Edição 29
A internação e os Direitos Humanos
5 de dezembro de 2002
Sergio Seabra Varella Juiz titular da 7° Vara Cível de Niterói RJ
Os Direitos Humanos, proclamados na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, corroborados no Pacto Universal dos Direitos Civis e Políticos de 1966, no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, na Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1965, na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, de 1979, na Convenção contra Torturas e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984, na Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, de 1986 e na Declaração sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992, constituem tema de interesse mundial.
O direitos humanos abrem um leque de referencias, situações e idéias em diferentes segmentos sociais que poderiam fomentar inúmeras digressões. Entretanto, o presente trabalho teve como objetivo único a analise de uma das vertentes de tal matéria, endereçando as observações e conclusões para a analise da violação dos direitos dos adolescentes, autores de atos inflacionais, quando submetidos a medidas privativas de liberdade aplicadas pela justiça da Infância e juventude.
É evidente que as instituições fechadas, não aparelhadas para o trabalho de ressocialização e educação dos adolescentes, ferem os direitos constitucionais, os estabelecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente e pactos internacionais.
No preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, encontram-se reconhecidos a dignidade inerente a todos os membros da família humana e seus direitos iguais e inalienáveis, com fundamento na liberdade, justiça e paz. Traz a esperança de um mundo em que os homens gozem de liberdade da palavra, crença e de viverem a salvo do remos.
Seus signatários comprometeram-se ao respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais, assim como a sua observância.
Destacamos, dentre outros, os direitos à liberdade, igualdade em dignidade e direitos (artigo 1°, à vida, à liberdade e à segurança pessoal (artigo 3°), reconhecimento como pessoa (artigo 6°), a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos, serviços sociais indispensáveis, direito à segurança em casos de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice (artigo 25), a instrução gratuita e obrigatória (artigo 26), a proibição da tortura, tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante 9artigo 5°), e 0 de receber dos Tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhes sejam reconhecidos pela Constituição e pela Lei.
O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992, em seu preâmbulo, faz menção ao ideal do ser humano livre, no gozo das liberdades civis e políticas e liberto do temor e da miséria. Nele está garantido 0 tratamento com humanidade e respeito it dignidade inerente it pessoa humana, a toda pessoa privada de sua liberdade, o regime penitenciario deve consistir em urn tratamenro cujo objetivo principal seja a reforma e reabilitação moral dosprisioneiros, penitenciários juvenis devem ser separados dos adultos e receber tratamento condizente com sua idade e condição jurídica (artigo 10, itens I e III).
No artigo 10, item III do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais, ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992, determina a adoção de medidas especiais de proteção e assistência em prol de todas as crianças e adolescentes, determinando a sua proteção contra a exploração econômica e social. Foi reconhecido a todas as pessoas o direito a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, incluindo alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria continua de suas condições de vida.
A Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil em 20 de setembro de 1990, no seu artigo 40, item I, prescreve: Os Estados partes reconhecem o direito de toda criança, a quem se alegue ter infringido as leis penais ou a quem se acuse ou declare culpada de as ter infringido, de ser tratada de modo a promover, a estimular seu sentido de dignidade e valor e a fortalecer o respeito da criança pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais de terceiros, levando-se em consideração a idade da criança e a importância de se desenvolver sua reintegração e seu papel construtivo na sociedade.
o artigo 227 da Constituição Federal impõe como dever da família, da sociedade e do Estado garantir à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, ao lazer, à profissionalização. À cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligencia, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, relativamente aos adolescentes internados, prevê a obrigatoriedade de atividades pedagógicas (artigo 23, § único), tratamento com respeito e dignidade (artigo 124, inciso V), habitação em alojamento em condições adequadas de higiene e salubridade (artigo 124, inciso X), escolarização e profissionalização (artigo 124, XI), atividades culturais, esportivas e de lazer (artigo 124, inciso XII) e garantia a sua integridade física e mental pelo Estado (artigo 125).
Vale dizer que o artigo 15 garante à criança e ao adolescente os direitos civis, humanos e sociais estabelecidos na Constituição e nas Leis.
A aplicação da Constituição Federal, do Estatuto da Criança e do Adolescente e dos atos internacionais, pertinentes aos direitos humanos, encontra grande resistência na macro-estrutura econômica Mundial. A política do lucro sacrifica os objetivos éticos, gerando desemprego, fome e miséria. Não vivemos aqui e na grande parte dos países do mundo numa estrutura social justa.
Na prática não está equacionada a convivência humana para atendimento de sua dignidade e eticidade.
Nosso saudoso Betinho (Herbert de Souza), em artigo publicado no Jornal do Brasil em 12/09/1993, ao tratar da fome sustenta que ela e a realidade, o efeito e o sintoma, revelando a fundo o quanto uma pessoa está sendo excluída de tudo e com que frieza seu drama e ignorado pelos outros. Naquela data escreveu que havia 32 milhões de pessoas vivendo na indigência, denominando-os como “os sem nada, os sem comida”. Registrando a negação da condição humana a 20% de nossa população. Ela é o atestado da miséria absoluta, e o grito de alerta que sinaliza o desastre social de um País.
Betinho, (nosso porque está no coração do Brasil), colocou como postulado a negação radical da miséria e de todas as relações e processos capazes de gerá-la. Propôs virar o Brasil pelo avesso, passando a limpo a história, a sociedade, o Estado e a economia, estabelecendo que a exclusão produziu a miséria, mas que a solidariedade seria capaz de destruí-la, produzindo a cidadania plena, geral e irrestrita.
Nessa linha de pensamento, propomos uma mudança radical na adoção de decisões no âmbito do judiciário. Não pretendemos aqui qualquer disputa ou atrito com idéias divergentes e nem com qualquer magistrado que tenha uma compreensão diversa dessa realidade. Desnecessários e inúteis os araques recíprocos de instituições e pessoas sobre a responsabilidade quanto à situação caótica. Buscamos exatamente os pontos de convergência, com embates na persuasão, contrário que somos a qualquer ato que provoque desunião e fira o princípio da solidariedade.
O ponto nodal da questão não é jurídica. O coração de quem redige estas linhas busca a solidariedade tão bem cuidada por Betinho e denominada recentemente como amor social, pelo nosso escritor e teólogo Leonardo Boff. Qualquer Outra condução destas idéias devem ser ridas como destoantes da intenção do seu autor.
Não se duvida que o artigo 122 do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece casos de aplicação da medida de internação, quando o ato infracional e praticado mediante grave ameaça ou violência a pessoa, por reiteração no cometimento de outras infrações graves ou descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente Imposta.
Conclamamos os magistrados a meditação sobre as medidas privativas de liberdade aplicadas aos adolescentes.
Deve o magistrado ter conhecimento de que a realidade dos institutos e diversa do que estabelece a Lei. Os adolescentes não são reeducados e nem ressocializados. Seus direitos de “prisioneiros” são violados constantemente, fazendo crescer neles o ódio e a indiferença peia sociedade e autoridades constituídas, inclusive por aquelas que os sancionaram. Como se tivessem sido objetos de uma vingança em razão dos atos inflacionais por eles praticados, os menores infratores se vêem abandonados.
Se, de um lado, o magistrado cumpre a Lei ao determinar a internação do adolescente na hipótese do artigo 122, de outro, inicia um processo longo de violação dos direitos humanos do adolescente, sofridos na unidade de internação. Assim, estabelecido tal conflito, diante de um caso concreto, adequado as hipóteses do artigo 122 do ECA, acrescido do pavor da população relativamente a insegurança estabelecida em razão da criminalidade organizada, como aplicar medida de internação em estabelecimentos que mais parecem sucursais do lugar que imaginamos seja o inferno?
Poderá o magistrado, para afastar qualquer sentimento de culpa pela injustiça sofrida pelo adolescente, tecer o singelo argumento de que incumbe ao poder executivo viabilizar o cumprimento da medida e a garantia destes direitos. Este argumento também está correto. No entanto, esse raciocínio não atende a interpretação da legislação na sua totalidade. Se o magistrado tem conhecimento de que a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente não serão cumpridos, no momento em que aplica a medida de internação, seu ato ensejará, com certeza, a violação destes direitos humanos.
Vale dizer que a medida de internação, quando o instituto não se preta a ressocialização do adolescente, não atende ao interesse da sociedade nem do adolescente. Da primeira porque receberá de volta em seu seio aquele que incorpora o perigo e representa a insegurança, que quer afastado e “sob controle”. O segundo porque, provavelmente, reassumirá sua condição delinqüente no meio em que vive, já que de outro universo não pode fazer pane, vivendo a inafástavel realidade da exclusão, que é perfeitamente visualizada em cada olhar cheio de medo que lhe é endereçado nas ruas.
Não podendo ultrapassar o prazo de três anos, a internação servirá apenas para alimentar o ódio e a revolta do adolescente que, sem o atendimento legal com dignidade, voltará a sociedade com um potencial de violência aumentado. Está é a nossa realidade presente. Os internados há três anos retornam diariamente a Comunidade sem ressocialização por ausência de educação.
Pelo visto, o sistema atual é pouco inteligente e sem nenhuma eficácia prática.
Como magistrado, sentimos que nos será indagado sobre a difícil resposta da medida adequada a ser aplicada, quando se tem conhecimento de que as entidades de internação não cumprem a sua destinação.
Evidentemente a resposta não se resolve com uma regra única, que se adéqua a todos os casos. Todos os magistrados, sem nenhuma exceção, são favoráveis ao cumprimento dos direitos humanos, especialmente quando se refere as crianças e aos adolescentes. O que devemos nos indagar é o respeito do que fazer para impedir a sua violação. Nesse dilema da adoção da medida, entende-se que a internação não pode e nem deve ser aplicada quando a instituição de internação não cumpre os direitos humanos do adolescente. Para fazer cumprir a medida de internação, o magistrado deve se certificar de que, no estabelecimento de internação, todos os direitos humanos são garantidos na realidade. Em síntese: os adolescente somente podem ser encaminhados a instituições aparelhadas ao cumprimento da sua finalidade. Assim, estarão respeitados os direitos humanos.
Agindo desta forma, o magistrado cumprida Lei na sua totalidade.
Diante deste quadro, levados pelo sentimento de humanidade, devemos debater e realizar trabalho pessoais dentro das instituições fechadas para, cumprindo o ECA e a Constituição Federal, ver garantidos os direitos estabelecidos. Evidentemente deve o trabalho ser estendido ao atendimento das medidas de semi-liberdades (CRIAM’s).
Não pode esse trabalho ser exclusivo de comissários de menores, mas impõe-se que seja também pessoal de juízes, promotores de justiça, defensores públicos e membros do poder executivo vinculados a tal área, formadores de uma comissão permanente de efetiva fiscalização, com poderes para adorar as medidas cabíveis para cumprimento da Lei.
Por fim, permito-me trazer a idéia central do nosso Betinho e conclamar os magistrados com atuação na justiça da infância e juventude a fim de formular um postulado de mudança radical no que pertine a aplicação de rodas as medidas educativas as crianças e aos adolescentes, manifestando a indignação frente a toda degradação humana, lutando na prática contra todos os atos atentatórios aos direitos humanos, inclusive aos filhos da fome e da miséria que comparecerem a nossa casa da justiça.
Tais providencias nos livrarão de que nos teste tão somente o lamento diante da cruel e desumana realidade que nos cerca e atinge diariamente, evitando que tenhamos razão para reviver o sentimento retratado no poema Navio Negreiro de Castro Alves.