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Dilemas de transição

5 de março de 2005

Membro do Conselho Editorial / Professor Titular Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UniRio)

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Um Caso Exemplar para o Brasil

Winston Churchill, o grande estadista de orientação conservadora, que conduziu a Inglaterra à vitória na Segunda Guerra Mundial, em seu livro editado em 1938 na Inglaterra e recentemente traduzido e publicado no Brasil, Grandes Homens de Meu Tempo, depois de demonstrar o papel de George V (1865/1936) como articulador do pacto político inglês moderno, faz uma excelente descrição do histórico papel do ministro socialista Philip Snowden (1864/1937), que o viera a substituir como Ministro das Finanças no antigo gabinete conservador.  Churchill, com a perspicácia astuciosa de seu estilo demonstra exatamente que a monarquia parlamentarista inglesa, harmonizando as divergências entre os conservadores e socialistas -trabalhistas, transmudados, parte dos antigos liberais (whig’s) e sindicalistas – salvou a convivência pacífica entre as tradições do constitucionalismo consuetudinário dos tories e as reivindicações das massas operárias (inclusive das próprias mulheres que lutavam pelo direito de voto) na antevéspera da primeira guerra mundial, mas engoliu a independência e a autonomia do ministro Philip Snowden.

Homem mergulhado no dilema da confecção de um modelo político para a transição parlamentar inglesa, de uma sociedade rural e neocolonialista para uma sociedade industrial, o papel do ministro das finanças Philip Snowden (1924 e 1929 a 1931), teria sido, apenas, uma ocorrência parlamentar não fosse o seu efeito exemplar para a compreensão e percepção das transições políticas pacíficas, seus autores e suas origens, desde que, para efeitos de análise, reconheçamos no fato histórico exemplar não propriamente uma repetição da figura individual, mas a sua reprodução na personalidade e no papel dos múltiplos atores no processo de transição. Por isto, o fenômeno Snowden é um fenômeno referencial para a compreensão do quadro da transição brasileira, de uma sociedade oligárquica e autoritária para uma sociedade democrática e plurirepresentativa, para justificá-la e/ou prognosticá-la, permitindo que se compreenda que as histórias do passado nem sempre são a certeza do presente e/ou os riscos do futuro.

A história da vida de Snowden que escreveu Churchill, não só faz respeitar o seu caráter, mas as Constituições políticas tolerantes que permitiram que um homem nascido em uma cabana humilde, num vilarejo de York Shire e que passou a vida criando o Partido Socialista, venha a ser Ministro das Finanças, com a força de Primeiro Ministro, no primeiro governo trabalhista de um rico e tradicional país, para numa aparente contradição, por fim, acertar um golpe de misericórdia com indisfarçável disposição no Partido Socialista que criara para combater os programas exclusivistas das classes altas, e que passara a olhar, a partir da convulsão política que tirou os socialistas do poder (1931), com causticante desprezo intelectual. A transição moderada tem nos radicais as suas vítimas, mas reajustam a própria ordem, e a transição radical, também, ao contrário, tem nos moderados suas vítimas, mas tende a evoluir da desordem para nova ordem.

Num contexto mais amplo, a narrativa biográfica de Philip Snowden, nos revela as possibilidades abertas de um homem envolvente, originário de um modesto lar inglês, viver uma vida digna fazendo visível o lado rico da pobreza quando amparada numa arraigada fé religiosa, apoiada em princípios morais rígidos (Snowden era metodista) e no interesse militante pela evolução social, que lhe permitiram enfrentar a profunda crise financeira do Império, adotando, exatamente, os mesmos mecanismos que asperamente condenara em seu antecessor conservador, esnobe e aristocrático, e na sua opinião, o presunçoso Winston Churchill. Todavia, como se víssemos o nosso próprio circuito financeiro, estas providências tornaram-se possíveis, exclusivamente, porque Snowden foi recebido como um dos burocratas do establishement do Tesouro, que com facilidade continuou fazendo de conta que era um socialista, mas, como estadista, preferia e proferia discursos para banqueiros, ou fazia apelos aos seus frustrados eleitores para que seus últimos recursos garantissem a estabilidade financeira do país.

Em todo caso, em todo o seu período ministerial, Snowden manteve o compromisso e a proposta de criar e cobrar o imposto sobre a propriedade da terra, imprescindível ao equilíbrio social da época, o que provocou violentas colisões com os conservadores vitorianos.  Por outro lado, não cansou de afirmar, nesta incrível semelhança, ao contrário de seu tradicional programa, que não importa o que o estrangeiro possa fazer, o importante é segurar a liberdade de importação, não importa a que ponto fiquemos sem ouro, o importante é pagar rigorosamente as dívidas, não importa como tenhamos que arranjar dinheiro emprestado, o problema não é a taxação direta altamente progressiva, mesmo que acarrete um estancamento da energia criativa, desde que se garanta “o café da manhã gratuito” para os trabalhadores, mesmo que seja suprido de fora da Inglaterra.

Finalmente, discorre Churchill, Snowden enfrentou todos os infortúnios, engoliu e reproduziu a maior parte de seus desatinos, mas conquistou um inquestionável direito de compartilhar dos anos ingleses de prosperidade, embora concluísse “os socialistas quando se tornam ministros, abandonam, na prática, e em grande parte, as teorias e os princípios pregando os quais chegaram ao poder. Foi indiscutivelmente grave insulto e injúria, não apenas aos trabalhadores, mas a toda a nação, fundar um partido de classe comprometido com princípios visionários que só poderiam se concretizar por desesperadas convulsões civis (e pela derrocada da liberdade)”.

De qualquer forma, esta conclusão de um conservador autêntico, que via no socialismo uma doença adquirida por más condições de vida e, no socialista, um militante invejoso, é uma trágica conclusão para um socialista militante, principalmente quando precisa admitir “que apenas se ganhou uma eleição, não se fez uma revolução”, que os caminhos econômicos da mudança estão programaticamente engessados pelos titulares dos softwares e as possibilidades da mudança da ordem política não passam pela desordem jurídica.  Todavia, Snowden demonstrou, em condições históricas pioneiras, que a dinâmica capitalista pode ser administrada pela ação trabalhista efetiva, aliás, o que seria do capital sem o trabalho, e do trabalho sem o capital, o modelo que politicamente sobreviveu como o parlamentarismo inglês.

Philips Snowden encerrou a sua carreira política, não como um líder trabalhista, mas Visconde da Assembléia Hereditária, que, por tanto tempo, na sua ascensão, tentara destruir.