
Meio ambiente, saúde, geopolítica, economia e Inteligência Artificial foram os temas desta edição histórica
Realizado nos dias 30 de junho e 1o de julho de 2025, o Seminário de Verão alcançou marco histórico. O evento, que acontece anualmente na Universidade de Coimbra (UC), em Portugal, chegou à sua 30a edição. O tema escolhido para este ano foi “Descortinando o futuro: 30 anos de debates jurídicos”, em torno do qual magistrados brasileiros e acadêmicos daquela instituição puderam debater aspectos diversos que afetem os direitos humanos e demais questões sociais, como meio ambiente, revolução digital, economia e geopolítica.
O seminário foi aberto oficialmente por João Nuno Calvão da Silva, vice-reitor da UC. “Estamos aqui para falar dos problemas que mais afetam a humanidade. E começamos, invariavelmente, por dizer que continua a existir um fosso inaceitável entre pobres e ricos. As desigualdades socioeconômicas continuam a corroer crescentemente a democracia. É importante que, desses debates, surjam pistas que iluminem os caminhos para salvaguardar a democracia representativa”, declarou.
Organizadora do evento, a vice-presidente do Instituto de Pesquisa e Estudos Jurídicos Avançados (Ipeja), Cristiane Frota, fez menção à primeira edição do evento, em 1992, que surgiu com a proposta de globalizar o debate sobre temas mundialmente relevantes nas áreas das ciências jurídicas e sociais. “Passou, então, a ser realizado anualmente e consagrou-se como o mais importante ambiente de debates e temas relacionados ao direito. Nesses 30 anos, o Seminário recebeu as maiores autoridades e pensadores de diferentes áreas, promovendo troca de ideias, informações, experiências e profunda reflexão para o aprimoramento do pensamento sociojurídico”.
Participaram, também, da mesa de abertura Jónatas Machado, diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC); Manuel Carlos Lopes Porto, presidente Associação de Estudos Europeus de Coimbra (AEEC); e Rubens Lopes da Cruz, presidente do Ipeja.
A sessão inaugural foi moderada pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) João Otávio de Noronha e apresentada pelo ministro presidente do STF Luís Roberto Barroso, que fez reflexões sobre cada um dos tópicos que fizeram parte da programação do evento: dignidade climática, revolução digital, saúde, economia e mudanças geopolíticas mundiais. Ele começou abordando as mudanças climáticas e apontou que estas vêm sendo tratadas “com algum grau de negligência” devido a três grandes dificuldades em lidar com essa questão, sendo a primeira persistente negacionismo, que ignora alertas dos cientistas. “A segunda é o fato de as emissões de carbono feitas hoje só produzirem impactos daqui a 25 e 50 anos, de modo que não há incentivos políticos para a tomada de atitudes necessárias. E a terceira dificuldade é que só se enfrenta a mudança climática com acordos globais”, disse o ministro.
Sobre o tema da revolução digital, Barroso colocou foco não apenas nos aspectos positivos, mas frisou as consequências negativas, como a circulação sem filtro das informações: “Se abriram avenidas para a desinformação, para as mentiras deliberadas, para os discursos de ódio, para o assassinato de reputações e para as teorias conspiratórias”, declarou. Quanto ao da saúde, o ministro disse ser este um dos assuntos mais delicados e mais difíceis que existem no direito brasileiro. Também evidenciou o que definiu como assimetrias competitivas que geram privilégios no âmbito dos tributos, ao abordar o tema de economia e sociedade. E concluiu ressaltando aspectos do tema das mudanças geopolíticas, como a “erosão democrática em diferentes partes do mundo, uma vez que a democracia não entregou todas as suas promessas de prosperidade, igualdade e oportunidades para todos”.
Palestra de abertura – Com moderação do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Mauro Campbell Marques, a palestra de abertura teve destaque com a participação do ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski. Segundo este,no Brasil, estamos caminhando bastante para fazermos a nossa parte na proteção ambiental. “Reiniciamos a demarcação das terras indígenas que estavam paradas desde 2016 e logramos demarcar 11 territórios. Conseguimos levar ao presidente da República 34 homologações após esse processo. Por meio de decreto, essas terras estão demarcadas da maneira irreversível”, informou. No âmbito da geopolítica, o ministro declarou que “hoje temos regimes autoritários de todos os matizes, e que, em geral, são liberais na economia, mas rigorosos no que diz respeito à imposição da ordem pública ou da ordem social”, disse.
O presidente da AEEC, Manuel Carlos Lopes Porto, também focou sua apresentação nos aspectos da geopolítica, enfatizando o protecionismo, os problemas da imigração e a impostição de tarifas pelo governo estadunidense.
Dignidade climática – Dando início à segunda sessão do seminário, o tema “Dignidade climática” foi moderado pelo ex-presidente da República Michel Temer. A professora da FDUC, Alexandra Aragão, destacou que oconceito de “dignidade climática surge e justifica-se pelo fato de estarmos em um estado de emergência climática, declarado formalmente em 31 de dezembro de 2021, quando se deu a aprovação da Lei do Clima”, informou ela, sobre a Lei de Bases do Clima em Portugal.
O ministro do STJ Luiz Alberto Gurgel de Faria trouxe seu ponto de vista da perspectiva da reforma tributária, que incluiu diversos dispositivos especificamente traçados e voltados para a questão do meio ambiente. Ele citou como exemplo as concessões de incentivos regionais de acordo com a adoção de diretrizes sustentáveis e a busca pela redução das emissões de carbono.
Para o ministro Rogério Schietti, do STJ, a crise ambiental “exige novas abordagens” e “a dignidade climática deve ser multidisciplinar, multidimensional e inclusiva para atrair para dentro desse conceito todos os demais biomas”, uma vez que o princípio deste conceito defende que “proteger a vida como um todo é proteger a humanidade”. O ministroAndré Mendonça,do STF, falou sobre dignidade climática a partir da perspectiva darealidade brasileira, em particular, com a apresentação de números nacionais relativos a atendimento em saúde pública, saneamento básico e pavimentação urbana. Segundo ele, para trazer dignidade climática ao Brasil, é necessário antes buscar soluções para as desigualdades e carências existentes em diferentes regiões do país.
Revolução digital – Moderada por André Dias Pereira, coordenador do Centro de Direito Biomédico da FDUC, a terceira sessão abordou a “Revolução digital: entre progresso e retrocesso”. O ministro do STJ, Paulo Moura Ribeiro destacou que o STJ vem trabalhando fortemente para que as ferramentas de Inteligência Artificial (IA) contribuam para melhorar a vida do jurisdicionado, de modo que a prioridade seja sempre a proteção da dignidade do ser humano, a justiça, a equidade e o respeito à vida privada. A professora Susana Aires de Sousa, da FDUC, apontou que, “para minimizarmos os riscos da IA, a educação e a literacia digital do cidadãos é o primeiro passo para preparar as pessoas para compreenderem que não podem acreditar em toda a informação que chega por meio das redes sociais”.
Um abordagem da perspectiva do direito penal foi feita pelo ministroSebastião Reis Júnior, do STJ, ao apresentar panorama geral dos crimes que são cometidos no meio digital, evidenciando adificuldade que é combatê-los. “A criminalidade não tem limites nem barreiras. E o estado está preso a amarras, a uma legislação muitas vezes ultrapassada. Quando se fala em cibercrime, são coisas completamente novas e isso exige, do estado, atuação mais efetiva.”
Para o ministroHumberto Martins, do STJ,a IA pode ser utilizada para o bem ou para o mal, e essa escolha é feita senão pelo ser humano, que tem a sensibilidade para tomar decisões éticas. “O uso da IA, no Poder Judiciário brasileiro, tem seguido várias diretrizes firmadas pelo Conselho Nacional de Justiça”, disse, destacando a Resolução 615, de 11 de março de 2025, que estabelece diretrizes para o desenvolvimento, a utilização e a governança de soluções desenvolvidas com recursos de IA no Poder Judiciário.
Economia e Sociedade – A 4a sessão do primeiro dia de seminário teve como tema “Entre o direito, a economia e a sociedade” e foi moderada pelo ministro do STJ Luis Felipe Salomão. O ministro do STJ Ricardo Villa Bôas Cuevadestacou que o tema ébastante amplo, o que lhe permitiu abordar a perspectiva do novo papel que o Judiciário tem desempenhado nas últimas décadas, em razão da complexidade normativa crescente, e das mudanças econômicas, sociais e tecnológicas que temos vivido não apenas no Brasil, mas no mundo todo. “O Judiciário tem se consolidado como um poder capaz de garantir a continuidade democrática e de, ao mesmo tempo, garantir atividade quase normativa, que tem sido relevante para que, em certas circunstâncias em que há omissão do parlamento, não haja uma descontinuidade da atividade regulatória, por assim dizer”, disse.
A professora Dulce Lopes, daFDUC, focou sua apresentação no tema da habitação. Começou por declarar que o estado tem sido acionado cada vez mais nessa área nos últimos anos. “O estado passou a ter uma função de provisão mínima na habitação para pessoas de baixa renda”, disse, também frisando a problemática dos movimentos migratórios de trabalhadores para Portugal.
O ministro do STJ José Afrânio Vilela apresentou alguns casos concretos para correlacioná-los ao tema em debate e fazer suas considerações. Na defesa do equilíbrio e da justiça social, o magistrado apontou ser ideal que todos tenham uma vida digna, com acesso abens e serviços, com capacidade para cumprir com suas obrigações, inclusive as tributárias, como forma de garantir aos menos favorecidos os princípios constitucionais das assistência social àqueles que necessitam.
Tema da saúde encerra a programação – No dia 1o de julho, a última sessão do seminário focou no tema “Uma só saúde, um só planeta, um só futuro”, com moderação do ministro Benedito Gonçalves, do STJ. O desembargador Heraldo Silva, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) focou sua fala nos aspectos do saneamento básico. “Estamos aqui para reconhecer que o direito, tal como conhecemos, precisa se reinventar para lidar com o mundo onde os sistemas da vida estão interligados e ameaçados. O colapso é sistêmico e o direito não pode ser fragmentado.”
O desembargador William Douglas, do Tribunal Regional Federal da 2a Região (TRF-2), falou sobre “energia religiosa em espaços laicos”, criando conexão com o tema central, ao declarar que “descortinar o futuro é querer mudá-lo, é querer torná-lo melhor”, o que, em seu entender, passa pelo poder da fé e da energia religiosa, citando como exemplo o arcebispo Desmond Tutu, figura emblemática na luta contra o apartheid na África do Sul.
O ministro do STJ Reynaldo Soares da Fonseca concentrou sua apresentação nas questões ambientais e nas legislações penais em torno dos crimes contra o meio ambiente, assim estabelecendo uma relação com o tema da sessão. “Arelação do homem com a natureza foi modificada com o advento do capitalismo e do desenvolvimento tecnológico”, disse, apontando que, antes de pensar em “uma só saúde, um só planeta e um só futuro”, deveremos estar prontos para buscar soluções para a degradação ambiental.
André Dias Pereira, coordenador do Centro de Direito Biomédico da FDUC, também correlacionou os aspectos ambientais e tecnológicos para defender seu ponto de vista sobre o tema central da sessão. “É preciso repensar o ensino da Medicina, repensar efetivamente essa ligação entre saúde (humana) e a saúde ambiental […] a deterioração ambiental e dos ecossistemas, potenciada por alterações climáticas, tem contribuído para o agravamento de múltiplas doenças e conduzindo ao aparecimento de epidemias e pandemias como a covid-19”.
O desembargador Ney Bello, do Tribunal Regional Federal da 1a Região (TRF-1), destacou aspectos de mercado no intuito de reduzir os impactos da degradação ambiental. “Preservar o clima implica, necessariamente, uma intervenção no modelo de sobrevivência do próprio mercado e do sistema econômico. Este lado do direito ambiental, das mudanças climáticas, é uma política intervencionista que vai interferir na forma como acumulamos riqueza no tempo presente.”
A programação do seminário foi finalizada com uma mesa-redonda com o tema “As mudanças geopolíticas mundiais e o papel do direito”, moderada pelo desembargador e presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), Ricardo Couto de Castro. O advogado e presidente da Faculdade Milton Campos, João Batista Pacheco Antunes, trouxe panorama detalhado dos conflitos e desequilíbrios geopolíticos da atualidade, que perpassam pela guerra entre Rússia e Ucrânia e o conflito entre Israel e Irã, assim como pelas imposições tarifárias dos Estados Unidos da América, as questões que envolvem o territorialismo e a disputa por riquezas naturais.
A professora de Relações Internacionais da FDUCLicínia Simão expôs seu ponto de vista a partir de algumas regulações normativas e tratados internacionais, cuja configuração organizacional que conhecíamos vem se transformando. “Um dos casos que mais têm nos inspirado é, precisamente, o trabalho que a África do Sul tem feito junto ao Tribunal Internacional de Justiça ao denunciar o que está acontecendo em Gaza como um genocídio organizado.”
Juíza do TJRJ e Conselheira do CNJ, Renata Gil, ao abordar o tema da geopolítica, deixou sua mensagem “Eu indico a todos os meus amigos que estão aqui para deixarem de lado um pouco os livros de direito e começarem a ler um pouco mais sobre geopolítica”. Porém, mais que isso, ela chamou a atenção para que, antes, sejam observadas as questões nacionais, as desigualdades econômicas e os desafios sociais que o Brasil enfrenta, especialmente em saneamento básico. “Esse é o desafio da magistratura contemporânea: conhecer não apenas o mundo em que ele vive, mas, sobretudo, o país de dimensões continentais em que vivemos.”
Observando o tema da perspectiva do direito tributário, o desembargador Marcus Abraham, do TRF-2, foi pontual. “Precisamos repensar o presente e o futuro a partir de outro modelo e, nesse contexto, o direito passa a possuir o relevante papel na construção de um mundo mais justo e equilibrado na promoção da paz e na proteção de direitos humanos fundamentais individuais e coletivos […] a sociedade e seus integrantes em qualquer parte do mundo deverão arcar com seus custos financeiros. Afinal, sem dinheiro não há direitos […] não haverá qualquer instituição voltada a garantir direitos liberdades e as necessidades coletivas.”
O ministro do STJ Marcelo Navarro Ribeiro Dantas também abordou as recentes alterações geopolíticas mundiais e o papel do direito no atual estado de coisas em um mundo que, em suas palavras, “se tornou mais complexo e imprevisível”. O ministro apontou que “aquele mundo em que vivíamos, baseado em regras do direito internacional, infelizmente tem sido rasgado em nome da chamada realpolitik […] nós temos esse desafio de manter o equilíbrio entre soberania, justiça internacional, direitos humanos e inovação, sem retroceder aos fóruns de força e de poder bruto”.
O ministroRaul Araújo, do STJ, também abordou as transformações na geopolítica. “Nas últimas duas décadas, houve o avanço ou o surgimento de novas potências que despontam no cenário global. Isso traz uma reconfiguração das relações internacionais com o declínio da unipolaridade estadunidense e o surgimento de uma ordem mais complexa e multipolar. Os vetores centrais dessas transformações geopolíticas referem-se ao poder militar, à capacidade econômica, diplomática e tecnológica e às estratégias energéticas e ambientais de cada uma dessas potências”, disse.
Encerramento – O evento foi encerrado de maneira contundente por dois dos ministros do STF. Primeiro com a apresentação de Flávio Dino. Segundo ele, percorremos séculos até chegarmos à ideia de autonomização do direito, de independência dos poderes, entre outras conquistas democráticas, mas está em curso uma desconstrução desse aparato cultural erguido. A principal abordagem do ministro convergiu para o chamado ativismo judiciário. “Esta não é propriamente uma opção individual ou um desvio de caráter dos magistrados. É uma exigência do nosso tempo, exatamente por conta da agudeza das ameaças que se produzem”, e acrescentou que “essa sobrecarga é também indesejável”, mas ocorre em face de uma incapacidade momentânea de outras instâncias de poder de resolverem seus próprios conflitos.
Por sua vez, o ministro Alexandre de Moraes chamou a atenção para as conquistas das instituições democráticas brasileiras. “Se nós olharmos para trás nesses 30 anos que se passaram, teremos muito a comemorar […] nós consolidamos a democracia no Brasil”, declarou, depois de enumerar as ameaças impostas à república nas três últimas décadas. Ele também abordou a questão do “ativismo judicial”, declarando que, “do ponto de vista institucional, naquilo que é possível, nós trabalhamos para dar mais estabilidade, funcionalidade e eficiência e entregar resultados para a sociedade”. Moraes também reforçou que, mesmo em temas sensíveis, como emendas parlamentares, o STF atua dentro do escopo de suas atribuições, observando o devido processo e o colegiado.
O 30o Seminário de Verão de Coimbra já faz parte da história do Judiciário luso-brasileiro. Se o foco desta edição foram as mudanças normativas e a desconstrução de um ambiente democrático global, vale ter em mente as discussões aqui apresentadas para um comparativo com o programação da próxima edição. Nos vemos em 2026.
Fotos: Luís Felipe Ures


presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso; e pelo ministro João Otávio de Noronha (STJ)




participação do advogado Luis Felipe Salomão Filho; do
ministro Ricardo Cueva (STJ); do ministro Afrânio Vilela (STJ); e das professoras da FDUC, Dulce Lopes e Matilde Lavouras



conquistas das instituições democráticas brasileiras
em palestra de encerramento do evento

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