O Juiz ativo para a Justiça Efetiva

5 de dezembro de 2001

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Embora já decorridas seis décadas da entrada em vigor do Código de Processo Civil Pátrio de 1939, cuja Exposição de Motivos explicitou quantum satis o princípio processual publicístico, no escopo maior da busca da verdade real para dar-se razão a quem a tenha, ainda hoje, no adentrar do Século XXI e do Terceiro Milênio, correntes respeitáveis de juristas questionam-no amiúde, quando não o repudiam por inteiro. Bafejados pelos ventos “globalizadores” e inebriados pelo “canto de sereia” da ideologia neoliberal que domina quase todo o orbe terrestre ao depois da derrocada do imperfeito “socialismo real”, dizem hoje muitos profissionais do Direito, inclusive magistrados de diversos graus, que o juiz não deve se imiscuir na produção de provas; que tal proceder compromete sua imparcialidade; que as partes tem de arcar com os acertos e erros de seus advogados; que o Ministério Publico e a Defesa, nos procedimentos criminais, são os únicos habilitados a requerer diligencias esclarecedoras; que em caso algum o julgador deve inquirir testemunha não arrolada ou arrolada fora de prazo … etc. Em nome do principio acusatório, no crime, e do principio dispositivo, ou inercial, no cível, pugna-se para que juízes e juízas, nas interessantes imagens gizadas por Nagib Slaibi Filho, tenham atitude de estatua de pedra, ao invés da de convidado trapalhão. Fazendo-se questão de assinalar o repúdio do culto Colega a primeira das duas figuras.

Com efeito, tendo a jurisdição estatal o fim maior da composição dos conflitos de interesse, que conturbam a paz social, esta aliás expressão utópica mascaradora da estabilidade do poder dominante, mas que um dia será atingida quando se tornar realidade o ideal de justeza e fraternidade das relações humanas em todos os níveis, não se aceita, em analise profunda, que o juiz de qualquer demanda se porte como arbitro de competição esportiva, a assistir impávido e frio uma contenda na qual o mais forte derrota o mais fraco; aqui entendendo-se forte o poderoso em termos econômicos, sociais ou políticos, e por fraco o ser humano desprovido de significação nas mesmas esferas. Sendo que tal debilidade, em se tratando dos componentes da enorme massa de lumpemproletários das favelas citadinas e das periferias metropolitanas, multiplica-se sobremaneira por fatores notórios.

A mencionada Exposição de Motivos do CPC de 1939, em que pesem os fatores autoritários e fascistóides que norteavam o “Estado Novo” de pouca ou nenhuma saudade, não deve jamais ser confundida com a ideologia ditatorial que então imperava. O que aliás também é de se frisar quanto a legislação trabalhista básica e quanto a Justiça Eleitoral. Cabe a propósito o resgate da Era Vargas, a qual, se colocados nos dois pratos da balança os méritos e os deméritos, terá decerto os primeiros em prevalência. Não fosse sua existência histórica, o Brasil de hoje, tão injusto e violento, sê-lo-ia em muito maior escala…

Voltando-se a mesma Exposição, com o cuidado de se separar o joio do trigo, ou seja, a ideologia autoritária do principio publicista, esta perfeitamente compatível com o Estado Democrático e Social de Direito que tão penosamente se intenta alcançar no Brasil, observa-se a atualidade de muitos de seus trechos; v.g, as críticas de Taft, Willoughby, Elihu Root e Roscoe Pound ao sistema processual e judiciário dos Estados Unidos da America, hoje alias tão festejado, em que os juízes se limitam a pura administração burocrática dos atos dos advogados nas lides de qualquer natureza e cuja independência é duramente toldada pela inexistência de concursos ou cursos de formação, havendo ao revés nomeações ao sabor político e pessoal de presidentes e governadores, quando não exsurgidas de eleições que são ótimas para o Executivo e o Legislativo mas errôneas para o Judiciário, por fatores notários, a dispensar aqui comentários.

Dá-se a propósito especial relevo ao gizado por outro critico, o professor Suderland, ao comparar o sistema estadunidense com o inglês: …. nos Estados Unidos o juízo pelo combate floresce no pais de alto a baixo, com os tribunais por liças, os juízes por árbitros, e os advogados, aguerridos com todas as armas de sagacidade da armadura legal, por campeões das partes. É um sistema que está rapidamente destruindo a confiança do povo na administração da justiça pública”.

Destarte, é de se proclamar, com todas as letras, a inconveniência da “americanização” do processo e da justiça em nosso Pais. Aduzindo-se também as grandes diferenças na formação social e cultural do povo e das (chamadas) elites, do Norte para o Sul do Rio Bravo. Em sociedades mais débeis e de grande resíduo colonial, a agravar sobremaneira as desigualdades econômicas, impõe-se com muito mais vigor a presença do Estado-Administração, do Estado-Lei e do Estado-Juiz; porém, por evidente, sem os exageros e as mazelas totalitárias do Estado-Leviathan. Tal é a realidade da America Latina, em cujas veias abertas continua ressoando o brado de alerta de Lacordaire: ‘entre o forte e o fraco, entre o opressor e o oprimido, e a liberdade que oprime e é a lei que liberta”.

Passando-se aos encerros propriamente processuais e procedimentais, chama-se a atenção de juízes e advogados para o contido no artigo 130 do CPC vigente, que praticamente sintetiza o publicismo trazido ao Direito Nacional pelo Diploma de 1939: caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias a instrução do processo, indeferindo as diligencias inúteis ou meramente protelatórias.

Em um tempo de clamor, na moderna doutrina e na mais arejada jurisprudência, pela efetividade do processo, tão necessária a satisfação da fome e sede de justiça contida no Sermão da Montanha, nunca se deve olvidar que para tal faz-se de rigor a manutenção, teórica e prática, do princípio publicistico em tela.

Outrossim, a almejada celeridade dos Feitos não pode ter o condão de causar injustiças por conta de julgamentos apressados, na esteira de falhas de advogados, constituídos ou dativos. O sadio instituto do julgamento antecipado da lide jamais deve acarretar provimentos sentenciais descompromissados com a verdade real, pela desconsideração de provas ou diligencias de relevo, pelo só fato de não terem sido postuladas ou de ter ocorrido preclusão temporal.

Se a Justiça Humana, que não tem meios para perscrutar mentes e corações, não pode ter a ousadia de chegar a verdade plena das situações fáticas abrangidas pelas lides, pode como também deve esgotar os elementos que se lhe apresentem para se aproximar da mesma verdade. Nesse desideratum, agir-se-á sobretudo no escopo da promoção da imagem do julgador perante o segmento majoritário de nossa população, que por lamentável e o mais sofrido e o mais excluído dos bens materiais objeto de um consumo cada vez mais sofisticado, a gerar ressentimentos que escoam no já caudaloso rio da marginalidade delitiva.

Não vale, em pertinência, e com todas as vênias, o argumento de que, havendo no Rio de Janeiro e em quase todo o Brasil, órgãos de Defensoria Publica estruturados e com garantias, e existindo a Ordem dos Advogados para fiscalizar os nobres causídicos ate quanta a eficiência e combatividade, descabe ao Judiciário fazer suas vezes. Ou, na esfera criminal, em existindo sólido e dinâmico Ministério Publico, nunca deva o juiz auxiliá-lo a produzir provas contra o Réu.

Sabe-se, em respeitosa contrariedade, das mazelas e do despreparo que acicatam a advocacia, como também todas as profissões e serviços, na razão direta do elevado déficit social e educacional da Nação Brasileira. Ressalvando-se o grande numero de patronos dedicados, conscientes e estudiosos, vislumbra­se número também grande dos que não se atualizam nas letras jurídicas, agridem a todo momento as normas adjetivas e fazem da banca balcão de comércio, na expressão crítica de Rui Barbosa. Tudo em que pesem os esforços da nobre entidade fiscalizadora e reguladora. Sabe-se das extremas dificuldades de Defensoras e Defensores Públicos, confinados a gabinetes em geral desconfortáveis, com pouco contato com os clientes em precária comunicação por “cartinhas” em meio a “montanhas” de autos envolvendo carentes em multidão crescente, que já abarca a denominada “camada media baixa”. Sabe-se, quanto aos Promotores de Justiça, que, por mais zelosos que sejam, nada impede o Magistrado de buscar esclarecimentos para colaborar na busca da verdade dos fatos. E aqui também se assinala a erronia de se enxergar nos Feitos-Crime o binômio acusação x defesa. Em nosso sistema, baseado no modelo italiano e europeu em geral, o Promotor, que o é de Justiça e não de Acusação, embora obviamente tenda para esta no começo e no meio, tem o dever de perseguir aquela no fim, quanto ao mérito.

E, quanto as garantias do contraditório, da ampla defesa e outras, deve sempre se posicionar como fiscal da legalidade, o mesmo raciocínio vale para a Justiça do Trabalho, hoje despida da colaboração (bem mais teórica do que concreta) dos representantes classistas. Talvez ainda com maior vigor, pela natureza protetiva do economicamente mais débil, não devem as juízas e os juízes laborais se acomodar na produção probatória. A verdade provada e inseparável da tutela otimizada das relações fundadas nos contratos laboratícios.

É claro que todo exagero e condenável. Não se admite que magistrados levem o tramitar procedimental para as “calendas gregas” a pretexto de diligencias infindáveis ou de provas de visível inocuidade. Ou que se portem com eivas ditatoriais para dizer o mínimo. Em todo este assunto aqui ventilado, de rigor a observância do equilíbrio e da serenidade; aliás fatores indispensáveis ao exercício do múnus judicatório como um todo.

Se as máximas evangélicas nos advertem do perigo de, na esfera da consciência pessoal, julgar com a mesma severidade com que o seremos ao depois, tal advertência, no que tange a jurisdição indispensável a própria existência da sociedade organizada, limita-se a que não ajamos como fariseus e escribas têm-­no feito ao longo dos tempos. Pois, se assim procedermos, estaremos trabalhando contra o Reino: O qual, na dimensão da Vida na Terra, traduz-se pela paulatina construção da sociedade justa e fraterna em todos os níveis.