Por que mesmo precisamos de CND para participar de licitações?

14 de setembro de 2021

Compartilhe:

Com a recente publicação da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (NLLC), é natural que a gente se pegue revisando toda a matéria de contratações públicas, repensando fluxos e procedimentos administrativos, na tentativa de simplificar um processo notoriamente complexo. A reflexão profunda é extremamente necessária, especialmente quando rememoramos que a NLLC, apesar de ter muitas regras semelhantes às da Lei nº 8.666/1993, parte de um modelo mental distinto: a NLCC privilegia valores econômicos, buscando compras públicas mais simples, informatizadas e baratas.

Já se vê essa posição de privilégio dos valores econômicos lá no início da nova lei, no seu elenco dos princípios. No art. 5º, a Lei nº 14.133/2021 dá posição de destaque aos princípios da eficiência, da competitividade e da economicidade. Apesar de serem os norteadores das compras públicas há muitos anos, estes princípios não estavam expressamente previstos na legislação anterior, que destacava princípios de segurança jurídica formal, tais como vinculação ao instrumento convocatório; em detrimento dos novos princípios. Diante de novos princípios, precisamos de um novo modelo mental.

E daí a gente acaba questionando a necessidade de uma série de regras burocráticas, que são consideradas inerentes ao processo licitatório. Os documentos exigidos para habilitação dos licitantes são alvo fácil deste questionamento. Por que exigir que a empresa apresente documentos que são acessíveis ao público, tais como as diversas certidões que usualmente são requeridas das licitantes? Qual a efetiva utilidade de um atestado de capacidade técnica para aquele caso concreto? E, chegando ao cerne deste breve artigo, por que mesmo precisamos de certidão negativa de débitos (CND) para participar de licitações?

Na empolgação para tornar o processo licitatório mais simples e alinhado com as práticas correntes do mercado, é fácil questionar a exigibilidade de CND. Esta exigência representa uma aparente barreira de mercado, na medida em que exclui da arena das compras públicas empresas que, por uma razão ou outra, não tiveram condições de arcar com a carga tributária incidente sobre sua atividade econômica. 

Refletindo sobre esta aparente barreira à competitividade, a NLLC traz novidades: segundo o art. 63, III, da Lei nº 14.133/2021, os documentos relativos à regularidade fiscal serão exigidos somente em momento posterior ao julgamento das propostas, e apenas do licitante mais bem classificado. Na prática, essa inovação permite que o licitante regularize sua situação fiscal quando já souber o resultado do certame, de forma semelhante – mas não igual – ao que já ocorria quando a empresa era ME/EPP, nos termos dos artigos 42 e 43 da Lei Complementar nº 123/2006. Sem dúvidas, esta novidade viabiliza que empresas em débito com o fisco participem de licitações. Mas isso é bom?

Nem sempre. Há bons motivos para exigir regularidade fiscal das empresas que celebram contratos com o Poder Público. Vamos falar de três deles.

Em primeiro lugar, devemos lembrar que a contratação pública de empresas em débito com o fisco é uma grande confusão. Não, não se está falando em confusão no sentido de bagunça, tumulto ou baderna (o que até acontece, se a empresa tem uma saúde financeira muito desestruturada), mas confusão no sentido técnico-jurídico. Quando uma empresa em débito com o fisco estadual celebra contrato com o Estado, ela se torna credora deste ente da Federação. E daí temos identidade entre credor e devedor, que, de acordo com o art. 381 do Código Civil, extingue a obrigação. 

Já imaginaram? O Estado celebra um contrato com a Flamingo Food Ltda. (para comprar ração para flamingos, é claro!). Mas esta empresa deve para o fisco estadual… Seguindo a literalidade do art. 381 do Código Civil, o Estado deveria compensar o passivo fiscal com o valor devido pela ração para flamingos. Nossa, que confusão! A Flamingo Food Ltda., que já estava com a saúde financeira meio abalada, não vai ter fluxo de caixa para continuar fornecendo para o Estado, se não receber o que lhe é devido pelo contrato público. Mas o Estado não deve nada para a empresa, pois ela mesma é devedora do fisco… Vixi! Melhor exigir a CND e fugir disso!

Passando para a fase dois da confusão, caso o Estado tentasse efetuar a compensação entre crédito tributário e valor devido pela ração de flamingos, de ofício, a empresa poderia arguir que não há lei específica autorizando a compensação. E, nos termos do art. 170 do Código Tributário Nacional, a compensação tributária depende de lei. Nessa fase da confusão, a controvérsia inevitavelmente acabaria em juízo, a execução do contrato seria suspensa, e… os flamingos passariam fome! – pois a ração não seria entregue. Pois é, exigir a CND começa a parecer uma solução tão boa…

Mas a confusão entre credor e devedor nem sempre acontece. Se o débito é da União, mas o contratante é o Estado, por exemplo, não há confusão nenhuma. Os problemas debatidos linhas acima não acontecem. Mas isso quer dizer que podemos limitar a exigência de regularidade fiscal ao ente licitante? É claro que não! 

O terceiro bom motivo para exigir CND é que a regularidade fiscal é uma forma de assegurar neutralidade concorrencial. E uma licitação competitiva e econômica pressupõe que os licitantes ingressem na arena das compras públicas com igualdade de armas. É inegável que uma empresa que não paga os tributos devidos acaba tendo condições de cobrar menos pelo mesmo bem ou serviço. Caso ela dispute com uma empresa que paga todos os tributos em dia, acaba tendo uma vantagem ilegítima (e ilegal). É este, sem sombra de dúvidas, o verdadeiro motivo pelo qual não se pode dispensar a regularidade fiscal de empresas que participam de licitações: a igualdade entre os licitantes (este princípio que é tão protegido, tanto pela NLLC, quanto pela Lei nº 8.666/1993), acabaria severamente abalada.

É claro que este argumento tem suas fragilidades, e a própria inovação do art. 63, III, da Lei nº 14.133/2021, é uma evidência disso: ao permitir que a licitante, depois de vencer a licitação, vá correndo atrás de um parcelamento (para conseguir a regularidade fiscal), a NLLC acaba beneficiando empresas em débito. Voltando ao exemplo anterior, a Flamingo Food Ltda. teve a vantagem econômica do inadimplemento tributário, e, mesmo assim, conseguiu participar da licitação. Como inadimpliu tributos, conseguiu ofertar o melhor preço. E, na condição de licitante mais bem classificada, pode celebrar contrato com o Poder Público, passando à condição de fornecedora de ração para flamingos. Ainda que de forma sutil, a NLLC dá uma ajudinha para as empresas devedoras de tributos.

Tá certo? Não, né? Mas a alternativa pareceu pior ao legislador, por limitar em demasia a competitividade do certame.

Nota________________________

1 O nome é ficcional. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.