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Quem é responsável pela administração dos rios?

5 de julho de 2003

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O Estado de São Paulo foi o primeiro a aprovar uma lei sobre recursos hídricos (Lei 7663/91), após a Constituição de 1988. A correspondente lei nacional (Lei 9443/97) foi inspirada na lei paulista. Ambas as leis estabelecem a cobrança pelo uso de recursos hídricos como um instrumento de gestão. A cobrança objetiva: (a) “reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor”; (b) “incentivar a racionalização do uso da água”; e (c) “obter recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções contemplados nos planos de recursos hídricos” (Lei 9443/97).

O Governador Mário Covas, por uma escolha política, decidiu que a regulamentação da cobrança não deveria ocorrer por decreto e sim por uma outra lei. Neste sentido, enviou Projeto de Lei para a Assembléia Legislativa, ainda sem resultado final.

Neste meio tempo, a administração federal avançou na implementação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos, principalmente a partir do início das atividades da Agência Nacional de Águas – ANA, em 2001. Foram criadas as condições para que o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul – CEIVAP – aprovasse a cobrança pelo uso de recursos hídricos para todos os setores usuários (saneamento, industrial, agricultura, hidroeletricidade), a partir de março de 2003.

Comitê de bacia é composto de representantes não só do segmento governamental mas, também, pelos do setores usuários e da sociedade civil. O comitê tem a prerrogativa de aprovar o “plano da bacia hidrográfica”. Trata-se de documento que define os usos prioritários da água (irrigação ou produção de energia elétrica?), quando e quanto cobrar pelo seu uso como insumo de processo produtivo e prioriza os investimentos na recuperação e preservação dos rios.

Logo após a decisão do CEIVAP ter sido referendada pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos, a ANA cadastrou os usuários da bacia (mais de 4400) e iniciou efetivamente a cobrança dos usuários do rio principal, incontestavelmente de domínio da União. A cobrança nos vários rios afluentes, supostamente de domínio do estado de São Paulo, do Rio de Janeiro ou de Minas Gerais, ainda não foi iniciada.

Os governos dos três estados tomaram iniciativas no sentido de acatar o conceito de que “a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos” (Art 1o, inciso V, Lei 9433/97). No caso do Rio de Janeiro, uma resolução do Conselho Estadual de Recursos Hídricos estabeleceu que a cobrança em rios de seu domínio deverá começar em janeiro de 2004, em moldes idênticos aos estabelecidos pelo CEIVAP. No caso de Minas Gerais, está sendo preparado um decreto que cria condições para idêntico procedimento. No caso de São Paulo, o Governador Geraldo Alckmin pediu urgência na tramitação do projeto de lei de cobrança. Entretanto, o Governador discordou da sugestão do Conselho Estadual de Recursos Hídricos no sentido de que a cobrança, no caso da bacia do Paraíba do Sul, fosse imediatamente implantada através de decreto.

Estas iniciativas parecem estar em consonância com o conceito de que “a União articular-se-á com os Estados tendo em vista o gerenciamento dos recursos hídricos de interesse comum” (Art 4o, Lei 9433/97). Entretanto, há motivos para preocupação no caso paulista, pelas razões adiante alinhadas.

Ganha corpo na Assembléia Paulista a idéia de desconsiderar o artigo 22 da Lei 9433/97 que, conforme já afirmado, é uma lei nacional e não federal. Diz o caput do art. 22: “os valores arrecadados com a cobrança pelo uso de recursos hídricos serão aplicados prioritariamente na bacia hidrográfica em foram gerados…”(negritamos). Querem alguns parlamentares paulistas reservar parte da arrecadação para o Fundo Estadual de Recursos Hídricos (FEHIDRO), que teria a função de destinar arrecadação de bacias mais capazes economicamente para as mais pobres. Com este enfoque, a cobrança pelo uso de recursos hídricos se assemelharia a dos demais tributos e não a uma contribuição condominial que se caracteriza pelo fato de que cabe à assembléia de interessados (o comitê de bacia) e não a qualquer governo a decisão de quando e quanto pagar e em que aplicar.

Pode-se prever que se a cobrança começar a ser desviada para qualquer outro uso que não seja a aplicação num programa de investimentos aprovado pelo próprio comitê de bacia, este decidirá, num próximo passo, pela paralisação ou pela redução do valor da cobrança. Esta percepção é tão dominante na comunidade de recursos hídricos que, no substitutivo do Deputado Fernando Gabeira ao projeto de lei 1616, atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, a expressão prioritariamente do caput do art. 22 é substituído pela expressão exclusivamente.

Caso venha prevalecer na lei paulista a “tese isolacionista” de que a cobrança pelo uso dos recursos hídricos pode ser feita em dissonância com a Lei Nacional, o que implicaria na aplicação de critérios diferenciados de cobrança numa mesma bacia hidrográfica, a União tem a obrigação de agir para preservar o pacto federativo e, desta maneira, cumprir a Constituição que, no art. 21, inciso XIX diz que “compete à União instituir sistema nacional de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso”. Dispositivo este em perfeita consonância com o suporte do art.22, inciso IV da Constituição: “compete privativamente à União legislar sobre águas…”.

Neste sentido, os autores alertam para o tema polêmico que dá título ao artigo com o único e saudável propósito de encontrar caminhos técnicos e jurídicos que facilitem a manutenção do pacto federativo. Naturalmente, só haverá motivação política para empreender a não desejada e difícil jornada por estes caminhos, se vier a ser vitoriosa a “tese isolacionista”, presentemente em discussão na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo.

Descrição do problema

Vamos assumir que o rio Z, formado pela confluência de dois rios, respectivamente X e Y, cruze a fronteira entre os estados A e B (linha tracejada) no ponto 4.

As linhas finas representam os limites entre as áreas de drenagem dos três rios. De uma forma simplificada, pode-se afirmar que uma gota de chuva que atingir o solo em qualquer ponto da área de drenagem do rio X, por exemplo, ao escoar pela superfície do solo acabará, mais cedo ou mais tarde, caindo no leito do próprio rio X.

A união das três áreas de drenagem (todo o desenho) representa a “bacia hidrográfica do rio Z”. Analogamente, as áreas de drenagem dos rios X e Y podem ser chamadas, respectivamente, de sub-bacias hidrográficas dos rios X e Y. Toda bacia ou sub-bacia hidrográfica é caracterizada pela correspondente área de drenagem. Mas o inverso não é verdadeiro. Por exemplo, é possível medir a área de drenagem correspondente ao ponto 5, onde se localiza uma cidade, mas não existe a correspondente sub-bacia hidrográfica.

O enfoque geográfico

Tradicionalmente, a geografia descreve os rios como acidentes geográficos vinculados ao território. Assim, da mesma forma que se pode dizer que a cidade localizada no ponto 5 está dentro do território do Estado B, também se pode afirmar que os rios X e Y estão dentro do Estado A. Com este enfoque, da mesma forma que cabe ao governo do estado B administrar temas de responsabilidade estadual que afetem os moradores de cidade localizada em seu território, parece razoável assumir que deve caber ao governo do estado A administrar o uso dos rios X e Y, tanto para captação de água quanto para lançamento de efluentes. Seguindo no raciocínio, como o rio Z não está inteiramente contido nem no território do estado A nem do B, parece razoável atribuir à União a responsabilidade de administrar seu uso.

A foz de qualquer rio, no oceano, é sempre conhecida. Por exemplo, o ponto 6 é a foz do rio Z. Por analogia, costuma-se dizer que o ponto de confluência entre dois rios é a foz do que for considerado o “rio afluente”. O outro é chamado de “rio principal”. Esta metodologia atende à tradição geográfica de medir o comprimento dos rios, da nascente à foz. Por exemplo, se o rio X for considerado principal e o rio Y afluente, por convenção admite-se que o ponto 1 seja a “nascente” do rio Z. Neste caso, por analogia, diz-se que o ponto 3, onde os rios X e Y se juntam, é a foz do rio Y e rebatiza-se o rio X, que passa a ser chamado de rio Z. Assim, o trajeto do rio Z pode ser descrito pela seqüência de pontos 1-3-4-5-6. Entretanto, se fosse o contrário – o rio Y considerado principal e o rio X afluente – o trajeto do rio Z seria descrito pela seqüência de pontos 2-3-4-5-6. Em qualquer um dos dois casos, a responsabilidade da União seria estendida, respectivamente para o trecho 1-3 ou para o 2-3.

Diversos critérios podem ser adotados para decidir qual é o rio principal e qual é o afluente. Por vezes, escolhe-se como principal aquele que tem o maior comprimento. Por exemplo: se o trajeto 1-3 for mais longo do que 2-3 convenciona-se que X é rio principal. Outras vezes, prefere-se como rio principal o que tem a maior área de drenagem; ou a maior vazão média; ou a maior vazão medida.

Tantos possíveis critérios do “enfoque geográfico” implica em indesejável grau de arbitrariedade na divisão de graves responsabilidades entre os entes federados. Na realidade, o “enfoque geográfico” para atribuição de responsabilidades na administração dos rios parece razoável, mas não é. Propomos sua substituição pelo “enfoque hidrológico” com o objetivo de evitar o malogro de ingente esforço legislativo na área de recursos hídricos, que ocorreu nos últimos quinze anos, começando pela Constituição de 1988.

O enfoque hidrológico

O “enfoque hidrológico” prioriza o conceito de corrente de água. Trata-se de conceito incluso na Constituição de 1988 (negritamos):

Art. 20. São bens da União:

……………

III – os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais;

Segundo o dicionário Aurélio, uma “corrente” é algo “fluente”, “que corre”, “não estagnado”, “o curso das águas”. E quais seriam os cursos das águas no exemplo da figura?

A melhor maneira de responder esta questão é imaginar uma rolha flutuando ao sabor da corrente, que nos permite acompanhar o curso da água. Por exemplo, rolha lançada no ponto 1 segue o curso 1-3-4-5-6, antes de desembocar no mar. Se for lançada no ponto 2, segue o curso 2-3-4-5-6. Como a Constituição determina que “são bens da União… quaisquer correntes de água… que banhem mais de um Estado”, não há dúvida que, ao contrário da prevalecente e equivocada interpretação que tem guiado a atuação tanto do Governo Federal quanto dos governos estaduais, as duas correntes de água deveriam ser administradas pela União. Isto é, se examinarmos novamente a figura, todos os rios da bacia do rio Z deveriam ser administrados pela União.

O constituinte de 1988 foi sábio ao ratificar a expressão “quaisquer correntes de água” que já constava de Constituição de 1967 (Art. 4º). Efetivamente, se em vez de uma rolha, fosse lançado uma mancha de poluição, não importa se no ponto 1 ou no ponto 2, em ambos os casos a qualidade de vida dos habitantes da cidade localizada no ponto 5 seria afetada. Portanto, seria um equívoco atribuir ao estado A a responsabilidade de administrar qualquer um dos dois rios, X ou Y (não importa qual tenha sido arbitrariamente chamado de “rio principal” e qual tenha sido chamado de “rio afluente”) porque as conseqüências de decisões administrativas seriam sentidas além das fronteiras do estado A, por cidadãos do estado B.

O recente exemplo do acidente no município de Cataguases serve para ilustrar este ponto. Faz sentido atribuir ao Governo de Minas Gerais a responsabilidade de licenciar uma atividade que poderia poluir o ribeirão Cágado, considerado equivocadamente de domínio do estado de Minas Gerais, se a corrente de água que se inicia no ribeirão Cágado extrapola o território mineiro, adentrando o território do estado do Rio de Janeiro e, no percurso banhando cidades de grande concentração populacional, como é o caso de Campos? É claro que não!

Quais seriam então as responsabilidades de governos estaduais na administração dos rios? A primeira responsabilidade é óbvia: quando toda a bacia hidrográfica estiver contida em território de um único estado, é evidente que não existem externalidades para cidadãos de outros estados e a administração de todos os rios da bacia deve ficar sob responsabilidade do correspondente governo do estado. A segunda responsabilidade é de interagir com a União no processo de descentralização das decisões. Sempre que possível, tudo o que puder ser resolvido pelo governo do estado, ou por consórcio de governos estaduais, não deve ser resolvido pela União. Por exemplo, seria desejável que a União delegasse a administração da bacia do rio Z a consórcio formado pelos estados A e B. A terceira responsabilidade é participar, juntamente com a União e com os municípios, nos comitês de bacia.

Conclusão

Os autores reafirmam que um eventual confronto jurídico em torno das alternativas aqui abordadas será de todo desnecessário se efetivamente ocorrer a articulação entre a União e os Estados tendo em vista o gerenciamento dos recursos hídricos de interesse comum (Art. 4o, Lei 9433/97).