Em defesa da capacidade jurídica da pessoa com deficiência

16 de setembro de 2021

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As alterações realizadas pela Lei Brasileira de Inclusão (LBI) – também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) – no rol das incapacidades jurídicas causou grandes divergências entre civilistas, sendo por alguns criticadas, já que entenderam que as pessoas com deficiência teriam ficado desprotegidas pelo ordenamento jurídico brasileiro. Embora mais de cinco anos da vigência da LBI já tenham se passado, o tema ainda precisa ser debatido para que a capacidade jurídica das pessoas com deficiência seja efetivada.

As alterações da LBI têm base na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), que foi ratificada pelo Brasil com status de emenda constitucional, já que aprovada, por meio do Decreto Legislativo 186/2008, conforme procedimento do parágrafo 3º do art. 5º da Constituição Federal. Assim, é importante que qualquer interpretação das mudanças seja feita à luz dos dispositivos da Convenção para que seja o mais autêntica possível.

As pessoas com deficiência, como inclusive alerta o Comitê de Direitos das Pessoas com Deficiência em seu Comentário Geral número 01, seguem sendo o grupo ao qual normalmente a capacidade jurídica tem sido mais negada. Historicamente, isto tem ocorrido com mulheres, especialmente casadas, negros e outras minorias étnicas. Negar a capacidade jurídica a um grupo de pessoas em razão da raça, gênero ou condição é evidentemente discriminatório.

A capacidade jurídica é indispensável para o exercício de outros direitos humanos, não há circunstância possível sob a lei internacional de direitos humanos em que uma pessoa possa ser privada do reconhecimento como pessoa perante a lei ou na qual o exercício deste direito seja limitado.

Assim é que a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em seu art. 12, reconhece a capacidade jurídica plena das pessoas com deficiência em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida. Para exercício desta capacidade, a Convenção prevê medidas apropriadas, podendo a pessoa com deficiência contar com apoios e salvaguardas. 

Porém, de acordo com o Comentário Geral nº 01 do Comitê de Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU), tanto apoios, quanto salvaguardas devem garantir o respeito a direitos, vontades e preferências das pessoas com deficiência. Os apoios, embora a Convenção não os conceitue, são medidas de suporte, podendo ser de vários tipos e intensidades e podendo incluir medidas relacionadas à acessibilidade, como, por exemplo, garantir acesso a intérpretes de LIBRAS e braile ou outra forma de comunicação alternativa. Já as salvaguardas podem envolver a “melhor interpretação da vontade e das preferências” nas situações nas quais não é possível determinar vontade e preferência das pessoas com deficiência, mas nunca realizar a interpretação pelo “melhor interesse”.

Outra questão que preocupa e já foi alertada pelo Comitê é de que a capacidade mental de uma pessoa com deficiência não se confunde com a capacidade jurídica, pois a capacidade mental é um conceito subjetivo. O que busca a Convenção é garantir que as pessoas com deficiência não tenham a sua vontade substituída pela de outras pessoas e que no exercício desta vontade possam contar com apoios para o exercício da capacidade jurídica.

A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, por sua vez, na tentativa de compatibilizar o ordenamento jurídico interno à Convenção, realizou importantes alterações no Código Civil.

De acordo com a doutrina clássica do Direito Civil, todas as pessoas possuem capacidade de direito, ou seja, de serem titulares de direitos. No entanto, a capacidade de exercício sempre foi analisada a partir de certos critérios, sendo que durante anos negou-se este exercício para pessoas com deficiência. Ainda que o Código Civil de 2002 tenha abolido o termo “loucos de todo gênero” e excluído “surdos-mudos, que não puderem exprimir a sua vontade” deste rol, ainda manteve aqueles que assim denominava de forma absolutamente discriminatória e preconceituosa “excepcionais sem desenvolvimento completo” e as pessoas com deficiência mental sem discernimento. 

Neste sentido, a Lei Brasileira de Inclusão excluiu as deficiências do rol de incapacidades, tendo deixado apenas aqueles que não puderem exprimir sua vontade de forma transitória ou permanente e os ébrios habituais, os viciados em tóxicos e pródigos.

Na mesma linha, reformulou todo o instituto da antiga interdição, que estava relacionado a uma “morte civil”, o qual passou a chamar de curatela. Ainda que tenha sido mantida, a curatela não prevê mais a declaração de incapacidade absoluta, prevendo apenas situações de incapacidade relativa. Recentemente, inclusive, se manifestou a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que reformou acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, em caso no qual idoso com alzheimer, que havia sido declarado absolutamente incapaz e impossibilitado de gerir os atos da vida civil, afirmando que apenas menores de 16 anos podem ser considerados absolutamente incapazes.

Mesmo com estas mudanças realizadas pela LBI, o Comitê de Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, ao analisar o Relatório Inicial do Brasil a respeito do cumprimento de suas obrigações em relação à Convenção, instou o Brasil a acabar com o instituto da curatela, já que a despeito das mudanças ainda continua sendo uma forma de substituição de vontade das pessoas com deficiência. 

De outro lado, a Lei Brasileira de Inclusão criou a tomada de decisão apoiada. No entanto, a despeito de ser um acordo entre apoiado e apoiadores, a submeteu ao crivo do Judiciário. A regulamentação, porém, veio ainda sem a devida criação de um procedimento específico no Código de Processo Civil. Dessa forma, há críticas sobre a incompletude do instituto que poderia auxiliar pessoas com deficiência.

Muitos se preocupam com uma eventual desproteção da pessoa com deficiência em razão destas alterações realizadas pela Lei Brasileira de Inclusão no Código Civil, porém o objetivo da Convenção é reconhecer que as pessoas com deficiência têm direito a expressar a sua vontade e suas preferências, que não podem e não devem ser substituídas pelas de outras pessoas, reconhecendo que pessoas com deficiência têm capacidade jurídica plena em igualdade de condições com as demais pessoas.

O que ocorre é que precisamos avançar na criação de formas de apoio para que pessoas com deficiência possam exercer por si próprias suas capacidades jurídicas, formas que prevejam apoios mais e menos intensos, e que não sejam muito burocráticas. Há exemplos em outros países que podem auxiliar neste aprimoramento.

Recentemente, a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep), a Escola Nacional de Defensoras e Defensores Públicos do Brasil (Enadep) e a Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência realizaram a sua 9ª Jornada de Capacitação e abordaram o tema da Capacidade Jurídica da Pessoa com Deficiência e a Tomada de Decisão Apoiada. Em quatro aulas, o curso visou propiciar o debate sobre a atuação das Defensorias nos casos envolvendo a capacidade jurídica das pessoas com deficiência e a contribuição da Instituição para implementação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e da Lei Brasileira de Inclusão. Iniciativa muito importante, considerando a importância do trabalho de Defensoras e Defensores Públicos na área cível.

Neste mês, em que se se comemora o Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência, todas as iniciativas que busquem a efetivação de direitos humanos de pessoas com deficiência por órgãos de sistema de Justiça devem ser muito aplaudidas, considerando muitas vezes a invisibilidade de pautas relacionadas às pessoas com deficiência.

Mas precisamos continuar avançando a fim de garantir o reconhecimento e o exercício dos direitos pelas pessoas com deficiência. 

Assim, urge que todo o sistema de Justiça, para além de conhecer as alterações da LBI, conheça a fundo a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, realizando capacitações para todos seus membros e servidores e urge, ainda, que nosso legislador preveja novas formas de apoio, garantindo a proteção das pessoas com deficiência, sem, porém, impedi-las do exercício de sua capacidade jurídica plena.