Edição 299
Compreender o(a) cônjuge/companheiro(a) como herdeiro facultativo é inconstitucional à luz de uma perspectiva de gênero?
11 de julho de 2025
Arthur Ribeiro Welcman Membro do IAB
Pedro Pinos Greco Membro do IAB

Com base no projeto de Reforma do Código Civil de 2002 atualmente em tramitação, o legislador passaria a permitir aos indivíduos casados ou em uma união estável o afastamento do seu respectivo cônjuge ou companheiro(a)s da sucessão testamentária, por escolha própria, consciente e livre.
Como esse assunto tem elevado potencial de transformar o regime familiar e a dinâmica social brasileira, acreditamos que a matéria merece ser lida também em apreço a uma lógica de gênero, um debate pouco verticalizado, pelo que pudemos pesquisar, uma vez que a doutrina tem aparentado dar mais ênfase à norma, ao princípio da autonomia privada e a outras questões associadas ao combate de fraudes, e em temas mais ligados aos aspectos patrimoniais do Direito Civil.
Com efeito, para analisar o tema, entendemos que deve ser privilegiada a perspectiva civil-constitucional do Direito Civil brasileiro, contemplando a valorização da dignidade humana (artigo 1o, III, CR/1988), da vedação a qualquer tipo de discriminação (artigo 3o, IV,CR/1988), da solidariedade social (artigo 3o, I, CR/1988), da isonomia substancial entre homens e mulheres (artigo 5o, caput, CR/88) e da proteção a todos os tipos de família (artigo 226 da CR/88).
Na possível reforma do Código Civil de 2002, o artigo 1.845 receberia redação que traz consigo silêncio eloquente, porque muito diz, obliterando exatamente o cônjuge e nada dizendo a respeito do(a) companheiro(a), como se pode notar da leitura da nova grafia pretendida: “São herdeiros necessários os descendentes e os ascendentes”.
Assim, o legislador atual considera que, de 2002 até o presente tempo (2025), existiriam nítidos avanços no que diz respeito à inclusão da mulher no mercado de trabalho que, em que pese não a terem solucionado, reduziram a dependência econômica entre cônjuges/companheiro(a)s, o que outrora justificou a inclusão destes como herdeiros necessários. Nesse sentido, pontua-se, expressamente, no anteprojeto, que:
Diante da progressiva igualdade entre homens e mulheres na família e do ingresso da mulher no mercado de trabalho, bem como do fenômeno cada vez mais crescente das famílias recompostas, foi preciso repensar a posição do cônjuge e do companheiro na sucessão legítima, chegando-se à conclusão de que eles não deveriam mais figurar como herdeiros necessários, nem muito menos concorrer com os descendentes e ascendentes do autor da herança.
Por outro lado, entendemos que essa possível alteração do(a) cônjuge e companheiro(a) é flagrantemente inconstitucional, por ferir de morte alguns preceitos pétreos que nos são muito caros, como, por exemplo, a dignidade humana, a vedação a qualquer tipo de discriminação, a solidariedade social, a isonomia substancial entre homens e mulheres e a proteção a todos os tipos de família, e, também, por golpear a desequilibrada relação existente entre homens e mulheres em um casamento ou em uma união estável.
Afinal, a possível reforma prejudicará os cônjuges ou companheiro(a)s que estejam em situação de vulnerabilidade e/ou que dependam financeiramente do(a) outro(a) cônjuge ou companheiro(a)s. Assim, por exemplo, quando apenas um dos dois cônjuges ou companheiro(a)s tenha bens no seu nome, caso seja aprovada a Reforma como está prevista, haverá evidente desarmonia durante a relação, e, com o falecimento do cônjuge ou companheiro(a) que detém o poder aquisitivo, poderá ocorrer situação em que inexista deixa testamentária para aquele que mais precisa nesse momento de luto.
Em análise homóloga, um tema que ainda não está claro e que poderá causar efeitos danosos nos casamentos e/ou uniões estáveis é o caso em que exista alguma questão existencial e extrapatrimonial que carregue consigo questões de vulnerabilidade. Assim, elucubramos que, quando um dos cônjuges ou companheiros(a)for o curador, ou que seja o responsável pela tomada de decisão apoiada ou ainda aqueles que sejam idosos e um seja o provedor e o outro o cônjuge ou companheiro(a)s do lar poderá ocorrer uma desproteção que atenta contra a renovada visão do Direito Civil, como um lócus de salvaguarda e de rechaço a toda forma de discriminações negativas
De mais a mais, a inconstitucionalidade do dispositivo pode ser observada em respeito à perspectiva de gênero, sendo essa, a nosso entender, razão forte para justificar uma correção de rota nesse projeto de lei. Isso, pois, para além dos valores constitucionais que acreditamos estar sendo afrontados, compreendemos que igual ocorre em relação ao artigo 226, e ao artigo 5o, I, da Carta Magna
Malgrado tenha ocorrido incipiente tentativa de agasalhar os direitos das mulheres, e sendo fato que ocorreu a entrada e a consolidação da mulher no mercado de trabalho, ainda assim temos muitos lares em que o homem é o provedor, trazendo os ganhos financeiros, sendo a mulher aquela que cuida do lar. Assim, na atual configuração, a reforma do Código Civil de 2002 talvez despreze a perspectiva de gênero que ainda pauta muitas famílias no Brasil. Tanto isso é verdade que as mulheres recebem remunerações menores que os homens para exercerem as mesmas funções.
Em giro correlato, ainda é necessário pontuar que experimentamos, no Brasil, verdadeira epidemia de violência doméstica contra as mulheres em casamentos, uniões estáveis e até mesmo em namoros simples e namoros qualificados, fruto do machismo estrutural que ainda é uma tônica em nosso Estado, e uma consequência do patriarcado que ainda se coloca como um imperativo em muitas famílias, subjugando muitas mulheres em detrimento dos homens. Vale apontar que Ana Luiza Nevares entende de forma similar, ao sustentar que a reforma não contemplou perspectiva de gênero palpável.
Tudo isso em um contexto em que o histórico do Brasil sobre o tema, perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (a saber, tanto a Comissão de Direitos Humanos quanto a Corte Interamericana), é negativo, já que, respectivamente, o caso Maria da Penha e o caso Barbosa de Souza causaram constrangimento e condenação do nosso país em tais esferas.
Ainda, fato é que a Reforma ignora os esforços do Conselho Nacional de Justiça, que, em notando situação de desequilíbrio entre homens e mulheres, criou um Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero para ajudar na validação da Resolução CNJ no 492/2023.
Com isso, não acreditamos que as ideias propostas pelas reformas de criar anteparos para essa transformação de herdeiro necessário para herdeiro facultativo possam, de fato, proteger os cônjuges e companheiros(a). Assim, não se pode entender que o novo artigo 1.808, §§ 1o, 5o e 6o, que trata, respectivamente, do usufruto sobre determinados bens da herança, visando à subsistência e à ineficácia da renúncia de todos os direitos sucessórios, bem como o reescrito artigo 1.832, que criará mecanismos de cuidado, possam, em conjunto, substituir o escudo que o status de herdeiro necessário estabelece.
Isso porque ainda impera, nas relações familiares conjugais e convivenciais, e entre homens e mulheres principalmente, desequilíbrio, de modo que esses dispositivos precisam ser mais bem explicados e detalhados na Lei para que existam maiores garantias e para evitar que houvesse o benefício de uma pequena parcela de mulheres que possuem renda igual ou maior que seus maridos e companheiros, em detrimento da maioria das famílias que ainda possuem um esquadro de homem-provedor e mulher-do lar, ainda que esses números estejam se equiparando com o passar do tempo.
Em síntese, concluímos que essa eventual alteração do Código Civil de 2002 é inconstitucional, por atacar a dignidade humana, a vedação a qualquer tipo de discriminação, a solidariedade social, a isonomia substancial entre homens e mulheres e a proteção a todos os tipos de família. E, nesse escopo, destacamos a ausência ou a precariedade de um olhar de gênero, uma vez que deveria ter constado uma mitigação do rigor em transformar cônjuges e companheiro(a)s em herdeiros facultativos, com poucos anteparos para assegurar que existam injustiças em relação às mulheres.
Conteúdo relacionado: