Os limites da Democracia

10 de abril de 2020

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A separação dos poderes é fundamental para garantir estabilidade à democracia e restringir eventuais tentações totalitárias

Além de ter sido um dos maiores líderes da História, o Primeiro-Ministro britânico Winston Churchill era um grande orador e escrevia muito bem, tendo recebido o Nobel de Literatura. Uma de suas frases mais famosas é a que diz que “democracia é a pior forma de governo, salvo por todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos”.

Essa ideia da democracia como valor inegociável, pelo menos no mundo que tem suas bases fincadas na tradição helênica, é recente. É consequência direta justamente da II Guerra Mundial e do pós-guerra, do confronto contra governos totalitários de direita (o nazismo alemão, o fascismo italiano e o imperialismo japonês) e da ascensão de governos totalitários de esquerda (a Rússia comunista e seus satélites, a China maoísta).

Pois, mesmo assim, não faltam exemplos na História de que em momentos de aguda crise política, econômica ou social, a democracia costuma ficar sob ataque. Ou diretamente ou de forma mais dissimulada, com seus pilares sendo questionados ou minados. É o que ocorre hoje em várias partes do mundo. A crise da democracia liberal, da forma como a conhecemos, é um fenômeno atual.

Nesses momentos é que precisamos cerrar fileiras na defesa do Estado Democrático de Direito. Ele é um porto seguro. É a base que permite à sociedade enfrentar as dificuldades com mais segurança e menos incertezas.

Curiosamente, as pessoas têm ideias e visões distintas do que é democracia. Muitas dessas visões são reducionistas, se prendem a um detalhe ou outro, se afastando daquilo que é essencial.

Em um discurso proferido no cemitério militar em Gettysburg, palco de uma batalha decisiva durante a Guerra Civil norte-americana, o Presidente Abraham Lincoln falou em um “governo do povo, para o povo e pelo povo”. A partir daí se cristalizou a ideia de que a vontade do povo seria soberana dispensando, assim, todas as outras características fundamentais de um regime democrático.

No Brasil e fora tem se consolidado entre alguns setores a ideia de que essa vontade popular se expressa unicamente pelo voto direto. Portanto, a democracia se restringiria à eleição direta de quem vai nos comandar. E que isso só basta. Por aqui, ainda temos a tradição sebastianista que espera um salvador da pátria para guiar o País e resolver todos os problemas.

São equívocos graves e perigosos. Basta lembrar que algumas das democracias ocidentais mais sólidas não têm voto direto para escolher quem vai comandar o país. Nos EUA o presidente é eleito por um colégio eleitoral e nem sempre conta com a maioria dos votos do eleitorado. Na Inglaterra, o primeiro-ministro é o chefe de governo indicado pelo Parlamento e a chefe de Estado é a Rainha Elizabeth II, que nunca foi submetida a escrutínio popular.

É bem verdade que o conceito de democracia evoluiu muito desde sua invenção na Grécia antiga e reflete as circunstâncias políticas e sociais de cada momento histórico. Assim como os conceitos que lhe embasavam. Um deles era o de cidadania. Cidadãos eram apenas homens, patrícios, com posses e, portanto, com direito a voz (escravos, mulheres e estrangeiros não contavam). Os cidadãos se reuniam na ágora (praça pública) para opinar sobre as questões da Cidade-Estado. Essa democracia direta de caráter assembleísta só é possível com público reduzido. Ainda sobrevive em cidades pequenas de cantões diminutos do interior da Suíça.
A ideia de democracia caiu em desuso durante séculos. Na Idade Média não era algo que ocupasse a mente de filósofos e pensadores. Ela voltou com força a partir do Século XVIII, com a emergência da burguesia no ocidente e o fim de monarquias absolutistas. As pessoas deixavam de ser súditas e passavam a ser cidadãs.

Talvez o pensador mais importante para reavivar o ideal democrático, dando-lhe mais vigor e a possibilidade de ser posto em prática, foi o filósofo francês Montesquieu. Ele concebeu a teoria da separação dos poderes, que serve de base para as democracias modernas. Foi a forma encontrada para desconcentrar o poder das mãos de um único dirigente.

Em sua obra mais famosa, “O Espírito das Leis”, Montesquieu elaborou conceitos sobre formas de governo e defendeu a divisão dos poderes em três. Ao Executivo caberia a administração do Estado; o Legislativo teria a função de elaborar as leis; o Judiciário aplicaria e fiscalizaria o cumprimento das leis. Nenhum deles teria prevalência sobre o outro e suas funções limitariam excessos dos demais. Limites no exercício do poder são outra característica de regimes democráticos.

A legitimidade do voto de um presidente, de um governador ou de um prefeito não é maior do que a legitimidade daqueles eleitos para um congresso, uma assembleia estadual ou uma câmara de vereadores. Em certo sentido, a representatividade dessas casas é até maior, porque até as correntes perdedoras em eleições majoritárias têm assento e voz nessas esferas. Em outras palavras, o Legislativo acaba tendo uma representação mais abrangente da vontade popular.

No caso do Judiciário há ainda outra característica importante. Seus representantes não passam pelo veredito da urna. Nem o acesso aos tribunais, nem sua composição e tampouco as promoções passam por escrutínio popular. Isso tudo ocorre com base em processos de meritocracia. E há uma razão principal clara que justifica isso. É para que juízes e magistrados trabalhem tendo como norte apenas a Constituição e as Leis, não sejam submetidos às pressões dos anseios populares ou eleições periódicas. Teoricamente, magistrados e juízes são agentes públicos, mas não são agentes políticos.

Nossa Constituição, logo no art. 2º, estabelece que «são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário».

É isso que é necessário. Que os três poderes sejam eficientes e operem com independência e harmonia dentro de seus escopos de atuação e respeitando os demais. A única resposta possível para uma crise na democracia é mais democracia, nunca menos.