As três décadas da Constituição Cidadã de 1988

22 de janeiro de 2019

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No momento em que todos os que fazem o Judiciário brasileiro aliam-se às merecidas comemorações dos 30 anos da promulgação da nossa Carta da República, desejo, em breves considerações, lembrar a via-crúcis da sofrida, mas aguerrida população deste país, em busca da afirmação de sua maioridade constitucional, pelo menos nos moldes de uma nação civilizada, como desejamos.

Há exatos 30 anos o escritor norte-americano Francis Fukuyama agitava o mundo com um trabalho sério de pesquisa, no qual declarava o fim da História. Mal compreendido por muitos, mas com uma tese solidamente bem assentada em referências seguras, Fukuyama apenas tornava mais acessíveis alguns princípios hegelianos, inspirados nas fontes da república platônica. São suas estas palavras extraídas da nota introdutória do livro ‘O Fim da História e o Último Homem’, com tradução portuguesa de Aulyde Soares Rodrigues, para a editora Rocco, do Rio de Janeiro, publicado em 1992:

Tanto para Hegel quanto para Marx, a evolução das sociedades humanas não era ilimitada, mas terminaria quando a humanidade alcançasse uma forma de sociedade que pudesse satisfazer suas aspirações mais profundas e fundamentais. Significava, isso sim, que não haveria mais progresso no desenvolvimento dos princípios e das instituições básicas, porque todas as questões realmente importantes estariam resolvidas.

Hegel apostava no Estado liberal. Marx, no Estado comunista. O esforço de Francis Fukuyama é para mostrar que o Estado liberal hegeliano não estava comprometido com nenhum aspecto utópico. Já se podia, de longe, prenunciar-se o ponto final da luta pelas ideias de um governo mais ou menos perfeito, espécie de escatologia da luta do homem por uma vida plena de felicidade: uma sociedade cuja colunata de princípios liberais democráticos sustente o edifício multíplex do progresso, habitado por uma Justiça fundamentada, estritamente, no bem-estar de todos os segmentos da sociedade.

Poderíamos indagar: mas, como estados democráticos de direito, já bem consolidados, que ostentam invejáveis progressos, podem ainda conviver, impotentes, com tanto desmando e tanta corrupção em seu interior? Como se pode explicar o avanço material e tecnológico de um país autoritário, antidemocrático e sem respeito ou compromisso com esse povo sofrido, ou com a sociedade a que devemos servir?

Hegel explica que esses paradoxos são plenamente possíveis e dizem o quanto ainda estamos distantes do ponto ideal de chegada.

Como sabemos, dos três postulados da Revolução Francesa: igualdade, liberdade e fraternidade, por exemplo, que são os elos de uma democracia liberal perfeita, a fraternidade ainda não conseguiu chegar ao seu destino, por ser uma tarefa dita timótica, aquela que parte da alma do homem. O certo é que enquanto estiver em construção este processo timótico ou platônico, o homem estará num ponto indeterminado de sua historicidade, mas no caminho certo, sem hora de chegada, no entanto, com a agulha de marear apontada para o porto seguro reservado à sua instância final, na milenar busca de realização pessoal e social, que tanto persegue.

Disse, nas primeiras linhas deste texto, que é mais do que merecida a homenagem prestada, por todo o Brasil, aos 30 anos de existência da Constituição Cidadã de Ulysses Guimarães. Nós, os latino-americanos de expressão portuguesa, poderíamos lembrar, com otimismo, a nossa saga constitucional, que se arrastava desde as últimas décadas do Século XII, pois em Portugal, essa luta se iniciou há mais de 540 anos, até a conclusão da primeira Constituição lusa e da primeira Carta Política da sua ex-colônia, em terras americanas.

Apesar dos pesares, devemos a Napoleão Bonaparte dois avanços incidentais em favor da nossa emancipação política: a fuga da família imperial portuguesa de Lisboa para o Brasil, no final de 1807, escapando da prisão pelas tropas francesas, que naquele final de ano preariam o território ibero-luso, oportunidade em que o Brasil teve de sair da subcategoria colonial para a de sede do trono da monarquia portuguesa. O segundo não foi propriamente ligado a Portugal, mas à Espanha, senão vejamos: Em 1807 e 1808, Portugal e Espanha foram vítimas iguais das atribulações humilhantes impostas pelas tropas de Napoleão à península ibérica. Em Portugal reinava, em substituição à sua mãe demente, Dona Maria I, o príncipe regente D. João. Na Espanha reinava Fernando VII, príncipe das Astúrias, irmão de Dona Carlota Joaquina. Fernando VII, além de cunhado de D. João VI, também seria genro da própria irmã e do cunhado, pois se casaria com sua sobrinha, a Infanta de Portugal Maria Isabel Francisca de Bragança.

No mesmo ano em que a família imperial portuguesa chegava ao Brasil, Fernando VII foi preso por ordem de Napoleão no Castelo de Valença, oportunidade em que assumiu o trono espanhol o irmão daquele imperador, José I. A presença daquele intruso causaria a Guerra de Independência com revoltas populares, resultando na criação de juntas locais e regionais de defesa. Tais juntas tinham por escopo defender a Espanha da invasão francesa e formar um governo paralelo, já que os espanhóis não reconheciam, como legítimo, o governo de José I. Pouco tempo depois, essas juntas estariam reunidas em uma Junta Suprema Central. Foram os membros da Junta Suprema Central, que, por força do decreto de 22 de maio de 1809, ordenaram a celebração das Cortes Extraordinárias e Constituintes, sem a presença do rei. Sob a ameaça do avanço das tropas de Napoleão, em 24 de setembro de 1810, aconteceria a primeira sessão das Cortes Extraordinárias e Constituintes, na Ilha de León, precisamente na Igreja de São Fernando. Naquela localidade iniciaram-se,
para depois serem transferidos para Cádiz, mesmo sitiada pelas tropas napoleônicas, os primeiros esboços de uma constituição, que serviria de modelo para muitas constituições europeias, especialmente a de Portugal, e a do Brasil.

As cortes de Cádiz, na Andaluzia, forneceram o arcabouço das Cortes Gerais e Extraordinárias da nação portuguesa, também conhecidas como Soberano Congresso, Cortes Constituintes Vintistas e, entre nós, como Cortes de Lisboa, criadas por força da Revolução Liberal do Porto.

Quando foram eleitos os primeiros deputados brasileiros para a composição das Cortes Constituintes de Lisboa, as instruções eleitorais traziam anexa uma cópia da Constituição de Cádiz de 1812, para ser utilizada, com pequenas adaptações.

Posso acentuar que na Constituição gaditana de 1812 já se encontravam esboçados os primeiros acenos relativos à soberania nacional, à divisão dos poderes, à igualdade dos cidadãos e à legalidade, deixando explícita a necessidade de uma imprensa livre.

No interior da Igreja maior paroquial de São Fernando, na pequena Ilha de León, nas terras andaluzas, funcionou o primeiro parlamento de deputados constituintes que, mesmo de forma acanhada e ouvindo o ribombo dos canhões de Napoleão Bonaparte, assestaram o ramo dos seus princípios para os futuros estados democráticos de direito, que se derramariam, mais tarde, pelas velhas paisagens da Europa e pelas ubertosas terras americanas.

Pelo que se sabe, muito foi dito por leigos e especialistas sobre os 30 anos de promulgação de nossa Carta Magna de 1988. Críticas e elogios se espalham, através de todos os meios de comunicação, pelo território nacional. Em razão disso, achei por bem, ao invés de engrossar o grande caudal de opiniões e pontos de vista sobre este feliz e glorioso acontecimento, lembrar os primeiros mananciais de coragem e determinação daqueles de quem herdamos tão magnífico e extraordinário instrumental jurídico, que apesar de não ser perfeito, honra e orgulha o nosso povo e os constituintes de 1988, sob o firme e lúcido descortino do deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte e da não menos digna, valorosa, singular e competente figura de José Bernardo Cabral, senador amazonense, exemplo de coragem cívica e de habilidade política, relator da Comissão de Sistematização, a quem temos a satisfação e o inocultável orgulho de felicitar, por meio da Câmara dos Deputados e Senado Federal a que pertenciam.

De fato, há 30 anos, o Brasil degustava os primeiros momentos de uma nova ordem institucional, tendo à mão o instrumento necessário para o embasamento do Estado Democrático de Direito com que tanto sonhamos: a sua Constituição Coragem. Ao promulgá-la, o deputado federal Ulysses Guimarães firmou no espaço e no tempo o seu improrrogável conceito: “A Constituição é caracteristicamente o estatuto do Homem, da Liberdade, da Democracia. Ela possui substância popular e cristã, que a consagra”.

Se tivermos de listar, para a história, dois nomes dentre as centenas de constituintes valorosos e extremamente ciosos de suas responsabilidades, em defesa da nação brasileira, no final do Século XX, nunca poderíamos esquecer o Dr. Ulysses Guimarães e o Dr. José Bernardo Cabral, este responsável pela relatoria da Comissão de Sistematização daquela Assembleia, um dos trabalhos mais expostos a críticas, nem sempre justas. Esses dois homens de extraordinária envergadura moral e intelectual ofereceram os momentos mais intensos de suas vidas de profissionais liberais e de homens públicos, para deixar, com o povo brasileiro, um rico legado, que no seu bojo, de uma vez por todas, coloca o nosso país na órbita gloriosa das grandes nações democráticas do mundo.

 

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