Ausência de sucessão no transporte público licitado

31 de dezembro de 2009

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No dia 25 de outubro de 2009, foi realizado um Congresso, promovido pelo TJRJ e CEDES, em Angra dos Reis, versando sobre as controvérsias que afligem as concessionárias de serviços públicos.

Naquela oportunidade, enfrentou-se o tormentoso tema que envolve a existência — ou não — de sucessão no transporte público licitado. Isso porque as concessionárias de serviço público (v.g., Metrô-Rio e Supervia) vêm sendo severamente penalizadas com um passivo absolutamente inesperado, sobretudo porque as referidas concessionárias não pactuaram tais obrigações, pois não constam nos respectivos contratos de concessão, muito menos nos editais de licitação. Para palestrante foi convidado o Ministro Luis Felipe Salomão e para debatedor o advogado Leonardo Pietro Antonelli.

Inicialmente, o Ministro Salomão fez uma brevíssima introdução sobre o Recurso Especial, com a visão de quem saiu há pouco mais de um ano de um tribunal estadual e se deparou com a difícil tarefa de mudar a perspectiva do exame das questões que sobem ao Superior Tribunal de Justiça. Os tribunais locais fazem a justiça do caso concreto, e o STJ, por força de missão constitucional, tem outra perspectiva.

Eis a síntese das preocupações do Ministro Luis Felipe Salomão externadas no evento realizado pelo TJRJ e CEDES (Centro de Estudos e Debates):

O STJ é um tribunal de precedente; então, uma vez firmado o precedente pelos mecanismos internos; uma vez julgada a questão pela seção, todos os recursos terão a mesma solução. Não adianta um ministro ter opinião divergente porque  vai esbarrar nos Embargos de Divergência, assim todos os juízes seguem a mesma linha.

Deve se ter em vista que quem analisa provas, quem faz justiça no caso real, é a câmara local. O STJ tem uma função precípua que é a de ser o guardião do direito federal. Ele uniformiza a jurisprudência e, em tese, não está preocupado com a justiça do caso concreto, o STJ preocupado-se apenas em saber se houve violação à lei ou se os tribunais estão interpretando de maneira divergente a mesma questão; se for esse o caso, o STJ intervém; do contrário a justiça está feita naquele caso concreto. Assim funciona o STJ, e é por isso que algumas questões não chegam a ser conhecidas, muito embora tenham extraordinária relevância para o caso concreto.

Outra observação cabível é que, diante desse volume de causas mencionado, vai sendo criada na corte o que chamamos de jurisprudência defensiva, ou seja, há uma análise muito mais rigorosa dos pressupostos de admissibilidade do Recurso Especial e do Agravo.

Normalmente o STJ encerra muitas questões nos pressupostos específicos.  Dentre as diversas Súmulas, que impedem o conhecimento do Recurso Especial, destacam-se a 5/STJ — da “simples interpretação de cláusula contratual” — e a 7/STJ — que menciona “pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial” — que atingem muitas das questões que vão ao exame da corte, e inclusive têm barrado, no caso da sucessão de empresas, a grande maioria da admissão de recursos pelo STJ”.

Pois bem, enfrenta-se aí a primeira grande preocupação.

Com efeito, observa-se a existência de 1330 (um mil, trezentos e trinta) demandas judiciais — indenizatórias — direcionadas contra a Supervia e o Metrô-Rio, o que sem dúvida é um número elevado, mas em contrapartida apenas 2 (dois) Recursos Especiais foram conhecidos, por conseguinte tiveram exame de mérito.

Todos os demais foram inadmitidos pela 3ª Vice Presidência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, sempre com amparo nas Súmulas 5 e 7 do Superior Tribunal de Justiça.

Por isso mesmo, na palestra cujo tema foi: “Os impactos das decisões judiciais sobre a sucessão obrigacional dos transportes de passageiros”, realizada no dia 5 de novembro de 2007, sob a presidência do Juiz de Direito Cláudio Dell´Orto, o Ministro Luiz Fux, sintetizou que “se isso não for bem resolvido na instância local, há uma certa interdição de análise pelo Superior Tribunal de Justiça”.

A par de todas as dificuldades, faz-se necessário examinar a teoria geral da concessão e o que tem acontecido no Superior Tribunal de Justiça sobre sucessão.

A respeito do tema proposto, a jurisprudência inicialmente entendia que o contrato de concessão foi firmado entre as partes e, portanto, só vincula as mesmas de modo que o credor, que é terceiro, não pode ser prejudicado. O fundamento legal seria o artigo 42, do Código de Processo Civil, que versa sobre alienação de coisa litigiosa, conforme Recurso Especial 399.569-RJ, Min. Rel. Ruy Rosado de Aguiar, 4ª Turma do STJ, julgado em 10.2.2003.

O referido acórdão, nas palavras do Ministro Luiz Fux no mesmo evento, “…é uma jurisprudência que vou cognominar de paternalista — protecionista sem o mínimo fundamento legal. Não há um artigo de lei citado nessa jurisprudência. Esse voto tem uma lauda e meia e dispõe o seguinte: se a concessionária exerce o mesmo trabalho da outra, a mesma atividade da outra, ela automaticamente é responsável por tudo quanto possa ter acontecido, aplicável o artigo 42, do Código Civil.

O Ministro Luis Felipe Salomão, por sua vez, no evento realizado na AMAERJ, teve oportunidade de examinar detidamente a questão, ocasião em que entendeu que “não se trata da alienação da coisa, a coisa não está sendo alienada. Não se trata de direito litigioso, é que ocorreu antes o fato ensejador daquele suposto direito de responsabilidade, mas não se trata de alienação da coisa nem de direito litigioso. E, portanto, esse dispositivo não tem aplicação.

A interpretação do 42, e ainda como se diz no parágrafo terceiro, que era um processo de conhecimento, diz que a sentença proferida entre as partes originárias estende os  efeitos ao adquirente e ao cessionário. Na verdade, ele diz respeito ao processo de conhecimento no qual houve alienação de um bem que era litigioso, de uma propriedade, de um carro, de alguma coisa que estivesse em disputa e houvesse a substituição da legitimidade dos que litigavam no processo. Absolutamente não é o caso. Não tem aplicação no 42.

Poderia-se pensar na responsabilidade patrimonial para se atingir bens de terceiros em relação a uma dívida antiga, mas esbarramos na questão da não extinção da pessoa jurídica originária. Por fim, e apenas também uma reflexão, o credor, nesse caso, não vai ficar a ver navios. Acho que não se abordou aqui, mas como se não obtida a indenização por intermédio da pessoa jurídica ainda não extinta, quem responde lá atrás é o Estado. Ele é o responsável. Perdoem-me, eu cheguei a pincelar isso, mas acho que temos que refletir, não vai entrar no precatório, não; porque é dívida alimentar. Então, penso que o Estado responde não pela via do precatório, mas responde sem deixar a parte a ver navios”.

Analisando a questão à luz do direito público, observa-se que as regras do direito administrativo constitucional dispõem que as empresas criadas pelo governo respondem por danos segundo as regras de responsabilidade objetiva. E, na hipótese de exaurimento dos recursos da prestadora de serviços, o Estado responde subsidiariamente.

Consolidando os fundamentos supra, de forma magistral, o Ministro Luiz Felipe Salomão no evento promovido pelo CEDES e TJRJ, destacou o segundo, e mais recente precedente, favorável às empresas, relatado pelo Ministro João Otávio de Noronha que, “no caso, o precedente se refere ao Metrô[1], e não à Supervia, mas a hipótese é exatamente idêntica. E ele diz: “É defeso atribuir o cumprimento de obrigação por ato ilícito contraída por empresa prestadora de serviços públicos a outra que não concorreu para o evento danoso, apenas porque também é prestadora dos mesmos serviços públicos executados pela verdadeira devedora. Tal atribuição não encontra amparo no instituto da responsabilidade administrativa, assentado na responsabilidade objetiva da causadora do dano e na subsidiária do Estado, diante da impotência econômica ou financeira daquela”.

Colhe-se dos fundamentos esposados pelos Ministros Luiz Fux e Luis Felipe Salomão que a questão, apesar de tormentosa, tem se encaminhado ao respeito pelo contrato de concessão, aqui merecendo destaque a valiosa contribuição do Ministro Luiz Fux, quando constatou que “a Corte Especial é claríssima em manter a fidelidade na obediência do próprio contrato, pois estas entidades que exercem atividades delegadas encerram mega-atividades. E as grandes corporações gostam de inteirar-se do início, do meio e do fim. Elas precisam saber os limites da sua responsabilidade”.

Em absoluta sintonia, com as preocupações das grandes corporações, o advogado Leonardo Antonelli, na qualidade de debatedor do congresso demonstrou os reflexos financeiros das decisões judiciais quando constatou que “inegavelmente o transporte coletivo de massa no Brasil e no mundo, implica na realização de milhões e até mesmo bilhões de reais de investimento (como exemplo recente o trem-bala para as olimpíadas, orçado em 30 bilhões de reais) e, evidentemente, aquele que investe 10, 100 ou 600 milhões necessita saber o início, meio e fim.

Para restringir o exemplo a duas empresas (Supervia e Metrô-Rio), entre tantas que Brasil afora sofrem deste mesmo problema, somente estas duas são chamadas a adimplir na fase de execução 1.330 processos, cujo valor HISTÓRICO somado é de mais de R$600 Milhões de reais. Estes dados foram auditados ano após ano pela KPMG (Metrô) e pela Price (Supervia), conforme consta nos seus balanços sucessivamente publicados desde 1998, data do início da concessão.”

Sem embargo, a análise sobre existência de sucessão deve ser bem decidida nos tribunais locais, posto que o STJ nem sempre pode examinar o mérito da questão, mormente se existente ou não a sucessão, tendo em vista o teor das Súmulas 5 e 7 do STJ.

Todavia, colhe-se que a jurisprudência sobre sucessão está mais para observância ao contrato de concessão, na medida em que o próprio Ministro Luiz Fux afirmou que “a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, ao meu modo de ver, está mais próxima ao porto do que ao naufrágio”, porque reflete o recente precedente da 2ª turma, capitaneado pelo Ministro João Otávio de Noronha.


[1] REsp. 738.026-RJ, Ministra Relatora Eliana Calmon, redator do acórdão ministro João Otávio de Noronha, 2a Turma do STJ.