A Lei das Águas e o semi-árido

5 de janeiro de 2004

Membro do Conselho Editorial; Presidente da Light S.A.

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A Comissão de Desenvolvimento Sustentável da ONU define que um país ou região é carente de água quando a disponibilidade hídrica média renovável for inferior a 1000 metros cúbicos por habitante, a cada ano. Segundo esta definição, o semi-árido nordestino não deveria enfrentar as secas que enfrenta, já que a disponibilidade per capita anual é de cerca de 1500 metros cúbicos. Como explicar a diferença entre o conceito adotado pela ONU e a realidade nordestina? Se existe suficiente água (a precipitação média é comparável com a da Espanha), porque a população sofre secularmente o tormento da seca?

O problema é que toda a precipitação anual se concentra em três ou quatro meses e varia grandemente de ano para ano. Se o semi-árido fosse formado por solos profundos, esta má distribuição sazonal da chuva não seria problema tão grande, já que o excesso de água da época chuvosa se infiltraria no solo, sendo liberada gradualmente durante a época não-chuvosa, fornecendo suprimento para as fontes e para os rios. Ocorre, no entanto, que a maior parte do semi-árido se assenta sobre uma capa cristalina quase impermeável, localizada a pequena profundidade. A pouca quantidade de água que infiltra no solo é rapidamente evaporada e/ou transpirada pela vegetação. O excesso de água escoa superficialmente pelos córregos e rios, indo se perder no mar. Esta “abundância” só dura a estação chuvosa. Na estiagem os rios secam.

É necessário encontrar meios para conviver com esta realidade, imposta pela Natureza, em vez de tentar “combatê-la”. A seca não resulta de uma força maligna e incontrolável, agindo contrariamente ao bem estar do povo nordestino. Resulta, isto sim, da falta de mecanismos que permitam a convivência sustentável com as estiagens prolongadas. Trata-se de fenômeno natural que não precisa necessariamente ocasionar o quadro de pobreza e de desespero registrado pela nossa História. Ao contrário, é possível assegurar o desenvolvimento sustentável do semi-árido, em benefício de toda a sua população.

Existem diversos exemplos de como é possível conviver com condições climáticas adversas, em alguns casos de maneira bastante confortável. É o caso das nações sujeitas a frio intenso, cujos povos aprenderam, ao longo dos séculos, a estocar provisões para enfrentar os invernos.

Dirão os céticos que no Nordeste se estoca água desde o século passado e, no entanto, as secas continuam afligindo a região. Efetivamente, o primeiro açude de porte no semi-árido nordestino foi construído durante o reinado de Dom Pedro II e de lá para cá milhares de outros açudes foram construídos. Esta descrença na eficácia dos açudes é reforçada pelos seguintes fatos:

I Ao longo deste século, muitos micro açudes foram construídos sem a necessária técnica, pelas frentes de trabalho mobilizadas como paliativo social, por ocasião das piores secas.  As barragens de terra construídas nestas circunstâncias, com freqüência são dissolvidas devido ao transbordamento, quando da ocorrência da primeira inundação pós-estiagem (vem daí o apelido de “açudes alka-seltzer”), devido a não-construção das necessárias estruturas de vertimento, que demandariam obras de concreto e/ou de pedra.

II A maior parte dos açudes é pouco profunda e seca sistematicamente todos os anos devido à forte evaporação, servindo apenas para armazenar o excesso de água dos meses “molhados” para consumo nos meses “secos” (regularização intra-anual). Entretanto este tipo de açude raso não consegue guardar água dos anos molhados para consumo nos anos secos (regularização plurianual).

III Os açudes “corretamente” dimensionados, isto é, suficientemente profundos para terem capacidade de regularização plurianual, em geral construídos pelo Governo Federal, freqüentemente poderiam ser mais bem operados. Isto porque em muitos destes açudes faltam as obras complementares de adução (canais e condutos) que permitiriam levar água para os locais onde ela se faz necessária, seja para abastecimento de cidades e indústrias, seja para irrigação. Além disto, quase todos estes açudes foram operados ao longo das últimas décadas segundo as necessidades de pequenos grupos que se beneficiaram do investimento público, como se privado fosse.

A existência de açudes corretamente dimensionados e operados, com boa manutenção, e dotados das obras complementares de adução, é condição necessária, mas não suficiente, para a solução do problema. Falta também fazer com que a água chegue onde ela é necessária. Não basta estocar água para consumo apenas dos que estão junto ao lago, ou num curto trecho a jusante da barragem. É preciso fazer com que a água “caminhe” para locais de consumo, através de adutoras e de canais. Falta também construir novos reservatórios, bem dimensionados e, principalmente, disciplinar o consumo de água, através da implantação de um sistema de gerenciamento de recursos hídricos, segundo o estabelecido pela Lei 9433/97 (“Lei das Águas”).

A Lei das Águas adota a bacia hidrográfica como unidade de planejamento e de gerenciamento de recursos hídricos, e estabelece um sistema de outorga pelo direito de uso da água e de valorização econômica da água. O sistema adota a descentralização do processo decisório, através da constituição de comitês de bacia hidrográfica, com a participação das três esferas de governo (federal, estadual e municipal), dos usuários de recursos hídricos (companhias de saneamento, distritos de irrigação, associações de agricultores, indústrias que captem água diretamente nos rios ou nos açudes), e da sociedade em geral (universidades, associações de preservação ambiental, entidades técnicas…). Os comitês de bacia hidrográfica são formados seletivamente, onde ocorram usos conflitantes dos recursos hídricos, atuais ou potenciais, e onde haja interesse de organização por parte dos usuários e dos demais setores afetados.

Adota-se a bacia hidrográfica como unidade de planejamento e de gerenciamento de recursos hídricos porque os usuários da água de uma bacia estão, entre si, “hidraulicamente interconectados”. Devido a esta conexão é preciso estabelecer o sistema de outorga de direito de uso de água que considere o balanço entre demanda e disponibilidade hídrica. A outorga de direito de uso de água não deve ser confundida com concessão de serviço público, como é o caso de abastecimento de água, tratamento de esgoto urbano ou produção de energia elétrica. A concessão destes serviços segue regras próprias, não relacionadas com o uso coletivo do recurso hídrico.

Os rios que façam ou cruzem fronteira interestadual são administrados pela Agência Nacional de Águas – ANA. Os demais, contidos em território de um único Estado, pelo órgão gestor de recursos hídricos do Governo Estadual correspondente. Entretanto, as ações dos vários entes federados têm que ser coordenadas. Por exemplo, deve haver um único sistema de outorga de uso da água em bacia hidrográfica cujo rio principal seja de domínio federal. Isto porque a outorga de direito de uso de água, tanto para uso quantitativo como para uso qualitativo, em qualquer afluente sob administração estadual, afeta a disponibilidade hídrica do rio principal.

A outorga tem prazo de validade variável e não implica a alienação parcial das águas, que são inalienáveis, mas o simples direito de uso. A importância do sistema de outorga para a sustentabilidade econômica do semi-árido é mais bem percebida através do exemplo abaixo.

Suponhamos que o Sr. José tenha implantado uma fruticultura irrigada. Passados um par de anos, antes mesmo que ele tenha feito a primeira colheita, o Sr.  Antônio, vizinho águas acima do Sr.  José decide utilizar uma grande quantidade de água, sem consulta ao Sr.  José. Imaginemos que o Sr.  Antônio consuma tanta água que inviabilize a fruticultura do Sr.  José. O que sucede?

Numa situação em que o sub-sistema de outorga não estivesse implantado, o Sr.  José perderia o investimento e nunca mais se aventuraria em iniciativas empreendedoras assemelhadas. Provavelmente voltaria a plantar alguma lavoura de ciclo anual, com baixo valor comercial. A tendência, sem a instalação do sistema de outorga, seria de manutenção do subdesenvolvimento, dada a inexistência de garantia quanto a disponibilidade de água, assumida como insumo básico do processo produtivo.

Existindo o sistema de outorga, o Sr.  José não se aventuraria a fazer o investimento sem antes obter a correspondente outorga. O pedido de outorga do Sr.  Antônio, vindo depois do pedido do Sr. José, seria provavelmente negado, já que a ANA ou o órgão estadual outorgante verificaria a impossibilidade de atender ao acréscimo de demanda. Naturalmente, o Sr. Antônio teria direito à água para satisfazer às necessidades básicas de sua família, inclusive para produzir alimentos necessários à sobrevivência. Este direito é sagrado e assegurado pela legislação. Mas não teria o direito de arruinar o trabalho anteriormente elaborado pelo seu vizinho José.

Tanto o Sr. José quanto o Sr. Antônio terão interesse em participar das deliberações do comitê de bacia hidrográfica onde estejam localizados, seja diretamente, seja através de alguma associação de usuários que os representem. Este comitê deverá zelar pela racionalidade no uso da água e pela correta operação/manutenção das estruturas hidráulicas existentes na bacia (barragens, tomadas d’água, adutoras e canais).  Os usuários de recursos hídricos deverão contribuir financeiramente, de forma proporcional ao consumo (consumos pequenos de parcelas mais humildes serão isentos), para que este sistema funcione a contento e para que a água não seja desperdiçada. Com este incentivo à parcimônia, é bem possível que o Sr. José não apenas invista efetivamente na lavoura de maior valor comercial (no exemplo, a fruticultura), como venha a adotar uma tecnologia com menor consumo de água por unidade de produção. Na prática, isto significa aumentar a disponibilidade de água para novos usuários, inclusive para o Sr.  Antônio.

Como se percebe, a outorga oferece garantia de acesso ao bem escasso. Sem a existência de outorgas, os usuários se comportariam como comensais mal-educados, sentados em torno de uma mesa ao centro da qual se encontra um bolo: todos tendem a comer rápida e atabalhoadamente porque qualquer adiamento de consumo poderá resultar no desaparecimento do “recurso” em boca alheia. Com a outorga, cada usuário sabe que tem um pedaço do bolo reservado em seu nome, podendo consumi-lo quando for mais necessário, desde que de forma racional.