Edição

Legalidade e perueiros

5 de setembro de 2002

Advogado, professor do curso de pós-graduação em direito da PUC-SP, e presidente do IBDC (Instituto Brasileiro de Direito Constitucional)

Compartilhe:

Tem-se assistido, nos últimos anos, a proliferação, pelo território nacional, de novas modalidades de transporte coletivo de passageiros, que operam total mente na clandestinidade, ou seja, a margem do que dispõem a Constituição da Republica e o Código de Transito Brasileiro.

São os serviços prestados de modo informal, por meio de vans ou veículos automotores similares, os popularmente chamados “perueiros”.

Na realidade, esses serviços vem desestruturado o sistema de transporte coletivo urbano, levado a efeito por empresas de ônibus regularmente constituídas. Houve uma sensível diminuição da receita antes auferida por essas empresas, seguida de uma diminuição da sua frota, em face da concordância desleal dos informais, que captam de forma indevida os passageiros nos pontos de ônibus, conduzindo-os aos seus destinos, numa prestação de caráter oneroso, rompendo, deste modo, com o sistema oficial de exploração de serviço púbico de transporte coletivo.

A situação se agrava ainda mais quando o poder público municipal, em vez de fiscalizar, autuar e aplicar as penalidades e medidas administrativas cabíveis aquelas pessoas responsáveis pelo transporte informal de passageiros, mantém-se omisso. Adverte-se que ao poder publico incumbe o dever constitucional de zelar pela boa prestação do serviço, regulamentando-o, controlando-o e fiscalizando-o, em obediência ao princípio da indisponibilidade do interesse público.

Destarte, relega-se ao óbvio serem os empresários devidamente estruturados que geram empregos, pagam impostos e contribuições de natureza social, respondem civil e criminalmente a seus usuários – principalmente apos o advento do Código de Defesa do Consumidor -, transportam, gratuitamente, idosos, crianças de até sete anos de idade, policiais militares e, ainda, estudantes pagando 50% da tarifa.

A União cabe privativamente legislar sobre transito e transporte, consoante o disposto no inciso Xl do art. 22 da Constituição Federal. Essa competência é levada a efeito por meio do Código de Trânsito Brasileiro, que em nenhum momento faz alusão ao transporte coletivo por meio de peruas ou vans. Nesse sentido, as resoluções do Contran, responsáveis pelo estabelecimento das características dos veículos, fazem menção só aos ônibus e microônibus, bem como a necessidade de um corredor interno para a circulação de passageiros.

Verifica-se, pois, que essa atividade não encontra amparo na lei e qualquer tentativa do poder público municipal de regulá-la será inconstitucional, na medida em que só a União tem competência para tanto.

Ademais, para a prestação de serviço público é necessário que o transpasse dessa atividade do poder público para o particular se de por meio de previa licitação e mediante concessão ou permissão (art. 175 da CF). Nesse particular, qualquer tentativa da prefeitura no senti do de autorizar a prestação de transporte coletivo pelos perueiros, quer seja por meio de vans ou de microônibus, será igualmente inconstitucional, porque esta tem, necessariamente, de ser precedida de procedimento licitatório, além de configurar patente violação das contratações existentes, que requerem exclusividade ou, para dizer o mínimo, manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato.

Os perueiros não estão sujeitos as mesmas condições impostas as regulares empresas de ônibus, não prestam um serviço adequado, posto que não satisfazem aos requisitos de segurança, de certeza da prestação, das tarifas, da regularidade e da existência de linhas certas. A inexistência de uma fiscalização da prefeitura sobre os perueiros configura um perigo aos usuários, além de implicar a ausência de linhas específicas, de pontos de parada definidos e da fixação de um horário para funcionamento dos mesmos.

Soma-se a isso o fato de as peruas não conterem rampas de acesso para deficientes físicos, assento reservado para idosos, gestantes e mulheres com crianças de colo, bem como não respeitarem a gratuidade do transporte a que fazem jus o idoso com mais de 65 anos, a criança de ate sete anos e os estudantes.

Há que considerar que o possível trabalho gerado pelos informais e nitidamente comprometido em razão do número de empregos formais que desaparecem. Os cofres públicos também deixam de arrecadar contribuições, pois, no caso dos perueiros, há uma omissão no cumprimento dos deveres de uma empresa que paute seu comportamento pela legalidade. É imprescindível que o poder público municipal reconheça que o transporte informal agrava tanto a situação das empresas de ônibus, que se vêem diante de uma concorrência desleal, quanto a dos usuários, que não podem usufruir de um serviço adequado e com segurança, ao qual tem direito por força de norma constitucional.

Ao poder público incumbe por fim a essa situação, pois, do contrário, a tendência será não mais atender a qualquer chamado licitatório, porque ninguém optara pelo transporte de ônibus, prestado com os ônus da lei, quando se pode fazer por intermédio de peruas, sem nenhuma espécie de encargo tributário, previdenciário ou mesmo social e também sem responsabilidade civil e penal ante seus usuários. Essa situação tem que ser imediatamente revertida em virtude dos danos que causa.