licitação, causou mal e o casamento pode ser desfeito. Mas as uniões estáveis que estão sendo perseguidas, anteriores à Carta cidadã, essas tem sua legitimidade comprovada exatamente pela perenidade, por terem chegado até aqui, por terem contribuído para o crescimento deste extraordinário País. Não podemos, assim, ser vítimas pra o crescimento deste extraordinário País. Não podemos, assim, ser vítimas, além do crime organizado com assaltos e destruição do nosso patrimônio, também vítimas do Estado organizado em Ministério Público e em Juízes a  acusar e julgar nossa legitimidade como imoral e nossa permanência no serviço  público como infração à regra da licitação, que não era exigida quando fomos chamados. Queremos, simplesmente, que nossa antiga união estável seja valorizada pela sua proclamada essencialidade, mesmo em tempos de culto à formalidade.