A abertura do Tribunal Constitucional italiano ao amicus curiae

16 de abril de 2020

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Importante novidade em linha com a transparência e o diálogo

Através do Comunicato de 11/01/20201, assinado pela primeira Presidente mulher na história do Tribunal Constitucional italiano, Marta Catarbia, foram anunciadas importantes reformas para o processo constitucional no ordenamento. As novas disposições do texto regulamentar “Normas integrativas para os juízos diante do Tribunal Constitucional” preveem, dentre outras novidades, que associações, organizações não-governamentais e entidades sem finalidade de lucro, portadoras de interesses coletivos ou difusos relativos à questão de constitucionalidade, possam apresentar ao Tribunal breves opiniões escritas a fim de fornecer elementos úteis ao conhecimento e ao julgamento da controvérsia sob juízo. A admissão do chamado amicus curiae (literalmente amigo da corte)2 ao processo constitucional italiano representa uma abertura à transparência por parte do Tribunal Constitucional e, portanto, um elemento que visa favorecer a legitimação da sua jurisprudência.

O supracitado Comunicado – expressivamente intitulado “La Corte si apre all’ascolto della società civile” – pré-anunciou a entrada em vigor da Delibera “Modificazioni alle ‘Norme integrative per i giudizi davanti alla Corte costituzionale”, que aconteceu após a sua publicação pela Gazzetta Ufficiale della Repubblica Italiana nº 17, de 22/01/20203.

A reforma disciplina, nesta ordem, a intervenção de terceiros (art. 4, §§ 6° e 7°), a admissão do amicus curiae (art. 4-ter) e a participação de espertos/peritos (art. 14-bis). A primeira novidade tipifica a prática do Tribunal de admitir a intervenção de terceiros, titulares de um interesse qualificado, nos juízos constitucionais de natureza incidental; sobre a segunda, discorreremos de forma mais detalhada a seguir; enfim, a terceira inovação introduzida autoriza a audição de “especialistas de clara fama”, útil sobretudo nas hipóteses de temas que apresentam elementos técnicos importantes, que geralmente são acompanhadas por uma grande sensibilidade no plano ético (hard cases).

Em geral, uma tendência à abertura do processo constitucional para além das partes também interessa outros ordenamentos nacionais (com alguns núcleos de resistência)4, além dos tribunais internacionais, como o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem5 e a Corte Interamericana de Direitos Humanos6.

Para o ordenamento brasileiro, a participação de amici curiae no processo constitucional também não é novidade, tendo sido já amplamente experimentada7: é sabido que a sua intervenção no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade pode ser enquadrada nos artigos 7º, § 2° e 20 da Lei nº 9.868/1999 (Lei que disciplina a Ação Direta de Inconstitucionalidade/ADI e a Ação Declaratória de Constitucionalidade/ADC); nos §§ 1º e 2º do art. 6º da Lei nº 9.882/1999 (Lei que disciplina a Arguição de Preceito Fundamental/ADPF); bem como no próprio Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (STF), após a aprovação da Emenda Regimental nº 15/2004, que modificou o art. 131, § 3 daquele diploma – tendo sido, antes disso, admitido em decisões como a da ADIN 2321-MC/DF, em cujo voto o relator Ministro Celso de Mello discorreu amplamente sobre o tema. Na esfera infraconstitucional, o cabimento do amicus curiae também é pacífico, tendo sido tipificado no art. 138 no novo Código de Processo Civil.

Assim, para entender a relevância desta reforma para a Itália e o porquê ela aconteceu nesse momento é oportuno antes traçar, em grandes linhas, a conformação e o funcionamento do Tribunal Constitucional daquele país a partir de uma perspectiva comparatística.

Criado pela Constituição da República Italiana de 19488, o Tribunal Constitucional italiano depositou a sua primeira sentença em 19569.

Sua composição e sistema de nomeação são bem diversos do modelo brasileiro: segundo o art. 135 da Constituição italiana, o Tribunal é composto por 15 juízes escolhidos dentre magistrados das jurisdições superiores ordinárias e administrativas, professores universitários catedráticos em matérias jurídicas e advogados após 20 anos de exercício da profissão. Um terço dos membros são nomeados pelo Presidente da República, um terço pelo Parlamento reunido em sessão conjunta de Senado e Câmara dos Deputados, e um terço pela magistratura suprema ordinária e administrativa, por um mandato de nove anos10. Esta peculiaridade no sistema de nomeação garante a convivência de elementos de extração política e judicial, indispensáveis para garantir uma abordagem técnica eficaz e, ao mesmo tempo, sensível a questões político-constitucionais. O presidente da Corte constitucional tem mandato de três anos e é reelegível, sendo normalmente escolhido com base na própria seniority. Dentre suas prerrogativas encontra-se a de repartir as relatorias das controvérsias entre os magistrados ou, em outras palavras, designar o relator para cada controvérsia.

No ordenamento italiano prevalece a ideia da justiça constitucional como função orgânica ou, em outras palavras, administrada por um órgão e não por pessoas. A rígida adesão ao princípio de colegialidade também produz consequências para o processo deliberativo: por exemplo, a inadmissibilidade de opiniões separadas, concorrentes ou discordantes, à sentença11. Da mesma forma, todo o processo de discussão entre os magistrados e tomada da decisão (Camera di consiglio) desenvolve-se de forma reservada, longe do debate público. E a dialética interna do Tribunal não é explicitada na fundamentação da sentença, que normalmente limita-se a fundamentar a solução que prevaleceu durante o processo deliberativo reservado12.

O Tribunal não dispõe de um procedimento de certioriari como é comum nas cortes com competência constitucional da tradição de common law, por exemplo, mas administra o próprio docket através dos elementos processuais da “manifesta infondatezza” (manifesta ausência de fundamento)13 e da manifesta inammissibilità (manifesta inadmissibilidade)14. A partir dos anos 1990, a possibilidade dos magistrados ordinários adotarem a chamada “interpretação conforme à Constituição” e evitarem, desta forma, de referir à Corte constitucional eventuais questões de legitimidade constitucional, representou uma forma de controlar e conter a multiplicação de recursos diante do Tribunal15.

No que concerne a sua jurisdição, segundo o art. 134 da Constituição italiana e o art. 2º da Lei Constitucional nº 1 de 11/03/1953, o Tribunal Constitucional italiano julga as controvérsias relativas à legitimidade constitucional de leis e atos com força de lei, decide sobre conflitos de atribuição entre os poderes do Estado, entre os poderes do Estado e das Regiões e entre as Regiões, julga acusações contra o presidente da República e decide sobre a admissibilidade de referendum.

O sistema de judicial review pode ser considerado híbrido. Somente o Tribunal tem jurisdição para decidir sobre questões de constitucionalidade (por meio do método direto), mas em casos específicos ela pode vir a conhecer da questão através de juízes ordinários (método incidental). Somente o Estado e as Regiões possuem acesso direto à Corte, podendo impugnar diretamente as respectivas leis no âmbito do controlo dito “abstrato”16; não é prevista a possibilidade de um recurso direto ao juiz constitucional por parte de um indivíduo por suposta violação de direito constitucionalmente garantido17. A Corte também poderá ser investida de questão da legitimidade constitucional de lei ou de ato com força de lei, questão formulada de ofício ou por pedido de uma das partes, durante o processo18.

Um aspecto em particular da Corte constitucional italiana revela a importância da novidade da admissão do amicus curiae: não obstante, pela própria caracterização e funcionamento, a Corte sempre tenha se mostrado aberta à relação com outros órgãos do Estado (como os magistrados ou o Parlamento), bem menos marcada pode ser considerada a sua abertura aos chamados materiais externos (doutrina, Direito estrangeiro, Direito internacional, elementos extra-jurídicos). No sentido de que, embora tais materiais externos sejam de fato considerados na tomada das decisões (por exemplo, poucos sabem que a Corte constitucional tem um departamento de Direito comparado), isto não emerge no texto das mesmas e, por isso, o diálogo com citados materiais foi definido como “tripla I”: informal, implícito, indireto. Este posicionamento pode incidir negativamente em termos de legitimação da jurisprudência da Corte e por isso há tempos a doutrina tem solicitado maior abertura do processo constitucional “para além das partes”19. Neste sentido, a admissão dos amici curiae representa mudança e abertura importante para o processo constitucional italiano.

Retomando a breve análise do art. 4-ter do novo texto das “Normas integrativas”, rubricado “amici curiae”, observa-se que o mesmo permite às “formações sociais sem finalidade de lucro e aos sujeitos institucionais, portadores de interesses coletivos e difusos reativos à questão da constitucionalidade” de “apresentar ao Tribunal Constitucional uma opinião escrita”. No que concerne ao perfil subjetivo, portanto, foi excluída a participação na veste de amicus curiae de pessoas físicas e de empresas.

A norma também determina que a opinião deve apresentar a forma escrita e ter a dimensão de, no máximo, 25 mil batidas (art. 4-ter, n. 2), em vistas a evitar aumento excessivo da carga de trabalho do Tribunal. Os sucessivos parágrafos da norma estabelecem que a admissibilidade da intervenção deve ser aceita com decisão (Decreto) do presidente da Corte, após ter sido ouvido o juiz relator e, atente-se, sem qualquer referência à manifestação das partes (art. 4-ter, n. 3). Do ponto de vista objetivo, a mesma disposição parece colocar um requisito de admissibilidade ao referir que serão admitidas as opiniões que contenham “elementos úteis ao conhecimento e à decisão do caso, inclusive em vista da sua complexidade”.

Enfim, a disposição delimita a posição processual dos amici curiae, estabelecendo que os mesmos não serão qualificados como partes no processo e não podem tomar parte das audiências (art. 4-ter, n. 5). Esta última limitação não deixou de provocar apreensão nas primeiras observações feitas ao Comunicato: até que ponto o Tribunal realmente “abre-se” ao espaço público se os argumentos trazidos pelos amici curiae ingressam no processo, mas fora do mecanismo do contraditório das partes?20

É quase supérfluo observar que somente a praxe aplicativa do novo instituto poderá dirimir esta e diversas outras dúvidas. Resta o fato de que com a presente reforma o Tribunal Constitucional italiano demonstra-se mais sensível à exigência atual de estabelecer um canal de diálogo com o espaço público, inclusive como forma de legitimar o próprio operado.Otae lat aciate

Notas___________________________

1 Acessível em: https://www.cortecostituzionale.it/documenti/comunicatistampa/CC_CS_20200111093807.pdf

2 Como amicus curiae entende-se aqui, em definição simplificada, a pessoa física ou jurídica que possui reconhecida competência na matéria objeto do processo e que intervém no mesmo, sem confundir-se com as partes e com os peritos ou consultores técnicos, exprimindo opinião motivada sobre questão jurídica relevante. Afirma-se que o instituto teve origem no ordenamento inglês, dali chegando aos Estados Unidos, onde adquiriu grande relevância e visibilidade, sobretudo no que concerne à atuação da Supreme Court of the United States e a outros sistemas jurídicos pertencentes à tradição do common law.

3 O texto regulamentar atualizado encontra-se disponível no website do periódico Consulta Online: http://www.giurcost.org/fonti/integrative.htm

4 Vide Passaglia, P. (a cura di), L’intervento di terzi nei giudizi di legittimità costituzionale, Corte Costituzionale, Servizio Studi, Area di diritto comparato, 2018, para uma reconstrução da disciplina do instituto na África do Sul, Alemanha, Áustria, Bélgica, Colômbia, Espanha, Estados Unidos e França (disponível em https://www.cortecostituzionale.it/documenti/convegni_seminari/Internet_Comp_244.pdf.)  Em especial ilustrando o panorama latino-americano Bazán, V., Amicus curiae, justicia constitucional y derecho internacional de los derechos humanos, in Pegoraro, L.; Bagni, S.; Pavani, G., Metodologia della comparazione. Lo studio dei sistemi giudiziari nel contesto euro-americano, Bologna, 2014, p. 131 ss.

5 Sobre o tema consulte-se, entre outros, Bürli, N., Third-Party Interventions before the European Court of Human Rights, Intersentia, 2017; Hennebel, L., Le rôle des amici curiae devant la Cour européenne des droits de l’homme, in Revue Trimestrielle des Droits de l’Homme, 2007, vol. 71, p. 641 ss.

6 Cfr. Buergenthal, T., The Advisory Practice of the Inter-American Human Rights Court, American Journal of International Law, vol. 79, 1985; Rivera Juaristi, F., The Amicus Curiae in the Inter-American Court of Human Rights (1982-2013) (August 1, 2014). Acessível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=2488073 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2488073

7 Em geral sobre a admissão do amicus curiae no ordenamento brasileiro veja-se Scarpinella Bueno, C. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático, Editora Saraiva, São Paulo, 2006 (o volume atualmente encontra-se na sua terceira edição).

8 As normas relativas ao Tribunal Constitucional encontram-se no Título VI, Secção I, arts. 134-137 da Constituição da República Italiana. Uma versão em língua portuguesa da Lei maior italiana encontra-se disponível no endereço web  https://www.senato.it/application/xmanager/projects/leg18/file/repository/relazioni/libreria/novita/XVII/COST_PORTOGHESE.pdf

9 O longo intervalo entre a criação e o início do efetivo funcionamento do Tribunal Constitucional foi devido à necessidade de aprovação de duas leis, uma constitucional e uma ordinária, para disciplinar o processo constitucional (Lei Constitucional nº 1, de 11/03/1953 “Norme integrative della Costituzione concernenti la Corte costituzionale”; e Lei ordinária nº 87, de 11/03/1953 “Norme sulla costituzione e sul funzionamento della Corte costituzionale”), bem como às dificuldades encontradas pelo Parlamento italiano para a designação dos juízes de sua competência.

10 Neste sentido, o modelo italiano posiciona-se entre o alemão, em que o bundesverfassungsgerichtof é elegido pelo Parlamento, e o sistema norte-americano ou brasileiro, onde os justices ou ministros são nomeados pelo presidente da República após a confirmação pelo Senado.

11 Sobre o tema, que ciclicamente apresenta-se como uma possibilidade – nunca concretizada – para o Tribunal Constitucional italiano, veja-se, inter alia, Cassese, S., Lezione sulla cosiddetta Opinione Dissenziente, Versione ampliata della introduzione a un seminario della Corte costituzionale (22 giugno 2009) disponivel em https://www.cortecostituzionale.it/documenti/convegni_seminari/Opinione_dissenziente_Cassese.pdf. Para uma reconstrução atual e detalhada da admissibilidade do instituto nos Estados-membros da União Europeia veja-se Dissenting Opinions in the Supreme Courts of the Member States (disponível em http://www.europarl.europa.eu/document/activities/cont/201304/20130423ATT64963/20130423ATT64963EN.pdf.

12 Zagrebelsky, G., La Corte costituzionale italiana, in Pasquino, P.; Randazzo, B. (a cura di), Come decidono le Corti costituzionali (e altre Corti). Atti del Convegno Interazionale svoltosi a Milano, il 25-26 maggio 2007, Giuffrè, 2009, pp. 76-77.

13 Artigos 24 e 26 da Lei Ordinária nº 87, de 11/03/1953.

14 Art. 9º, § 2, da Lei Constitucional nº 1, de 11/03/1953.

15 Assim Barsotti, V.; Carozza, P. G.; Cartabia, M.; Simoncini, A., Italian Constitutional Justice in Global Context, Oxford University Press, 2015, p. 49.

16 Art. 124, nº 4, da Constituição italiana e art. 2º da Lei Constitucional nº 1, de 9/02/1948 “Norme sui giudizi di legittimità costituzionale e sulle garanzie d’indipendenza della Corte costituzionale”.

17 No âmbito europeu, contrariamente à Espanha, onde é previsto o recurso de amparo (artigos 53 e 161-162 da Constituição espanhola de 1978) ou à Alemanha, com o Verfassungsbeschwerde (artigos 93-94 da Lei fundamental alemã de 1949).

18 Art. 1º da Lei Constitucional nº 1, de 9/02/1948.

19 Cfr. Groppi, T., Interventi di terzi e amici curiae: dalla prospettiva comparata uno sguardo sulla giustizia costituzionale in Italia, in Consulta online. Periodico telemático, 2019, fasc. 1, p. 125.

20 Assim Schillaci, A., La “porta stretta”: qualche riflessione sull’apertura della Corte costituzionale alla “società civile”, in Diritti Comparati. Comparare i diritti fondamentali in Europa, 31/01/2020. Disponível em http://www.diritticomparati.it/la-porta-stretta-qualche-riflessione-sullapertura-della-corte-costituzionale-alla-societa-civile/.