Advocacia sustentável

7 de julho de 2020

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A importância do intérprete na construção de um novo modelo de sociedade

Tudo, na modernidade tardia, se resume em tecnologia e consumo, meios que se transformam em finalidade, deslocando objetivos mais amplos, às vezes ao ponto desses serem perdidos de vista, o que gera confusão e desalento entre os jovens, principalmente. A revolução digital, através da disponibilização de uma quantidade de informação quase bizarra, impossível de ser captada, gerando efeito quase lisérgico e viciante, provoca atomização e isolamento.

Nas jovens democracias, o desafio é o amadurecimento dos indivíduos para assumir solidariamente a responsabilidade com o atual estado das coisas e com a construção, de forma colaborativa, de uma nova realidade.

O fato social muda em progressão exponencial, enquanto sua normatização varia em progressão aritmética. De forma semelhante à distopia Jogos vorazes, inspirada em 1984 (Orwell) na qual agrega-se a histeria pela sobrevivência, algoritmos são criados em algumas horas através de competições chamadas de hackathons, de essência absolutamente avessa à solidariedade e à cooperação.

A pós-modernidade ressignifica, disruptiva e complexamente, as funções de legisladores e intérpretes, a ponto de agirem, de acordo ou em desacordo com a mudança, sem qualquer reflexão ou compreensão do processo vivenciado sobre suas novas e respectivas funções, o que torna comum a extremada polarização no centro do debate.

Os legisladores se orientam pelo interesse de adiar o desnude da inexorável obsolescência de processos inteiros de produção de bens e serviços, desaparecimento de instituições e ressignificação absoluta dos atores sociais, de signos, significantes e significados. O medo dessas mudanças no mundo da vida (Habermas) projetado nas organizações se estabelece na incapacidade do indivíduo atomizado e, portanto, desorganizado, relativizar, criando, individual ou coletivamente, novos modelos para serem vivenciados, adequados e alterados durante a experimentação. Nesse contexto, o papel dos intérpretes é fundamental e deve estar baseado em racionalidade dialógica que ressalte a irredutibilidade do indivíduo, em uma dimensão relacional, a partir da ética de corresponsabilidade.

Ao hermeneuta, na modernidade tardia, cumpre o desafio de transcender ao interpretar a utopia da justiça perfeita, norteando-se por teoria de justiça apresentada por John Rawls a partir da equidade (justice as fairness) ampliada por Amartya Sen, quando sustenta ser inadequada a concentração dominante nas instituições “que supõem o comportamento, apropriadamente, obediente”, devendo o foco se direcionar para a vida real: vida que as pessoas são capazes de levar. Em tempos líquidos, quase gasosos, não há espaço para utopias.

A Agenda 2030/ONU inspira a transversalidade entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) como no Rizoma de Deleuze e Guattari, input ou output (causa ou consequência) se conectam e tal mobilidade nos capacita à criação de novos sentidos e leva à reflexão sobre a fragmentação excessiva do conhecimento, conduz ao processo dialógico que orienta os cientistas, técnicos e pesquisadores das ciências denominadas exatas a ressignificarem seu ofício, através da apropriação de conceitos e métodos relacionados ao social e ao humano, como na economia comportamental que, através da Psicologia, identifica que o homem econômico age sempre em função de seu próprio bem-estar.

A sustentabilidade no Século XXI é essencial e evidencia o protagonismo das pessoas. Kimberly Mann (ONU) destacou a importância do ODS 4 – Educação inclusiva e equitativa e de qualidade e ao longo da vida para todos, na Abertura do Seminário-Oficina Permanente Justiça, Bem-estar e Economia, em novembro de 2019, no IAB Nacional.

Os novos vetores para a educação e formação da cidadania global se caracterizam pelo estímulo à criatividade, ênfase em habilidades socioemocionais, saberes não fragmentados e protagonismo do aluno.

Neste século, as mudanças não se confinam em territórios, áreas de conhecimento ou mesmo no mundo da vida. A tecnologia, que costumava indicar a posição de determinada sociedade no contínuo civilizatório, deve ser destacada e questionada, pois, com o advento da maciça intervenção da tecnologia digital, sem qualquer avaliação de seu impacto socioeconômico, que se estabelece sempre a partir de um discurso de modernidade e facilitação, mas se incorpora e movimenta exatamente de acordo com as premissas seculares que criam assimetria cada vez maior entre as gentes, invertendo a ordem de oferta e demanda, o mercado deixa de atender à demanda para criá-la.

O Direito por sua natureza é lento e as mudanças não esperam a regulação de uma nova forma de interação social de impacto. Uma determinada tecnologia digital é absorvida em velocidade inversamente proporcional à sua regulação. Se eternizam debates estéreis muitas vezes histéricos sobre a legalidade do uso e durante o vácuo normativo. Até mesmo os que defendem sua ilegalidade se utilizam da tecnologia. Legisladores e intérpretes se afastaram tanto do fato social que assistimos verdadeira inversão da articulação teórica clássica: a norma como fonte do fato social!

O jurismo brasileiro, segundo Raymundo Faoro, edifica-se nas nuvens, sem referenciar os fatos, para que da lei ou do plano saia o homem tal como no laboratório de Fausto, o qual, apesar de seu artificialismo, atende à modernização e ao desenvolvimento do País. Tal distanciamento, que orienta os profissionais do Direito na construção de seu mister, associado ao Direito, cada vez mais fragmentado em uma imensa quantidade de especializações, conduziram a pensarmos a tecnologia como orientadora da norma e de sua interpretação.

O ODS 16 – Paz, justiça e instituições eficazes visa ao respeito aos direitos humanos baseados no Estado de Direito e o efetivo acesso à Justiça. A partir da transversalidade da Agenda 2030/ONU, inspira a simplificação através da desconstrução dos recortes e especializações, promovendo o encontro com a essência, com a filosofia.

Em uma abordagem multidisciplinar e minimalista, na Holanda, intelectuais definiram pilares para o decrescimento econômico a se estabelecer após a pandemia, já que não há como prospectar crescimento infinito em um território finito (o planeta): 1) PIB – crescimento de alguns setores e diminuição radical de outros, como publicidade, por exemplo; 2) Redistribuição – renda básica e sistema de serviços públicos universais; 3) Agricultura regenerativa – conservação da biodiversidade, sustentável, baseada na produção local; 4) Redução do consumo em viagens – substituição das viagens luxuosas para consumo por viagens sustentáveis e satisfatórias; e 5) Cancelamento da dívida – de trabalhadores e proprietários de pequenas empresas, bem como de países do Hemisfério Sul.

Há mais de três décadas, a mensuração da sustentabilidade ocupa estudiosos. José Eli da Veiga propõe parâmetros atuais: 1) O desempenho econômico deverá abandonar o velho viés produtivista e optar por medida da renda familiar disponível; e 2) Será necessária uma medida de qualidade de vida (ou bem-estar) que incorpore as evidências científicas da economia da felicidade.

No Brasil, o processo de desjudicialização é necessário e urgente e devem ser privilegiados métodos autocompositivos de solução de conflitos, mas devemos cuidar de não nos deixar iludir, na sociedade do espetáculo, de simulacros e simulações (Baudrillard), pela simples apropriação de institutos eficazes em outras nações, representando-os na vida, como atores. A vivência definirá nossos próprios e adequados institutos a partir do fato social e capital social (local), por meio de valores que diminuam os efeitos da cultura adversarial presente nas relações sociais: cooperação, solidariedade, empatia, acolhimento e busca do consenso.

Na medida em que a razão se torna instrumental, segundo Habermas, a ciência vai deixando de ser uma forma de acesso aos conhecimentos verdadeiros para tornar-se um instrumento de dominação, poder e exploração, sendo sustentada por uma ideologia contrária ao espírito iluminista e à emancipação da humanidade, reforçada pelos meios de comunicação de massa (Eduardo Magrani, Entre dados e robôs).

Hiperconectados e ultravulneráveis, quanto mais tecnologia usamos mais problemas resolvemos e mais criamos. A hiperconectividade vem carregada de facilidade de acesso e agilidade nas comunicações, novas comodidades, mas quanto mais aplicativos existirem e mais informação compartilharmos pelo éter, mais vulneráveis seremos e maiores serão as possibilidades de que nos espiem e vigiem e, portanto, de sermos manipulados.

A ressignificação do profissional do Direito é simples, o caminho é claro, como no filme Back to the future: reencontrando a essência nos fundamentos filosóficos, nos tornamos aptos a estar no futuro, plena e genuinamente.