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Visão e visões

11 de janeiro de 2013

Membro Titular da American Academy of Ophthalmology - Diretor do Núcleo Central de Oftalmologia do Colégio Brasileiro de Cirurgiões (RJ)

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No momento em que o Rio de Janeiro é brindado com a magnífica exposição de 85 pinturas do Museu d’Orsay no Centro Cultural Banco do Brasil, vale a pena chamar a atenção do grande público para alguns aspectos visuais que afligiram, e ainda afligem, a vida de inúmeros artistas e que fogem, muitos deles, ao conhecimento da maior parte da população.

Na verdade, há muito tempo pesquisadores em artes se debruçam na análise das obras de vários pintores sugerindo diversas explicações para a forma de cada um e eventuais mudanças em seus padrões de cores e comportamentos. Para tais analistas, muitos artistas sofreram influência de vários distúrbios oculares dos quais, possivelmente, eram portadores.

Domenikos Theotokopoulos, por exemplo, mais conhe­cido como El Greco (1541-1614), nascido na ilha de Creta mas que viveu grande parte de sua vida na Espanha, se caracterizou por representar suas figuras extremamente longilíneas. Apesar de haver certa discordância entre os analistas, para muitos deles não restam muitas dúvidas: El Greco devia ser muito astigmata, o que o levava a retratar objetos e pessoas muito alongadas. Na sua época já existiam óculos para corrigir vícios de refração mas não para o astigmatismo. Outros artistas também eram portadores deste mesmo erro refracional como Cranach, Botticelli, Modigliani.

Vincent van Gogh (1853-1890), acossado por uma série de enfermidades físicas e mentais, incluindo síndrome maníaco-depressiva, é suspeito de ter tido intoxicação digitálica (veementemente desmentido pelo seu médico e amigo, Dr. Paul Gachet), ou tomado santonina (usado no tratamento de desordens gastrointestinais) ou ser portador de xantopsia (do grego xanthós = amarelo e ópsis = vista), que poderiam tê-lo levado à abusar do amarelo em suas pinturas. Alguns de seus quadros mais famosos, pintados durante sua estadia na Provence, sul da França, como a Yellow House, In the Harvest, The Starry Night, demonstram esta característica comum de predomínio da cor amarela.

Após o suicídio cometido aos 37 anos, em meio a um estado de profunda depressão, foi sepultado em Auvers-sur-Oise em um caixão coberto com flores amarelas. A maioria das obras de van Gogh são mantidas em mãos de seus descendentes, através da Vincent Van Gogh Foundation e expostas de forma permanente em Amsterdan, no Van Gogh Museum.

Doenças maculares e catarata influenciaram drama­ticamente a vida de muitos pintores, provocando perda de qualidade cromática e falta de definição de formas e contornos. Mary Cassatt (1844-1926), considerada por muitos a mais famosa artista norte-americana nos últimos 100 anos e muito identificada com o impressionismo, acabou por abandonar a pintura por causa da catarata. Charles Meryon (1821-1868) e outros artistas, com problemas de deficiências cromáticas severas, ao tomarem consciência da existência de tais anomalias, acabaram adotando outras formas de manifestações artísticas que não utilizassem cores.

Claude Monet (1840-1926) viveu os últimos anos de sua vida em permanente luta com as consequências da catarata e de seu resultado cirúrgico. Há inúmeras trocas de correspondências arquivadas na França, entre o pintor e seu cirurgião, algumas delas de teor bastante áspero por parte do artista, através das quais Monet manifestava total frustração e desespero com a sua afacia (ausência do cristalino natural existente dentro dos olhos) e incapacidade em seguir pintando adequadamente. Sua decepção foi de tal ordem, principalmente pela percepção de um tom azulado, que detestava, com que passou a ver a natureza, que não se deixou operar o segundo olho.

Totalmente diferente das técnicas cirúrgicas hoje empregadas na moderna oftalmologia e que inclui a implantação de cristalinos artificiais dotados de filtro ultravioleta, a remoção da catarata na época, através de uma grande incisão com inúmeras suturas que tinham de ser removidas semanas depois, era seguida da prescrição de óculos especiais, de lentes muito espessas, que provocavam uma série de dificuldades para andar e, no seu caso em especial, pintar. Por conta desta experiência que o atormentava imensamente, Monet só conseguiu superar o trauma anos mais tarde, logrando concluir cerca de 40 telas contratadas pelo governo francês e hoje parte do acervo da L´Orangerie.

Monet, o grande mestre do impressionismo, revela uma brusca mudança no seu estilo entre antes e depois da Primeira Grande Guerra. Documentos revelam que sua catarata já estava presente em 1912, e as alterações decorrentes dela e manifestadas em seus quadros são de tal ordem neste período que produzem o início de um movimento artístico que viria a ser denominado de expressionismo abstrato.

Seus quadros, retratando em distintas épocas jardins e pontes no seu jardim em Giverny, registram claramente a degradação da visão de Monet. Em um deles, datado de 1900 (Water Lily Garden), podemos ver com riqueza de detalhes toda a vegetação e o riacho por baixo da ponte coberto de flores aquáticas.

Já em outro, datado de 1922 (Japanese Footbridge at Giverny), Monet revela consequências de sua visão comprometida pela catarata, com um confuso borrão de cores bastante escuras, e onde, quase por advinhação, percebe-se a presença do mesmo jardim.

Inúmeros outros exemplos poderiam ser citados de artistas que tiveram o privilégio de usar e abusar de cores e formas, criar ilusões pictóricas, jogar com efeitos de luz e sombra, dar distintas texturas às suas imagens, despertando em todos nós sentimentos de alegria, tristeza, admiração, repulsa. O que mais nos surpreende, entretanto, é saber que muitos deles, mesmo com todas suas mazelas humanas, seus delírios e delinquências, seus martírios, conseguiram deixar um legado perene, para toda a humanidade, de amor e respeito pelo homem e tudo o que o cerca.