Edição 296
Seminário debate desafios e perspectivas das Agências Reguladoras no Brasil
10 de abril de 2025
Da Redação

A abertura do seminário contou com a participação (da esquerda para a direita): do ministro Luiz Fux (STF), do ministro Gurgel de Faria (STJ), do presidente do TCU, ministro Vital do Rêgo, e da presidenta da OAB/RJ, Ana Tereza Basilio
Evento reuniu magistrados de tribunais superiores, diretores de agências reguladoras e especialistas para discutir a atuação das agências e o papel do Poder Judiciário no controle de atos regulatórios
A Revista Justiça & Cidadania realizou, em março, no Rio de Janeiro, o seminário “Caminhos regulatórios: desafios e perspectivas no sistema brasileiro”, para debater a atuação das agências reguladoras e o papel do Judiciário no controle, na revisão e nos atos das agências.
Em palestra magna, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux defendeu que a legislação não deve engessar o pensamento jurídico e que os magistrados devem estabelecer precedentes que garantam segurança jurídica, especialmente nas áreas reguladas.
Segundo Fux, as agências reguladoras traduzem tecnicamente o que a lei define de forma abstrata, sendo essenciais para a previsibilidade e o equilíbrio risco-retorno nos investimentos. Ele destacou a importância de proteger essas instituições da ingerência política, garantindo a autonomia, a estrutura e a independência. Também defendeu que o Judiciário adote postura deferente diante do conhecimento técnico das agências. “As agências reguladoras utilizam a expertise para especificar, no direito, aquilo que o legislador não tem experiência técnica para fazê-lo. Por isso, a agência reguladora é um organismo coexistencial da justiça e do próprio Direito. É preciso prestigiar as agências reguladoras e a qualificação técnica.”
A presidenta da OAB/RJ, Ana Tereza Basilio, também participou da abertura e destacou a importância de reforçar e prestigiar a atuação das agências reguladoras. “O Brasil precisa muito mais de projetos de Estado do que de governo. As agências técnicas são a alma dos setores econômicos: asseguram a segurança jurídica das contratações e fornecem subsídios ao Judiciário em julgamentos de direito regulatório.”
Desafios das agências – Na sequência, o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), ministro Vital do Rêgo Filho, concentrou a apresentação nos desafios do setor, como a autonomia administrativa limitada das agências, o baixo orçamento e a influência política em indicações de servidores.
Segundo o presidente do TCU, é fundamental aproximar os tribunais e o cidadão comum para garantir a transparência das decisões e a proteção dos direitos constitucionais. O ministro também abordou a falta de fiscalização pelas agências como problema que afeta a sociedade civil e os setores econômicos, citando, como exemplo, o rompimento da barragem de Brumadinho (MG), em 2019.
“A ausência de fiscalização expõe toda a sociedade. Há riscos ambientais, econômicos e sociais gravíssimos. Nesse contexto desafiador, o cidadão torna-se o elo mais fraco da cadeia regulatória.”
O papel das agências reguladoras – No primeiro painel do seminário, presidido pelo ministro Ribeiro Dantas (STJ), o coordenador do evento, ministro Gurgel de Faria (STJ), apresentou o panorama histórico das agências reguladoras no Brasil, a partir da elaboração do Programa Nacional de Desestatização, em 1990, e da criação da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), em 1996, a primeira agência reguladora brasileira.
Segundo Gurgel, as agências surgem com o papel de fiscalizar determinado setor econômico e proteger o consumidor. Gurgel também citou três momentos de crise em setores estratégicos da economia que serviram de aprendizado para as agências reguladoras, como a crise hídrica de 2001; o acidente da companhia aérea Gol, em 2006; e a crise na telefonia, em 2012.
Ele também falou sobre o controle judicial dos atos regulatórios e destacou que o Poder Judiciário deve pautar-se pelo princípio da autocontenção. “Na realidade, o magistrado tem de partir da ideia da autocontenção. Porque nós estamos diante de agências reguladoras que têm quadros técnicos específicos e que conhecem melhor aquela matéria”, concluiu.
Na sequência, a diretora da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), Flávia Takafashi, abordou a importância da prevenção de riscos feita pelas agências e do mérito regulatório das decisões normativas. “As agências têm um rito necessário de audiência e de consulta pública, além de vários momentos de discussão com o mercado regulado, porque só faz sentido fazer uma regulação se ela cumprir o objetivo dela, que é a promoção de um mercado mais eficiente e competitivo, com a atração de novos investimentos.”
A consultora jurídica do Ministério de Portos e Aeroportos, Camilla Soares, concentrou a apresentação no papel das agências reguladoras nas concessões federais de serviço ou ativo público à iniciativa privada. Camilla destacou a importância de separar as funções do Poder Executivo e da agência reguladora nos processos de concessão. “Cabe ao Ministério a formulação de política pública que vai mudar de acordo com o governo eleito. E isso faz parte do processo democrático. No entanto, os contratos de concessão são de longo prazo, com vultosos investimentos. O investidor precisa de segurança jurídica, sem ser surpreendido com mudanças no contrato. A agência reguladora vem trazer essa estabilidade ante a mudança democrática, de visões diferentes de governo.”
O co-coordenador do Comitê de Regulação de Portos da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RJ), Pedro Neiva, abordou a influência do modelo das agências reguladoras norte-americanas nas instituições brasileiras. Segundo Neiva, o modelo dos EUA surge no contexto de forte intervenção estatal, característico do período do New Deal do governo Franklin Roosevelt.
“Já no Brasil, o contexto histórico é do Plano de Desestatização, o que o distingue em relação ao contexto americano. No Brasil, o que era almejado era o enfraquecimento do estado pela impossibilidade de ocorrer investimentos em infraestrutura pública, focando, assim, na transferência para a iniciativa privada. As agências reguladoras, em ambos os casos antagônicos, foram necessárias. Acho que isso prova, historicamente, a relevância dessas instituições.”
Controle judicial da regulação – No segundo painel do dia, o ministro Afrânio Vilela (STJ) apresentou a perspectiva da magistratura no contexto do controle judicial dos atos regulatórios e defendeu que o juiz deve garantir a previsibilidade e a segurança jurídica.
“Acredito que as agências reguladoras deviam ser, efetivamente, uma parte amiga do julgador. Um único posicionamento da administração serve para definir o que o Estado pensa sobre aquele assunto, e isso vai ajudar o investimento, porque o investidor quer essa segurança e essa previsibilidade de nós do Judiciário.”
O coordenador do seminário, desembargador federal Newton Ramos do Tribunal Regional Federal da 1a Região (TRF-1), também participou do painel. Ele afirmou que o controle judicial da regulação integra contexto mais amplo: a excessiva judicialização. Segundo Ramos, o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional intensifica essa prática no Brasil. “Em razão de uma vocação própria do Poder Judiciário brasileiro, que decorre de expressa previsão constitucional, nós temos esse perfil de que os tribunais brasileiros precisam decidir absolutamente sobre tudo. Há, no Brasil, em razão de fatos históricos, certa desconfiança cultural em relação à autoridade administrativa. Há uma compreensão na sociedade de que o juiz decide melhor que um técnico e obviamente essa é uma compreensão equivocada.”
O desembargador defendeu ainda que o magistrado precisa ter cuidado com as decisões no controle procedimental dos atos das agências reguladoras. “Acho que uma palavra que precisa ser sempre exercida no âmbito do Poder Judiciário, especialmente no controle dos atos das agências, é a prudência. O juiz precisa estar sempre com o olhar voltado para as consequências econômicas e sociais da decisão, aquilo que ultrapassa a questão do processo em si.”
Na sequência, o diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Sandoval Feitosa, ressaltou a importância do trabalho da agência na regulação do setor elétrico, tendo em vista o alto grau de universalização do serviço e a vinculação direta com a vida do cidadão e com o setor econômico.
Feitosa também citou os três principais cenários de controle judicial dos atos regulatórios no contexto brasileiro: autocontenção extrema do Judiciário, intenso ativismo judicial e prudência no controle jurisdicional. “Entre tais possibilidades, entendo que a solução que melhor se ajusta aos parâmetros é a solução intermediária, pois ela evita o risco do ativismo judicial disfuncional. O juiz não deve atuar como se regulador fosse, pois não domina a melhor técnica, nem dispõe dos recursos e informações à disposição do regulador.”
A juíza auxiliar da Presidência do Tribunal Regional Federal da 1a Região (TRF-1) Clara Mota concentrou a apresentação na necessidade de regulação por parte das agências na venda de alimentos ultraprocessados e a na relação com a litigância consumerista e o direito à saúde, tema que começa a ganhar importância nos EUA.
“Nesse litígio que acabou de ser ajuizado nos Estados Unidos, alega-se que esses alimentos ultraprocessados têm a adição de componentes que são viciantes e que as empresas sabem dos malefícios que esse tipo de alimento pode causar e ocultaram isso, fazendo uma publicidade massiva e voltada, sobretudo, ao público infantil”.
O advogado Luis Felipe Salomão Filho abordou a evolução da atuação do Poder Judiciário no controle sobre a regulação das agências. Em sua exposição, citou exemplos relevantes de precedentes dos tribunais superiores quanto ao controle judicial, destacando especialmente o caso da Ação Direta de Inconstitucionalidade no 4874, julgada pelo Supremo Tribunal Federal. Esse julgamento, segundo ele, foi fortemente influenciado pela Doutrina Chevron, oriunda da jurisprudência norte-americana, e que estabeleceu que não cabe ao Poder Judiciário, ao exercer o controle jurisdicional sobre a interpretação adotada por uma agência reguladora acerca do próprio estatuto legal, simplesmente substituir essa interpretação pela própria interpretação da lei.
Segundo Salomão Filho, o controle judicial dos atos regulatórios tem mudado nos últimos anos, com o Poder Judiciário mantendo a deferência pelas decisões das agências reguladoras, mas atuando em casos de maior impacto social e econômico.
“Para onde vamos? Esse é o tema do nosso painel – e me parece que já vivemos um período em que o Judiciário demonstrava grande deferência. Os magistrados agiam com muita cautela e evitavam adentrar o âmbito de certas decisões das agências, em razão da especialização dessas instituições, do corpo técnico qualificado e da experiência acumulada em inúmeros outros casos. Ocorre que esse cenário vem se modificando de tal maneira que, embora ainda com a devida cautela, o Judiciário passa a exercer, cada vez mais, um juízo de mérito sobre decisões relevantes das agências reguladoras.”
Regulação e controle externo – Presidido pelo vice-presidente do Tribunal Regional Federal da 2a Região, desembargador federal Aluisio Mendes, o terceiro painel do seminário contou com a participação do ministro Paulo Sérgio Domingues (STJ) que destacou que o Poder Judiciário “tem grande deferência pela atuação das agências reguladoras”. No entanto, o ministro ressaltou que é inevitável que aconteçam situações de conflitos em que o Judiciário seja chamado a agir. Domingues defendeu, também, a cooperação entre as agências reguladoras para garantir maior segurança jurídica.
“É absolutamente necessário que se tenha uma convivência sadia e adequada entre esses órgãos que, em última análise, buscam uma regulação mais eficiente dos mercados.”
O presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Alexandre Cordeiro afirmou que a independência das agências, está inserida dentro do contexto constitucional do Estado brasileiro, que possui freios e contrapesos. Segundo Cordeiro, o principal objetivo do Cade, nesse cenário, é cooperar com as agências reguladoras, a fim de definir o limite correto do controle externo, preservando o menor custo possível para a concorrência.
“O limite de controle externo é o mesmo problema que a gente tem com a intervenção mínima do Estado. O mercado precisa de transparência e de previsibilidade. E quando se decide regular o mercado, porque o Estado brasileiro julgou que aquele setor tem uma importância ímpar para a sociedade, o maior desafio é acertar o limite exato e o ponto de equilíbrio da regulação.”
A advogada Roberta Negrão, que atuou como subprocuradora-geral da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) de 2020 a 2024, afirmou que a Constituição Federal de 1988 determinou que a regulação das agências tem como objetivo garantir prestações materiais para viabilizar direitos fundamentais. “A despeito de toda a construção robusta e teórica que está por trás da regulação para suprir falha de mercado, temos que pensar a regulação como uma tecnologia jurídica para viabilizar direitos fundamentais.”
Encerramento – O coordenador do seminário, ministro Gurgel de Faria, encerrou o evento chamando a atenção para a importância do tema para o desenvolvimento econômico do Brasil. “O tema das agências reguladoras está ligado ao desenvolvimento do país e precisamos ter esse tipo de debate, com a participação de integrantes da magistratura, das agências reguladoras e de pessoas com expertise na área.”
O seminário foi organizado com o apoio da Associação dos Juízes Federais do Brasil, da Associação dos Juízes Federais do Rio de Janeiro e do Espírito Santo e da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.