Interrupção da gravidez: uma questão de direitos humanos

17 de outubro de 2013

Desembargador (aposentado) do TJ/RJ, Ex-presidente do TRE/RJ. Presidente do Fórum Permanente de Execução Penal da EMERJ, Professor de Direito Penal e Criminologia da pós- graduação da UGF e da EMERJ

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Alvaro-MayrinkNovas causas de interrupção da gravidez justificada

Diante dos impulsos trazidos pelo cristianismo na remoção de ideias e de conceitos que o inspiraram, o aborto foi criminalizado por quase todos os povos civilizados. Os problemas derivados e as consequências possíveis da interrupção da gravidez são desenvolvidos em polêmicas doutrinárias. Contemporaneamente, estão na pauta obrigatória das discussões sobre os direitos humanos a descriminalização total ou parcial, pleiteando-se a liberdade da mulher por meio de certas condições-limite (sistema de indicações e sistema de prazos), e o aborto em hospitais sob a vigilância de profissionais codificados.

A liberdade é um poder de autodeterminação, em razão do qual a pessoa escolhe por si própria seu comportamento pessoal. A liberdade sexual, entendida como uma de suas mais importantes expressões, referida ao exercício da sua própria sexualidade, constitui-se no direito de exercê-la em plena liberdade. Note-se que se cogita de um valor intrinsecamente individual, desconectado de fundamentos ético-sociais. A conduta sexual é garantida desde que realizada entre adultos com pleno consentimento, e sua realização ocorra no âmbito privado.

A Constituição de 1988 estabeleceu o direito à vida, à dignidade e à igualdade. O ponto enfatizado é o direito à vida, fonte originária de todos os demais direitos constitucionais básicos, que englobam, em sua inviolabilidade, o direito à dignidade da pessoa humana, à privacidade, à saúde, à integridade física e moral, enfim, à própria existência. Há duas situações na esfera constitucional da segurança: a) o dever de respeitar a vida humana e b) o dever constitucional de protegê-la. A grande discussão na elaboração do texto da Carta Republicana de 1988 dizia respeito à inclusão do “direito a uma existência digna”. O texto constitucional não se refere ao recém-nascido, porém não haveria necessidade de tal especificação, visto que é inviolável o direito à vida erga omnes, incluindo-se, por óbvio, a intrauterina. Dentro dos direitos humanos, há uma escala lógica de limitações, inclusive entre os denominados básicos ou fundamentais, razão pela qual a vida do nascituro deverá ter um grau inferior à importância da vida do já nascido.

É imperativo que o Estado, na condição de tutor normativo dos reflexos socioculturais, outorgue sua proteção, ainda que conjuntural, dentro de sua realidade temporal. Efetivamente, as integridades física e psíquica e a vida em relação à genitora devem ser objeto de tipologias mais adequadas. O interesse democrático-estatal é predominante como bem jurídico conjuntural.

Na questão mais polêmica pertinente à exclusão de antijuridicidade, o Código Penal brasileiro de 1940, desde a década inicial da metade do século XIX, reza que, sendo sujeito ativo o médico, não se pune o aborto se: a) não houver outro meio de salvar a vida da gestante; b) a gravidez resultar de estupro e o aborto for precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. O texto do Esboço Evandro Lins já atendia às orientações das contemporâneas legislações sobre o tema, incluindo as saúdes física e psíquica da gestante, a possibilidade do nasciturus apresentar graves e irreversíveis anomalias que o torne inviável, como a cláusula de ser procedida com o consentimento da mulher ou do seu representante legal e, no caso de não concordância do cônjuge ou companheiro, a justificativa. A legislação brasileira, lamentavelmente, não inseriu a cláusula “grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida”. Quando se refere o texto legal não só à vida da gestante, deve-se entender também em sentido lato a sua futura qualidade de vida. A melhor solução seria a avaliação do quadro clínico por meio de um modelo integrado diante do especial caso concreto. A indicação médica ou terapêutica abrangeria em sentido global também os graves e irreversíveis requisitos cumulativos e não alternativos danos às integridades física e psíquica, no momento da evolução temporal da gravidez, diante do enquadramento conferido pelo avanço de conhecimento da ciência médica.

Grande parte dos sistemas de saúde nos países em desenvolvimento, independentemente da sua política em relação ao aborto induzido, não planeja sistematicamente ou fornece atenção médica de emergência de maneira eficaz para mulheres que sofrem de complicações a ele relacionadas. Como resultado, o tratamento frequentemente é postergado e ineficaz, com graves consequências e riscos à saúde da mulher.

A doutrina questiona se o aborto terapêutico possui caráter impositivo, dividindo-se em duas correntes: a) pode ser praticado contra a vontade da gestante, sendo dispensável a sua concordância ou a de seu representante legal, atuando o médico como garantidor no estrito cumprimento do dever legal; b) teria caráter meramente facultativo diante da ausência expressa ou da tácita vontade de a gestante querer correr o risco, ficando o atuar do médico restrito à sua consciência e ao dever deontológico. A posição do caráter impositivo é a que melhor atende à tutela do bem jurídico mais relevante, que é a vida humana.

Na questão pertinente aos injustos contra a vida intrauterina, a doutrina internacional tem estimulado a discussão parlamentar em torno de dois modelos: a) modelo das indicações, que significa que as soluções para a impunidade da interrupção da gravidez devem ter como patamar uma ideia de conflito de valores, e a solução é a regulamentação das indicações; b) modelo dos prazos: dependente ou não de um sistema de aconselhamento da mulher grávida, a questão resulta de um princípio de paridade do injusto de aborto em correspondência com a ideia de dignidade e proteção da vida intrauterina.

O anteprojeto de Código Penal brasileiro de 2012 propõe que não há crime de aborto, procedido com o consentimento da gestante, quando: a) houver risco à vida ou à saúde da gestante; b) se a gravidez resulta de violação à dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida; c) se comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que violem a vida extrauterina, em ambos os casos atestados por dois médicos; d) por vontade da gestante, até a décima segunda semana da gestação, quando médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade.

A tendência das legislações contemporâneas é no sentido da atenuação da pena privativa de liberdade para a mulher que provoca o aborto ou consente que terceiro lho provoque e, a contrário senso, aumenta-se a gravidade da pena imposta para o agente provocador. A vexata quaestio é altamente polêmica, e podemos resumir em três correntes básicas a orientação das legislações sobre o aborto: a) só é permitido em circunstâncias limitadas e excepcionais;
b) só é permitido por meio de processo de autorização;c) é permitido, embora prescrita condição-limite.

É um marco da jurisprudência americana o voto condutor do juiz Blackmun reconhecendo a privacidade pessoal, consequentemente, a decisão de abortar, mas que tal direito não carece de postulação e deve ser considerado diante de importantes interesses estatais em sua regulamentação. A Corte Suprema decidiu que a palavra pessoa, tal como é empregada na Emenda nº 14, não inclui o não nascido, e que a mulher grávida não pode ser isolada em sua privacidade, pois leva consigo o embrião e depois o feto, e qualquer direito à privacidade deve ser medido conjuntamente. Aduz, em seu voto, que o interesse do Estado na vida em potencial é a viabilidade, a capacidade de viver fora do útero materno. Daí a Corte Suprema, com patamar no direito à privacidade (right of personal privacy), ter dividido a gravidez em três períodos trimestrais: a) no primeiro trimestre, autoriza o aborto sem restrição; b) no segundo trimestre, reconhece a existência de um interesse do Estado em preservar a saúde da mãe e autoriza restrições referentes à forma como o aborto poderia ser realizado; c) no terceiro trimestre, reconhece um interesse do Estado em preservar a vida potencial, de modo que, inclusive, pode proibir o aborto nesse período, salvo se ocorrer perigo de vida ou saúde da mãe.

Portugal promulgou, em 10 de abril de 2007, a lei que descriminaliza a interrupção voluntária da gravidez nas primeiras dez semanas. O novo diploma legal estabelece um período de reflexão da mulher “não inferior a três dias a contar da data da realização da primeira consulta”, destinado a proporcionar o acesso à informação relevante para a formação de sua decisão livre, consciente e responsável. A consulta é obrigatória e compete ao estabelecimento de saúde oficial onde se pratique a interrupção voluntária da gravidez garantir a sua realização em tempo útil. Os estabelecimentos são obrigados a encaminhar para uma consulta de planejamento familiar as mulheres que solicitem a interrupção voluntária da gravidez e, caso seja de sua vontade,  a enviar para outro estabelecimento que deve dispor de serviços de apoio psicológico e de assistência social específica. Os médicos e demais profissionais de saúde ficam vinculados ao dever de sigilo (atos, fatos e internações), assegurado o direito à objeção de consciência. Ainda no âmbito da consulta, consideram que a mulher deve ser informada sobre: a) “o nível de desenvolvimento do embrião”; b) os métodos utilizados para interromper a gravidez; c) as possíveis consequências desta para a sua saúde física e mental.

É certo que, em uma visão democrática, o planejamento depende da livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito. Constitui princípio constitucional fundamental a dignidade da pessoa humana, e, nas relações internacionais, o Brasil rege-se pelo princípio da prevalência dos direitos humanos. Delegações de 180 países aprovaram uma proposta brasileira em relação ao aborto, chegando a um consenso sobre o tema na conferência da ONU sobre a população (1999). O texto diz que os sistemas de saúde pública “devem treinar e equipar pessoal da área de saúde e tomar outras medidas para garantir a realização de abortos seguros e acessíveis” nos países onde a interrupção da gravidez seja considerada legal. É, acima de tudo, uma questão de cidadania, de viver com dignidade e de ter controle sobre a própria vida sexual e reprodutiva.

A Universidade de Brasília, em parceria com o Instituto de Bioética e financiada pelo Fundo Nacional de Saúde, em estudo premiado dos professores Marcelo Medeiros e Debora Diniz (2010), apresenta os primeiros resultados da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), produto da entrevista estratificada de 2.002 mulheres alfabetizadas com idades entre 18 e 39 anos, que indica que, aos 40 anos, mais de uma em cada cinco já fez o aborto, sendo que é mais comum entre as de menor escolaridade e que a religião não é um fator importante para a diferenciação em relação à sua prática.

O Supremo Tribunal Federal destacou, ao julgar a ADPF 54/DF, Pleno, rel. Min. Marco Aurélio, j. 11 a 12/4/2012, que:

(…) a locução sobre a proteção de Deus, constante no preâmbulo da Constituição, não seria norma jurídica. Logo, enfatizou-se que o Estado seria simplesmente neutro – não seria religioso, tampouco ateu. (…) Ressaltou que as garantias do Estado secular e da liberdade de culto representariam que as religiões não guiariam o tratamento estatal dispensado a outros direitos fundamentais, tais como os direitos à autodeterminação, à saúde física e mental, à privacidade, à liberdade de expressão, à liberdade de orientação sexual e à liberdade no campo da reprodução.

O Programa Nacional de Direitos Humanos indica a opção pelo fortalecimento da democracia no que tange às igualdades econômica e social, razão pela qual, após consulta à sociedade civil, ampliando e dando visibilidade à discussão temática, poderíamos melhor adequar a legislação pátria à modernidade normativa, atendendo aos reais postulados de nossa sociedade em novos tempos. A norma penal é o fotograma da sociedade ao seu tempo histórico.

A nossa posição é na direção da evolução das legislações contemporâneas de legalização da interrupção voluntária da gravidez nas primeiras doze semanas, estabelecendo-se o período de reflexão, destinado a proporcionar o acesso à informação e à decisão livre e consciente após consulta obrigatória ao órgão oficial de aconselhamento, garantida sua realização em tempo útil, observado o dever de sigilo e assegurado aos médicos o direito à objeção de consciência. A assessoria contribui para que a mulher tome uma decisão responsável e consciente diante do conflito com a gravidez. É uma questão de saúde pública na direção de garantir à mulher o próprio controle de suas fertilidade, saúde e futura prole, o que não deixa de ser uma questão abarcada pelos direitos humanos em um Estado social e democrático de direito.

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Palestra realizada no Seminário Internacional de Direito Penal e Criminologia em 31 de outubro de 2012, no auditório da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, na oportunidade em que os professores doutores Claus Roxin e Dirk Fabricius receberam os títulos de Doutores Honoris Causa da Universidade Gama Filho.