Entre uma data no calendário, um anúncio de emprego e um programa empresarial

5 de novembro de 2020

Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra)

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 O que ainda persiste no desigual  mercado de trabalho brasileiro?

A preocupação com a dignidade no trabalho e a desarticulação imposta por desigualdades estruturadas e estruturais do mercado são temas não apenas relevantes, como urgentes. Entre a data de um calendário, um anúncio no jornal e um programa para trainees, o que há de velho-novo no cenário nacional?

As referências comemorativas de um calendário podem servir ao exercício coletivo de memória. Pensando no dia 20 de novembro (Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra – Lei nº 12.519/2011), o seu marco é o do contraponto ao tradicional 13 de maio (Assinatura da Lei Áurea). Isso ocorre porque o regime de escravidão e as práticas discriminatórias não se encerram quando um documento jurídico o declara, embora os reconhecimentos formais sejam, sem dúvida, importantes. O respeito à igualdade e à diversidade permanece como um desafio social e jurídico. A cidadania no trabalho significa participar e se inserir no mercado de trabalho de forma igualitária, efetivamente, e não apenas formalmente.

Em novembro de 2006, a Organização dos Estados Americanos (OEA) condenou o Brasil por não punir um caso de racismo, sofrido pela trabalhadora Simone André Diniz, cometido no acesso ao emprego. Segundo os peticionários, que levaram o tema à Corte, em 2 de março de 1997, Aparecida Gisele Mota da Silva fez publicar em jornal de grande circulação anúncio de emprego para contratar empregada doméstica que preferencialmente fosse pessoa de cor branca. Quando Simone tentou, mesmo assim, se candidatar à vaga, foi perguntada sobre a cor da sua pele e, de pronto, rechaçada por supostamente não preencher o requisito definido. A discriminação racial foi, primeiramente, levada ao conhecimento da Subcomissão do Negro da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo. Houve formalização da notícia do crime à delegacia especializada e foi instaurado inquérito policial. Nada obstante, o Ministério Público, que teria legitimidade para a ação penal pública, se manifestou pedindo o arquivamento do feito, e, posteriormente, sobreveio sentença do Juiz de Direito no mesmo sentido.

O Brasil foi condenado não em razão, exclusivamente, da publicação do anúncio discriminatório e do bloqueio de acesso ao emprego sofrido pela trabalhadora em razão da raça, mas, sim, porque, além da violação ao primado da igualdade, as instituições formais de justiça no Brasil falharam e não lograram reparar o dano e coibir a prática. Foi a primeira vez que um País do continente teve sua responsabilidade reconhecida pelo sistema interamericano de direitos humanos em razão do ilícito da discriminação racial. A despeito disso, a sentença internacional, e os seus termos, são pouco conhecidos ou debatidos nacionalmente, o que seria muito importante para a construção interna de uma outra trajetória em favor da igualdade de oportunidades, notadamente no âmbito institucional do sistema de Justiça.

De 2006 até agora muito pouco mudou em termos de efetividade de políticas públicas, corporativas e/ou judiciárias que tenham como horizonte o respeito à diversidade e o combate ao racismo. É possível que, dentre as múltiplas razões, concorra a possível naturalização social da exclusão em um País que, a despeito do seu potencial e gigantismo, é o sétimo mais desigual do mundo, para cujo coeficiente é considerado fator de distribuição de renda, ficando atrás apenas de nações do continente africano.

Recentemente, um dos assuntos que tem preocupado os cidadãos e as cidadãs no Brasil é o elevado índice de desemprego. O número de pessoas desocupadas chegou a 13,5 milhões em setembro de 2020, equivalente a 14% dos trabalhadores e das trabalhadoras, sendo essa a maior taxa mensal da série histórica do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dados oficiais escancaram as dificuldades nacionais na trajetória de uma construção coletiva de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, da Constituição), especificamente quando se observa a existência de um mercado de trabalho estruturado de forma desigual e excludente.

Sobre a ineficiência das políticas adotadas, de maneira sistemática, e não surpreendente, nota-se, ainda segundo o IBGE, no tema rendimento, que homens brancos estão em vantagem no mercado de trabalho em relação às mulheres brancas; as mulheres brancas estão em vantagem quando se trata das mulheres e dos homens pretos ou pardos; a maior distância se encontra entre homens brancos e mulheres pretas ou pardas. De fato, as mulheres pretas ou pardas recebem menos da metade do que os homens brancos auferem (44,4%). Os homens pretos ou pardos, por sua vez, possuem rendimentos superiores somente aos das mulheres dessa mesma cor ou raça (razão de 79,1%, sendo a maior entre as combinações). Significativa maioria de pessoas brancas se encontram em cargos gerenciais ou de mais alto escalão. A maior informalidade está presente entre as pessoas de cor ou raça preta. A subrepresentatividade, nesse contexto, é evidente, considerando que quase 56% da população brasileira é preta ou parda, para usar as mesmas expressões do IBGE. Em síntese, maior parcela da população brasileira (56%), os negros e as negras estão em desvantagem no mercado de trabalho, apresentam os piores indicadores de renda, condições de moradia, escolaridade, acesso a bens e serviços, e estão mais sujeitos(as) à violência e a terem baixa representação em cargos de gerência.

Trata-se de um comportamento estrutural, de assimetria não neutra no mercado, para muito além, portanto, de exclusões sentidas e vivenciadas como individuais. O tratamento igualitário é uma perspectiva da cidadania, embora a indivisibilidade dessas noções nem sempre tenha estado clara no Brasil. Historicamente, em especial quando se discute os problemas relacionados aos índios, aos negros e às mulheres nos períodos do Brasil Colônia e do Brasil Independente, nota-se que, embora adotasse um status includente, a cidadania nacional brasileira não era igualitária, ou, dito de outra forma, a igualdade não era uma expectativa vinculada à cidadania. James Holston fez esse resgate e menciona que, “na verdade, a palavra igualdade nem aparece na Constituição de 1824 (…). Está surpreendentemente ausente do art. 179, que define os direitos do cidadão copiando, em quase todos os outros aspectos, a Declaração dos direitos do homem e do cidadão francesa”.

O Texto da Constituição de 1988 oferece um quadro que contrasta com essa descrição. Encontra-se proibida expressamente a diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil, assim como qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência e, ainda, a distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos (art. 7º, incisos XXX, XXXI e XXXII). O elenco constitucional não é exaustivo. A previsão normativa expressa a tentativa de eliminar esses e outros itens que possam obstar o acesso igualitário aos postos de trabalho.

É certo, porém, que concepções jurídico-formais, voltadas à leitura interpretativa desses dispositivos, tomados na sua literalidade, para desvendar o alcance da proteção jurídica trabalhista no tema da inclusão e da não-discriminação, em geral, tendem ao distanciamento da realidade e à posição refratária à adoção de medidas concretas de ações afirmativas, sob o pretexto, nunca comprovado, de discriminação inversa.

Recentemente, esteve presente nos debates públicos o caso Magazine Luiza, cuja empresa, reconhecendo o déficit de representatividade racial em seus quadros, resolveu adotar uma política corporativa, enquanto típica ação afirmativa empresarial, que auxiliasse na promoção de uma reparação histórica, mediante a seleção apenas de negros e negras no âmbito de um programa lançado de trainees. Alguns discursos jurídicos pautados em uma suposta literalidade constitucional, ou em um vago princípio da razoabilidade (razoável na perspectiva de quem?) ou, ainda, em uma tese de discriminação inversa não tardaram a ser proferidos para contrariar e criticar essa (rara, ressalte-se) postura no âmbito da iniciativa privada. Nesse último aspecto, alerta interessante foi feito por Feliciano & Siqueira, ao indagarem se criar um programa de trainees, restrito a negros, seria o mesmo que praticar “racismo reverso” contra os brancos. Segundo eles, “poderíamos responder a isto com outra pergunta: o quão comum terá sido, nos últimos cem anos, negar-se a um branco, por ser branco, o acesso a comércios ou transportes públicos?” A propósito, qual a inconveniência na adoção dessa política corporativa de inclusão racial? Talvez, uma das respostas possíveis, diante do esforço feito por alguns para construir interpretações formalistas, é que ela escancara, inconvenientemente, a dificuldade da sociedade brasileira em reconhecer que discrimina, e discrimina muito em razão da raça.

Quase dois séculos depois do primeiro importante marco constitucional (de 1824), e mais de trinta anos depois do advento do paradigma do Estado Democrático de Direito (de 1988), os dados empíricos revelam que, no que diz respeito à cidadania no e para o trabalho, ainda é um desafio fazer coincidir trajetórias normativas com uma realidade vivenciada como igualitária.

Para alguns, anunciar no jornal que a vaga para a empregada doméstica exclui os negros e tornar público um programa de trainees para negros estariam no mesmo patamar de discriminação, exatamente porque estão dispostos a uma leitura constitucional formalista, e com fortes apegos à literalidade, tendendo, com isso, a expressar o descompromisso com os dados concretos que revelam as insistentes práticas discriminatórias.

Se por um lado, considerando a realidade nacional, o advento do regime democrático representou, no mínimo, uma ampla abertura para as reivindicações em torno do tema da cidadania que, no sistema jurídico-constitucional, adquiriu relevante centralidade, por outro, a pobreza, as exclusões e os redesenhos no mundo do trabalho têm adquirido o significado justamente do exercício não igualitário de direitos de cidadania.

A Organização Internacional do Trabalho tem alertado que para alcançar patamares de redução da pobreza e maior bem-estar e justiça social, é necessário melhorar a situação relativa das mulheres, negros e outros grupos discriminados da sociedade e aumentar sua possibilidade e acesso a empregos capazes de garantir uma vida digna para si próprios e suas famílias. A pobreza está diretamente relacionada, dentre outros aspectos, à discriminação existente na sociedade.

Entre a insuficiente repercussão da condenação no Brasil na OEA, baseada no ineficiente combate ao racismo, e a alta repercussão de uma iniciativa de correção de desigualdade racial em âmbito empresarial, há muito a se analisar e refletir sobre uma sociedade que insiste em negar que tenha efetivas e sérias dificuldades em admitir a existência do racismo estrutural. A data de 20 de novembro em cada ano ainda tem sido o da repetição sobre o quanto ainda não avançamos para saldar uma dívida, conosco mesmos, ou seja, estamos nos devendo uma sociedade verdadeiramente tributária dos valores da igualdade e da liberdade para todos, de modo substancial, para além dos formalismos.