Edição 290
Augusto Teixeira de Freitas e o Direito Civil brasileiro
4 de outubro de 2024
Paulo Joel Bender Leal Presidente da Comissão de Pesquisa, Documentação e Coordenação do Centro de Memória do IAB

A formação do Brasil atual tem início quando navegadores oriundos do continente europeu aportam aqui em busca de bens e riquezas. Como o objetivo não era constituir uma nação, mas pilhar as riquezas do território, esse fato funda período de intensa brutalidade contra os povos nativos. Durante séculos, a política no continente foi de violência, com estupros de mulheres e de crianças e com assassinatos em massa dos povos originários.
Nações inteiras que ocupavam a América foram exterminadas. Sem capacidade para enfrentar a tecnologia de guerra dos invasores, quem não morreu acabou escravizado ou expulso do território ancestral.
Embora sejam fatos recentes do ponto de vista da história, são extremamente relevantes para que se possa compreender a gênese da identidade do povo brasileiro e permitem entender as razões pelas quais nosso país formou elite inculta, desumana e violenta, que ainda hoje não consegue levar adiante projeto de nação nesta parte do continente americano.
Gênese do Código Civil – É tomando essa característica de nosso povo que se deve buscar compreender as razões pelas quais, passados 141 anos da morte de Augusto Teixeira de Freitas, extraordinário jurista, ainda não foi possível entender por aqui a genialidade de seu trabalho .
Quando D. Pedro I (1798-1834) outorgou a Constituição de 25 de março de 1824, determinou que o país se dotasse, no menor tempo possível, de Código Civil e de Código Criminal, apoiados “nas sólidas bases da justiça e equidade” (art. 179, XVIII).
Feito isso, em 16 de dezembro de 1830, o Código Criminal foi promulgado. No entanto, em relação ao Código Civil, a situação foi outra. Diferentemente do Direito Penal, que tem por escopo dotar o Estado de instrumentos legítimos para o exercício da violência, o Direito Civil trata de normas para disciplinar a ocupação de terras e o acesso às riquezas.
Provavelmente, tenha sido esse o principal motivo pelo qual o país levou quase um século para elaborar seu Código Civil, pois embora decorrente da mesma disposição constitucional do Código Criminal, somente depois de passados 30 anos é que tiveram início as discussões a respeito de seu texto, com a contratação de Augusto Teixeira de Freitas (1816-1883).
Teixeira de Freitas e suas ideias – A participação de Teixeira de Freitas nos debates para elaboração do Código Civil tem início em 1855, quando o governo imperial o contrata para organizar a legislação vigente. Como ainda vigiam no Brasil disposições da legislação portuguesa, canônica, do direito romano e decorrentes de usos e costumes, coube a ele reuni-las em texto único, que denominou de “Consolidação das Leis Civis”.
Inspirado em René Descartes (1596-1650), nos estudos de Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) e de Fiederich Carl von Savigny (1779-1861), Teixeira de Freitas levou em consideração a jurisprudentiae romana como sistema de inteligência do mundo da natureza e inaugurou nova fase no desenvolvimento das instituições de direito de sua época. Foi ele quem, pela primeira vez na história, utilizou a ideia de relação jurídica como método de ordenação racional do direito civil.
E fez isso utilizando direitos absolutos e relativos como critério de racionalidade instrumental. Conquanto hoje até possa parecer simplória essa questão, à época o principal problema enfrentado pelos jurisconsultos era encontrar sistema que permitisse superar o método de considerar pessoas, coisas e ações, oriundas do direito romano, na ordenação das leis. Até Teixeira de Freitas, tomava-se o objeto do direito; a partir dele, surgiu a natureza da relação jurídica. Esse novo enfoque revolucionou o desenvolvimento do Direito Civil no mundo todo, permitindo dar aos códigos o tão necessário critério metodológico de ordenação, ao separar os direitos reais dos pessoais, cuja ausência tanta dificuldade causava aos civilistas de seu tempo. Seu trabalho foi tão bem acolhido, que assim que concluiu a tarefa novamente celebrou contrato com D. Pedro II para elaborar projeto de Código Civil para o Brasil.
Aceito o encargo, seguiu o mesmo método e foi saudado por estudiosos do direito civil de diferentes países. Entre tantas manifestações notáveis, cumpre destacar a de Dalmacio Vélez Sarsfield (1800-1875), autor do Código Civil Argentino, que reconheceu ter feito uso do projeto de Teixeira de Freitas na elaboração de seu código.
Não obstante, no Brasil, Teixeira de Freitas enfrentou muita dificuldade para levar adiante seu trabalho. Prova isso o fato de a comissão nomeada pelo governo imperial ter levado quatro meses para manifestar-se a respeito dos primeiros 15 artigos de seu projeto. As razões da demora nunca foram esclarecidas, mas o fato de ter se negado a incluir em seu trabalho de consolidação das leis civis as disposições sobre escravizados e de ter definido em seu projeto de Código Civil pessoa como sendo “todos aqueles, sem distinção, que apresentassem sinais característicos de humanidade” certamente foi a principal razão, pois essa redação retirava o status de coisa dos escravizados.
Porém, se por um lado Freitas conseguiu produzir texto com quase cinco mil disposições, por outro, seus estudos o fizeram perceber a importância da unificação do direito civil e do direito comercial, levando-o a apresentar nova proposta de trabalho ao imperador, e isso ocorreu quando estavam sendo veiculadas na imprensa do Rio de Janeiro notícias de que D. Pedro II (1825-1891) havia solicitado a elaboração de proposta de código ao Visconde de Seabra (1798-1865).
Ao tomar conhecimento, Teixeira de Freitas, incomodado, publicou no jornal A Reforma, o opúsculo Pedro quer ser Augusto, com críticas ao imperador e a António Luís de Seabra, demonstrando que o autor do Código Civil de Portugal, já no primeiro artigo, confundia a ideia de personalidade com a de capacidade jurídica.
Com isso, em 18 de novembro de 1872, o contrato foi rescindido. A contar de então, não obstante seu esboço ter sido traduzido e publicado duas vezes na Argentina, somente em 1952, depois de se tornarem tão raros, a ponto de os poucos exemplares existentes no país serem negociados por mais de seis contos de réis, o Ministério da Justiça providenciou a republicação de sua obra por aqui.
Augusto Teixeira de Freitas morreu em 12 de dezembro de 1883, 40 dias depois do falecimento de seu filho, Augusto Teixeira de Freitas Jr. Em suas exéquias, compareceram apenas quatro bacharéis e nenhum representante do IAB. Sua família, na miséria, comoveu Antônio Vianna (Gazeta de Notícias, de 20 de março de 1884) a realizar campanha de donativos para socorrê-la.
Em seu atestado de óbito, consta “amolecimento cerebral”. Como o mal de Alzheimer somente foi descrito em 1906, provavelmente tenha sido essa sua patologia, mas seus adversários, que sempre foram muitos e ativos, passaram a divulgar notícia de que teria sofrido de monomania (ou paranóia) religiosa.
Essa notícia infamante certamente serviu-se do Cortice Eucharistico, genial ensaio escrito em 1871, no qual Teixeira de Freitas se aventurou a interpretar a linguagem e as passagens da Criação, para tentar entender a descendência humana na Bíblia e para especular, a partir de poema do Padre Antonio Vieira, sobre o conteúdo da obra Clavis Prophetarum, então desaparecida.
Diferentemente do que ocorre no Brasil, Teixeira de Freitas é estudado na Argentina, no Uruguai, na Itália, entre outros países. Se não fosse Manuel Álvaro de Sousa Sá Vianna (1860-1922), na memória que escreveu por ocasião do cinquentenário do IAB, e na obra Traços Biográficos, parte de sua história teria se perdido pois não havia registro a seu respeito nos documentos oficiais do Instituto, do que foi fundador. Graças a essas pesquisas, tornou-se possível saber da eleição de Teixeira de Freitas para a presidência do IAB, em 1857, por exemplo.
Por tudo isso, há que se perguntar o motivo de ele ser difamado, boicotado e perseguido por tanto tempo, como facilmente se percebe ainda hoje em textos, ensaios e críticas publicadas em livros, artigos e teses, muitas delas financiadas pela academia.
A cultura da destruição, incrustada na alma do povo brasileiro, ainda é o leitmotiv que move grande parte dos descendentes daqueles que por aqui chegaram em busca de riquezas e de bens, e que reiteradamente agem de forma organizada para impedir, por todos os meios, qualquer iniciativa que busque o desenvolvimento de uma verdadeira nação nesta parte da América continental.
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