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Futuro das constituições no mundo neoliberal

5 de dezembro de 2002

Juíza Titular da 7ª vara Federal no RJ, Doutora em Direito, Comunicação e Cultura e Mestra em Advocacia de Empresas, professora, escritora e conferencista.

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“Estou cansado de ter sonhado, porém não cansado de sonhar, de sonhar ninguém se cansa.”

Fernando Pessoa

Usualmente, a introdução acadêmica para este assunto derivaria das indagações: o que é uma constituição, como surge e como funciona? Fugindo um pouco a praxe jurídica de examinar apenas as constituições, justificada na tecnicidade de sua ciência para este assunto, aceitamos o desafio de invadir o futuro pela analise contextual e a certeza de ser a constituição um instrumento político por excelência. Partimos da premissa que os aspectos técnicos, relativos as constituições são já por demais conhecidos.

O primeiro aspecto político, em relação ao qual a constituição significa um avanço, e o PODER. O poder em todas as suas dimensões, inclusive psicológica, como único favor de estabilidade emocional para muitas pessoas envolvidas com o seu exercício. O poder fascina, o poder embriaga, vicia e desconhece medidas, a não ser as da própria natureza física e humana. Histórica e permanentemente verificamos que o acesso ao poder se da por quatro caminhos básicos: o da força (armas), o mágico-religioso, o econômico e o político, segundo a “teoria da captura”. Sem grandes digressões, qualquer exemplo que lhe ocorra pode ser enquadrado em uma destas hipóteses, inclusive a atualíssima revolução do Irã, de cunho eminentemente mágico-religioso, cujo líder, do exílio em Paris, comandou seus soldados de fé até a sua vitória, para que não se diga que este caminho pertence a situações bastante pretéritas.

Os caminhos utilizados para a captura do poder também são utilizados para o seu exercício, inclusive na atualidade e nos sistemas que se dizem democráticos. A ciência política, quando examina o poder, sua captura e exercício, pouco se derem no direito; por obviedade, entende-o como pane do discurso político, eivado de argumentos mágico-religiosos e ainda assim quando o exercício do poder e praticado com limites. Para ficarmos em duas modalidades, primeiro, o poder é absoluto (designação histórica para as monarquias absolutistas), quando, no seu exercício, não há obstáculos, freios ou limites; o titular pode tudo, e o senhor de vida e morre dos indivíduos e todos os bens lhe pertencem ou são utilizados em seu nome, enquanto ele autorizar. Parece que ainda existe uma pequena ilha no Pacífico, onde o Xeique é o senhor de tudo (Brunei). Em situações como essas, não se pode falar em direitos e se existem, a fonte é uma só. A lei só constitui direitos quando o poder, por um dos quatro caminhos acima ou sua combinação, for limitado, olhemos para a primeira constituição da história, a Carta Magna do João Sem Terra, em 1215. Não há outra possibilidade: para que os direitos pessoais existam e sobrevivam, é preciso empurrar o poder para dentro de limites que são, ao mesmo tempo, os próprios direitos. É como uma lei de física: poder e direitos não ocupam o mesmo lugar no espaço e no tempo. Ainda no campo da física, o poder funciona como um gás auto-dilatável, que ocupa todos os espaços, mas pode ser comprimido em duros pré-estabelecidos, com a vocação “natural” de romper a qualquer momento os seus invólucros. Criar e manter direitos é a eterna vigilância do poder e a constante criação de limeis ao seu exercício, neste segundo modelo ele deixa de ser absoluto.

É por está condição que nasce a constituição, a lei, principalmente no Estado moderno, que passa a ser o Estado Nação porque o exercício do poder é limitado, razão para a existência da cidadania, condição das pessoas que são titulares de direitos. As pessoas e grupos que conseguem comprimir o poder em novos escaninhos também se valem dos meios de captura, já apontados, cujos exemplos conhecidos se deram dentro das fronteiras nacionais.

Assim, a nossa premissa básica é está: a constituição de direitos e da cidadania jurídica, política e social e a limitação permanente é vigilante do poder em todas as suas formas. Noção fundamental nas consciências modernas para o convívio democrático, exercício das liberdades individuais e o respeito ao que é de cada um por seus méritos. Não é uma experiência histórica apenas dos últimos duzentos anos. Fustel de Coulanges nos mostra, em CIDADE ANTIGA, que as cidades-estados tiveram as suas constituições, razão de sua natureza de estado. Os modelos formam um caleidoscópio interessante, onde se pode verificar a dicotomia dos espaços entre o exercício do poder e as regras de convivência.

A era do constitucionalismo é inaugurada com a Revolução Francesa e teve seu toque de largada na constituição da cidadania através da Declaração Universal dos Direitos do Homem, pondo fim ao poder que era absoluto. Foi seguida pelo Código Civil napoleônico, como lei regulamentadora das normas constitucionais; só mais tarde aquele país elaborou um documento síntese das normas gerais constitutivas. A Inglaterra, até hoje, não possui apenas um documento para a sua constituição, mas várias leis fundamentais.

A era moderna, em seu primeiro século, não se caracteriza como a “era dos direitos”, pelo menos para a população. As análises jurídicas desse período são um tanto românticas ou idealizadas. A burguesia havia preparado o caminho para chegar ao poder do qual não participava e dele se apossou, em nome do povo, para o dominar até hoje, sempre no seu exclusivo interesse e em nome das modernidades e outros valores jamais usufruídos pela população. O século XIX teve entre as suas marcas, no plano jurídico, como cidadania, apenas a jurídica, que significa o reconhecimento da personalidade jurídica para cada individuo, mas os direitos consagrados na Declaração só valeram para os burgueses e a nobreza remanescente. No plano político e econômico, aquele século teve outras expressões. Segundo Karl Polanyi, em A GRANDE TRANSFORMAÇÃO (“Este é um livro que torna todos os outros já editados sobre o assunto parecerem obsoletos ou desgastados” R.M. Maclver), no século XIX a civilização ruiu e quatro instituições garantiram o seu sucesso: a) o equilíbrio de poder, para a política internacional; b) o padrão ouro, para a economia internacional; c) mercado auto-regulável, para as economias nacionais; d) o estado liberal, exercício político no interior de cada país. Essas medidas, em primeira mão, garantiram cem anos de paz, de 1815 a 1914, fenômeno sem precedentes. As guerras registradas fo­ram rápidas, esporádicas e insignificantes se comparadas aos séculos anteriores, onde a media de anos de guerra fora de 67 anos. Uma paz garantida por essas instituições e na qual a haute finance, fator anônimo, “…foi o núcleo de uma das mais complexas instituições que a história do homem já produziu,” (1) A haute finance, por seus banqueiros internacionais, financiava tudo: governos, indústrias, serviços, corporações públicas, empréstimos a longo prazo inclusive a particulares. Para a haute finance a lucratividade e o retorno dos capitais dependiam da paz entre os países que possuíam suas fronteiras bem demarcadas e o nacionalismo como valor. Para esse fim, o estado liberal foi o instrumento apropriado, não intervindo no campo econômico e utilizando a sua força para sufocar a população, diga-se trabalhadores, que jamais haviam sido tão explorados. A paz entre os países, garantida pelas instituições já referidas, permitiu que os “moinhos satânicos” crescessem, aperfeiçoassem suas técnicas e exaurissem a mão de obra.

Nesse contexto, visto rapidamente através da brilhante tese de plonanyi, que usou a história, a economia, a política, a sociologia e a antropologia, mas sem nenhuma referencia ao direito, a maior parte das nações européias redigiram as suas constituições, cujos conteúdos, em suas letras frias, contemplavam todos os nacionais, mas, na prática, a população (excluídos os ricos e seus aliados governantes) seguiu um século inteiro com sua cidadania primaria, apenas jurídica, e explorada, com significativas perdas humanas e civilizatórias: basta a imagem do camponês expulso do Campo e transformado em trabalhador mendigo na cidade. O estado liberal só praticava o laisses faire, laisse passe para os ricos empreendedores; os trabalhadores estavam proibidos de tudo, inclusive de se organizarem em associações, pela figura do crime de coalizão. Nunca o estado fez tamanha intervenção no plano sócio-­político, por isso não se pode dar a ele o qualificativo de não interventor. As final corriam soltas em mercado auto-regulável, mas quem produzia a riqueza estava sob um regime mais cruel que a escravidão, “livres para morrer de fome”.

É certo que o mercantilismo rompeu com os limites físicos. Em seu nome, todo o globo ficou conhecido e começaram o mapeamento das riquezas naturais. No século XIX, não é mais o grande fator econômico, nele o poder se desloca para um aparente fator anônimo – as altas finanças, acima das fronteiras, das religiões e das ideologias, Este é o fato político-econômico, iniciado-a e que só se fortalecia em todos os seus reveres, capital financeiro com vínculos nacionais mas de aplicação transnacional, graças ao padrão aura e o equilíbrio de poder governamental. Se as instituições, no século seguinte, não são as mesmas; se os lideres capitalistas ficaram mais ambiciosos, rompendo com o equilíbrio de poder; se o estado, para conter a concorrência desleal e os movimentos sociais, transforma-se em interventor; se o padrão Duro deixou de ser o mecanismo financeiro internacional, etc.; as altas finanças continuaram ainda assim internacionais. Esta internacionalidade do poder financeiro não pode ser desprezada na analise do futuro das constituições.

O papel da constituição, nesta realidade, não pode ser visto apenas em relação aos poucos que se beneficiam com o seu conteúdo para declarar a sua eficácia transformadora, assim como a sua importância sócio-econômica-política. O povo, em nome de quem todas foram redigidas, teve que se organizar e se revoltar, mas sua força foi rigidamente contida até a I Guerra Mundial. Na pratica, a realidade mudou quase nada para a população ao longo do século a não ser a expulsão do campo para a miséria das cidades. Ah! A miséria também foi invenção da revolução industrial. Pobreza sempre existiu mas este ingrediente é absolutamente novo.

O século XX tem semelhanças, vantagens e desvantagens em relação ao anterior. No plano da criação de direitos, destaques especiais, não doados como benesses da classe dominante, mas conquistados em duras e Sangrentas refregas pelos movimentos sociais. Sempre que o interesse do poder se volta para o plano internacional, ficam brechas internas que podem ser aproveitadas pela população e negociação de direitos. A I Guerra Mundial é um marco nesse sentido, principalmente em relação a Rússia e a Alemanha, guardadas as diferenças. Graças a luta popular, a cidadania cresceu para a dimensão política e social, compreendida, na primeira, o sufrágio universal e, na Segunda, os direitos trabalhistas e previdenciários. As constituições, elaboradas a partida, no caso as brasileiras, espelham, sempre é cada vez mais, as chamadas conquistas populares ou democráticas: o habeas corpus, o mandado de segurança, o direito adquirido, a coisa julgada, o ato jurídico perfeito, educação e saúde como dever do estado, a inalienabilidade das garantias individuais, inclusive o direito de propriedade. Os direitos individuais, no plano da lei, cresceram, mas na realidade boa parte da população ainda não usufruiu o seu resultado. Enquanto isso, os doutrinadores classificam os direitos individuais essenciais em cidadanias (jurídica, política e social) ou em gerações (direitos de 1ª, 2ª e 3ª gerações), compreendida ai como ultima (a 4ª), os direitos humanos. O discurso político, governantes e mídia exageram a sua existência, criando no inconsciente coletivo a idéia de que há “direitos demais e obrigações de menos”. Houve avanços, assim como crescimento econômico dos países, com algumas vantagens para os cidadãos.

Enquanto isso, no plano internacional, o equilíbrio de poder, antes assegurado pelas instituições mencionadas e o esforço da Santa Aliança, obra-prima de Metternich, e o Concerto da Europa, que lhe sucedeu, vai depender da bipolaridade ideológica, embora não faltassem idéias para repetir a fórmula, como a Liga das Nações que não passou do papel. A divisão do mundo em dois focos de poder, depois da II Guerra Mundial, definiu o papel das armas a serviço do interesse econômico e colonialista (as áreas de influencia e dominação). Ainda assim, a criação da ONU – Organização das Nações Unidas – partiu do princípio de que o poder internacional deveria ser um “concerto” de nações ou multilateral. A ONU pode desempenhar o seu papel em relação ao fim do colonialismo formal e teve uma certa influencia na bipolaridade ideológica. É claro que mil coisas foram feitas para não repetir os erros do passado, em todos os campos, mas não é o nosso propósito uma analise detalhada, queremos ao contrário chegar aos dois aspectos fundamentais que caracterizam o final do século XX: a hegemonia dos Estados Unidos e a riqueza desterritorializada pela estratégia neoliberal globalizante.

A queda do Muro de Berlim significa o fim da grande transformação, aquela que possibilitou, acima de tudo, a constituição de direitos individuais e o aperfeiçoamento de sua prática. O ciclo que se encerra é aquele onde a sociedade organizada teve espaço e força para negociar. A opressão governamental, a cumplicidade do legislativo e do judiciário e mais, a nova força da mídia, decretaram o fim das organizações sociais: os sindicatos, as associações de moradores, os movimentos naturalistas, ou seja, as diferentes expressões do povo foram mortas no apelo ao consumo, onde ganhar qualquer coisa é mais importante que lutar, mais importante que valores como liberdade, autonomia e livre determinação. As pessoas trocaram a cidadania pelo consumo, conformadas a isto pela lavagem cerebral do discurso único e ameaçadas pela insegurança econômica, política e social. Se o século XIX ruiu com a civilização humanista, o capitalismo hegemônico exterminou com a civilização coletivista, experiência inédita para os oprimidos em seus países e no plano internacional. As lutas sociais chegaram a seu termo porque as pessoas não as desejam mais, no apelo da comodidade, conforto.

Afastadas as possibilidades de rebeliões sociais internas, as instituições políticas recebem o novo papel de garantir aos planos e projetos internacionais, ou seja, a absoluta rentabilidade do capital financeiro, sua circulação livre e desimpedida. É verdade que se reclama para este (novo) cenário uma espécie de ordenamento jurídico internacional. Antonio Negri, no seu recém lançado livro o IMPÉRIO, retoma o papa do positivismo jurídico Hans Kelsen, para dizer que ele foi o único sensível a esse contexto e já lançou as bases do que poderá vir a ser uma “constituição” inter-países. A Comunidade Européia já é alguma coisa neste sentido, mas será que o país mais poderosos do mundo vai aceitar? Os Estados Unidos praticou a multilaridade quando a isto esteve obrigado, a bipolaridade enquanto suas vantagens fossem admitidas, mas tem agido unilateralmente para esvaziar a ONU, manter os seus espaços geográficos de dominação e impor a Comunidade Européia o novo papel da OTAN. Para isso, foram criadas novas instituições de sua política econômica, no acordo de Breton Woods: o FMI, o BIRD e o dólar como moeda internacional em substituição ao padrão ouro. E outras continuam sendo criadas como a OMC, a OMS, para implementar, fiscalizar e julgar os acordos econol1licos em todas as áreas, inclusive serviços, como saúde e educação. Se, para os organismos internacionais, os países indicavam os seus representantes e uma certa multilaridade era vivenciada, para essas instituições e o capital, e apenas este, que determina quais serão os seus agentes. Claro que a atuação das mesmas tem como suporte a força bélica e o marketing dos líderes dos países ou país que lhes dão sustentação. O Tribunal de Haia está reservado aos crimes internacionais, na nova feição de julgamentos shows (na sociedade do espetáculo, a população e constantemente amortecida por shows; até missa e enterro viram “circo”). Não é para outro fim que já existe a TV Senado/Câmara e, agora, vamos ganhar a TV Supremo.

O crescimento econômico, a explosão tecnológica, principalmente nos meios de comunicação, o amortecimento das reivindicações sociais e o fim da bipolaridade ideológica, marcada com a queda do muro de Berlim, prepararam o caminho para o fim do estado interventor, a volta dos mercados auto-reguláveis nos dois planos, nacional e internacional, na sistemática liberalizante do século XIX, cujo fator novo a destacar e a velocidade. O discurso político de repercussão no mundo jurídico fala em substituir o “estado-nação” pela “empresa ­estado” e isto vem acontecendo, de forma sistemática, sem que a maioria das pessoas se dêem conta. Entre os faros mais evidentes desta mudança, destacamos: os líderes de governo se transformaram em garotos-propaganda de interesses exclusivamente empresariais e só justificam os seus atos para as câmara de comercio ou colégios de empresários; as instituições do estado do bem estar social foram demolidas (umas de imediato e outras lentamente); os serviços públicos, precarizados e depois terceirizados; os direitos essenciais, apagados da memória popular e os indivíduos, transformados em consumidores, para isto o Código Civil foi resumido em uma lei específica, substituindo-se a cidadania pelo consumo, que não esta ao alcance de todos. Podemos dizer que, neste confronto do “econômico” com a cidadania, este status foi deslocado das pessoas para o sujeito daquele que são as empresas, visível no flagrante tratamento diferenciado nos projetos governamentais. As empresas são preferenciais em tudo e as pessoas cabe apenas o sacrifício permanente de salvar e manter a ordem econômica, seu crescimento e lucratividade. Costumamos apontar esta situação como um deslocamento de cidadania, das pessoas para as empresas, lembrando que a constituição e a lei que garante os direitos das pessoas, limitando o exercício do poder para que a cidadania possa existir. O artigo 5º da nossa Carta Magna e todo voltado para as pessoas naturais, únicas titulares do status de cidadão, ali não são contempladas as empresas, embora o direito lhes empreste personalidade jurídica ficcional para a realização de certo atos, através de pessoas físicas, seus representantes. A empresa pode ser proprietária de bens e imóveis, mas ainda  não vota e nem pode ser candidata a presidência da Republica, não goza de direitos previdenciários e não pode invocar os direitos essenciais e humanos, apesar disto ela pode tudo. É claro que não estamos nos referindo as micro-empresas, às familiares e às de fundo de quintal. Essas se confundem com os trabalhadores e só são invocadas, quando as medias e grandes querem aumentar os seus privilégios. A síntese desta transformação, para mim, está na seguinte conclusão: a ausência de risco nas atividades empresariais, porque repassado para os pequenos empreendedores e trabalhadores, nos exemplos gritantes da política energética, vulgo “apagão” e na redução de impostos para reduzir o preço dos combustíveis, implorando-se, demagogicamente, aos comerciantes que diminuam a sua margem de lucro. Desde quando a redução de impostos e sinônimo de lucro? Desde que as empresas incorporaram em seu patrimônio as arrecadações que deveriam repassar ao fisco.

Como isto se refere na Justiça? Da mesma forma, as empresas recebem um tratamento privilegiado, reforçado pela mídia. Quando os cidadãos conseguem o reconhecimento de seus direitos, isto é logo tratado de “industria de qualquer coisa”: “indústria” de liminares para o bloqueio de cruzados e liberação de FGTS e, agora estamos em fase de “industria” do dano moral. O que os integrantes do judiciário não podem esquecer e que, privilegiando as empresas, não estarão salvando a Justiça dos seus novos rumos. Em primeiro lugar, os senhores do mundo, proprietários dos “moinhos satânicos”, não necessitam das justiças nacionais … quem resolve negociações e fusões de bilhões e trilhões de dólares não vai entregar causas significativas para um juiz de 22 anos, nem mesmo para o de 50 anos; a justiça, para o econômico, ainda é conveniente quanto aos negócios locais, mas os mais importantes devem ser chancelados em outros foros, como a venda do controle da CAEMI, teve que TER a aprovação da Comunidade Européia. Em segundo lugar, como o Judiciário sempre foi parceiro do econômico, a sua precarização está acontecendo rapidamente, no fim programado da Justiça do Trabalho, pela extinção dos direitos trabalhistas; no “inchaço” programado da justiça Federal com as questões previdenciárias, de servidores públicos, e execuções fiscais de pequena monta; o fim do poder geral de cautela do juiz natural na nova modalidade do agravo de instrumento, verdadeira desconstituição do juiz, como autoridade legitimada pela reivindicação de justiça imediata; na criação da justiça dos pobres (juizados especiais), mantidos agora nas suas periferias, para que não tenham nenhum motivo para freqüentar os centros urbanos, cuja arquitetura e elegância está voltada apenas para as empresas e seus negócios. Duas populações estão fora da justiça: os ricos porque a desprezam (REBELIÃO DAS ELITES de Cristophe Lech) e os pobres, em nome da celeridade e gratuidade. Mas, enquanto a classe média existir e as pequenas e medias empresas ainda forem nacionais, a justiça convencional ainda pode desempenhar o seu papel se respeitar a ordem jurídica; todavia, a mesma descrença do trabalhador e aposentado já tomou conta desta classe, pois foi a primeira a trocar a cidadania pelo consumo por não conseguir trabalhar as suas perdas econômicas, reage furiosa e raivosamente.

Em terceiro lugar, a ordem jurídica absolutamente desestabilizada pelo desrespeito escandaloso a Constituição Federal nesta “kafkiana” produção de medidas provisórias. Não existe mais um ordenamento jurídico que possa ser apresentado para o cidadão comum e em nome do qual ele possa exercer os seus direitos, porque o emaranhado de regras contraditórias e cerceadoras desestabilizam os próprios profissionais desta área. O brasileiro ainda vive ordeiramente, mas no reflexo de uma ordem jurídica anterior, dando-­se conta de que não mais existe segurança pública, educação, saúde, transporte, serviços e assistência social para crianças e adolescentes abandonados, idosos e deficientes físicos, detentos e suas famílias, Por óbvio, isto acontece em parceria com o Supremo Tribunal Federal, onde ministros se declaram representantes do executivo e a mídia persegue, como atuação criticável, os ministros que ainda fazem cumprir o texto da Lei Maior. Fabio Konder Comparato tem escrito peças memoráveis, apontando os casos e situações em que o Supremo desconhece a ordem jurídica para atender interesses governamentais, melhor dizendo, interesses econômicos conhecidos. Suas analises são profundas, técnicas, deixando a certeza de que aquela sistemática constitucional, construída em difíceis embates políticos, não é mais resguardada pela maioria do judiciário. Ainda existe um texto constitucional, retalhado em dezenas de emendas, descaracterizado naquilo que foi imposto pelas emendas populares, pela democrática participação da sociedade civil organizada. As teses nucleares das emendas populares já foram desmanchadas, como a isonomia dos servidores públicos aposentados com os ativos, dos civis com os militares, a sua garantia de emprego (a do trabalhador celetista jamais entrou em vigor, art. 7°, inciso I, da CF/88). Cada vez mais o direito adquirido e anulado, nos exemplos: a idade mínima para a aposentadoria, a redução dos proventos de aposentadoria, a redução salarial, a negociação coletiva além dos limites legais etc.

Estabelecido este rápido quadro contextual, em nome da brevidade e da certeza de ser conhecido por todos, pode­-se visualizar, em bases reais, o futuro das constituições, principalmente a dos países subordinados e de liderança comprometida. As empresas possuem os seus próprios regulamentos e os impõem tiranicamente. Democracia, dialogo e liberdade fazem parte de um mundo que começa da porta da em presa para fora. No seu interior, só é respeitado o Código Penal. Ao trocar o estado-nação pela empresa-estado poucos se dão conta de que as constituições jamais vigoraram plenamente nas propriedades privadas. Ao privatizar o estado, extingue-se o público, único espaço onde é possível limitar o exercício do poder. Foi sempre em nome da modernidade que o econômico expandiu-se, comprimindo e subjugando os indivíduos aos limites, agora próximos da idade media e da exploração humana do século XIX.

O caminho de retomada do exercício de direitos e longo, mas não impossível; ele é necessariamente cultural e, não será feito pelas elites. Hoje, ele depende de todos os que possuem a certeza de que a instrumentalidade do econômico e do estado devem estar a serviço do homem, de rodos os homens, mulheres, adolescentes e crianças. Não é preciso restabelecer a ordem jurídica anterior, também não era boa e perfeita, mas aproveitar as suas lições e as experiências destes embates para ajustar os meios para uma cidadania solidaria e justa. Para isto, alguns pressupostos são indispensáveis: participar do poder político; reaquecer as lutas sociais; devolver ao povo o gosto pela participação ativa nas questões políticas importantes; devolver a dignidade e respeito ao Parlamento e a representatividade; assumir a justiça dos pobres pela via do voluntariado ou reivindicá-la para a criação do Poder Judiciário Municipal, onde podem ser criadas ilhas de excelência exemplares; fazer fóruns sociais nacionais ao ponto de termos mais representatividade que o Parlamento. Enfim, tudo o que for possível para comprimir o poder aos limites da cidadania ativa e absoluta, porque uma constituição só existe e tem futuro, principalmente no cenário impar que estamos vivendo, se a pessoa desejar o status de cidadão, lutando incessantemente para isto. A constituição é uma lei que só tem sentido neste cenário, o futuro de seu conteúdo depende deste querer e agir.

“Quando tiverdes conseguido formar a cadeia de idéias na cabeça de “Vossos cidadãos, podereis então “Vos gabar de conduzi-los e de ser seus senhores. Um déspota imbecil pode coagir escravos com correntes de ferro; mas um “Verdadeiro político os amarra bem mais fortemente com a corrente de suas próprias idéias; e no plano fixo da razão que ele ata a primeira pontuação; laço tanto mais forte quanto ignoramos a sua tessitura e pensamos que é obra nossa; o desespero é o tempo roem os laços de ferro e de ato, mas são impotentes contra a união habitual das idéias, apenas conseguem estreitá-las ainda mais; e sobre as fibras moles do cérebro, funda-se a base inabalável dos mais sólidos impérios.” (J. M. Servan ­Discours sur L’administration de la jus­rice criminelle, 1767, p.35 – in Michel Foucault Vigiar e Punir, 8ª ed., Petrópolis, Vozes, 1987)