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Visão da floresta

5 de julho de 2004

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Li a petição inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade, de n. 2.946, em que o Ilustre  Procurador-Geral da República postula, perante o STF, o reconhecimento da inconstitucionalidade do art. 27 da Lei 8.987/95, que prevê a possibilidade de transferência de concessões ou permissões mediante prévia anuência do poder concedente. O fundamento básico  da ADI é o de que transferir viola a norma constitucional segundo a qual toda a nova concessão ou permissão depende de licitação. Sei que essa é a opinião de alguns professores de direito administrativo, em que o chefe do Ministério Público foi beber a equivocada lição de que transferir fere a Constituição.

Na verdade, o Procurador-Geral, ao endossar tal tese a ponto de submetê-la à mais alta Corte do País, perdeu a visão da floresta. A norma que autoriza as transferências de concessões [ou permissões] não está solta no sistema concessional. A Lei 9.074/95, que complementa a Lei 8987/95, no Capítulo III, em que cuida da reestruturação dos serviços públicos concedidos, autoriza a União a aprovar cisões, fusões e transferências de concessões, “estas últimas nos termos do disposto no art. 27 da Lei 8.987, de 1995”.

Logo, todas as disposições do sistema elétrico estão implicitamente em jogo nessa jogada de alto risco jurídico promovida pela Procuradoria-Geral, assim como o de telecomunicações, o de petróleo, o do transporte aéreo, o do rádio-difusão. Todos eles consagram a regra que permite as transferências. Se ela é inconstitucional, o sistema está contagiado. Ou será.

Assim, ao contestar a constitucionalidade do art. 27 da Lei 8.987/95, a Procuradoria-Geral está agredindo todo o sistema concessional que acolhe a mesma regra, Há, portanto, na ação proposta, inarredável contradição ou indesculpável ignorância do regime de concessões em vigor no País que, por sua vez, faz parte de um novo modelo do Estado brasileiro, interessado em atrair, e não em afugentar, capitais privados para investimentos no serviço público.A transferência é uma forma de acomodação absolutamente indispensável para resolver problemas na execução da concessão.

A crença na suposta inconstitucionalidade do art. 27 da Lei 8.987/95 parte de um problema de desatenta leitura e compreensão do art. 175 da Constituição. O que neste se lê é que nenhuma concessão ou permissão [nova] pode ser outorgada sem a prévia exigência, sempre, de licitação.

Na transferência da concessão, porém, não se está, de nenhuma forma, criando uma nova concessão. A relação concessional originária permanece a mesma, ocorrendo, apenas, a substituição de um dos pólos da relação concessional. Com a transferência não nasce uma nova concessão,  mas tão somente o direito de explorar a concessão existente, de cumprir os exatos termos do contrato em vigor. Há tão somente a substituição de um dos contratantes nos direitos e obrigações contratuais do substituído. O fenômeno tem a indisfarçável marca da sub-rogação.

Acrescente-se que a relação intuitu personae do contrato é preservada no caso da transferência, eis que o cessionário deve preencher todas as condições de habilitação jurídica, capacidade técnica e regularidade fiscal para contratar com o Estado; a este, de resto, efetivamente, cabe a última palavra para dar ou negar a anuência pretendida, conforme estabelecido no parágrafo único, art. 27, da Lei das Concessões. A anuência, inclusive, pode simplesmente ser negada por entender-se inconveniente ao interesse público a substituição do concessionário; ou por não preencher  o cessionário os requisitos para contratar com o Estado.

A cláusula intuitu personae não é, como pode transparecer a uma leitura desatenta, uma cláusula subjetiva. Ela quer dizer, simplesmente, que o candidato para contratar com o Poder Público deve preencher todas as exigências impostas para a contratação. O contrato não é celebrado pela tradição, pelo apadrinhamento, pela aparência, pela popularidade dos acionistas, pela importância dos proprietários da empresa, pela mídia de que dispõem, mas em função da pessoa que preenche as condições objetivas de contratação com o poder público. Por isso é que se diz que o contrato é firmado em razão da pessoa, isto, intuitu personae,  por atender a todas as exigências de contratação com o poder público.

Na transferência da concessão, o cessionário – se preencher as condições objetivas para a contratação – pode [ou não] ser aceito pelo poder concedente para substituir o primitivo contratante, obrigando-se a cumprir a proposta que o poder público considerou, ao contratar, a mais vantajosa para a administração ou para o serviço público. Por isso que a transferência depende, sempre, da prévia anuência do poder concedente que pode, ou não, aceder na transferência, mesmo que o cessionário preencha todas as condições para contratar com o poder público.

Não há direito à transferência até mesmo porque a titularidade da concessão é do Estado e este é quem dá a última palavra sobre a substituição do concessionário. Essas observações valem para a transferência da concessão tanto quanto para transferência do controle societário da concessionária.

Como a lei 8987/95 incorretamente exigiu licitação para a subconcessão e não a exigiu para as transferência, raciocina o Ministério Público, ante essa contradição, que o mesmo princípio, o da licitação exigido da subconcessão, devia ser exigido da transferência. Trata-se de um raciocínio baseado no erro do legislador. Na verdade, o que o Ministério Público devia dizer era que o legislador foi contraditório, pois devia dispensar a licitação não apenas no caso de transferência, mas também no caso de subconcessão.

A contradição, portanto, não se resolve pela solução de que também a transferência deveria ser objeto de licitação e, sim, no sentido de que o legislador deveria ter sido coerente e inexigir a licitação também para a hipótese da subconcessão. A subconcessão é uma espécie de parceria e essa  perde o sentido quando parceiro não é escolhido pelo outro parceiro. Subconcessão com licitação é o mesmo que um casamento contratado pelos pais dos noivos. Quem deve aprovar a subparceria é o Estado como na transferência, mas quem escolhe é o concessionário.

Se se consultar a experiência jurídica, ver-se-á que a transferência, no mais das vezes,  é o caminho do interesse público mais curto para a pronta substituição da pessoa jurídica concessionária, em dificuldades financeiras, operacionais ou técnicas, por outra habilitada, sem que haja solução de continuidade dos serviços. Atrás da transferência está, nítido para quem sabe ver, o princípio da continuidade do serviço público. O que se oculta para trás da questão da transferência é exatamente a problemática da continuidade em face da necessidade de reestruturação do serviço público quando circunstâncias econômicas, financeiras ou técnicas imponham modificações superiores às forças ou à tecnologia do concessionário.

Por isso mesmo, a Lei 9.074/495 – que complementa a Lei das Concessões – incluiu o instituto da transferência no Capítulo em que cuida da “reestruturação dos serviços públicos” [art. 26, II} e, como norma para os serviços federais, recomenda a observância do princípio da “garantia da continuidade da prestação dos serviços públicos”[Lei 9.074/95, art. 3, inc. I]. Ou seja, a transferência enseja que um dos princípios básicos, fundamentais, da relação de serviço público – a continuidade, a permanência – não seja afetado.

Observe-se que a cessão e transferência dos direitos de concessão constitui capítulo vetusto da teoria da concessão de serviço público e, pelo menos nos últimos cem anos, sempre se admitiu, mediante a indispensável e prévia concordância do poder concedente, a possibilidade de circulação dos direitos concessionais.  A regra, como registrava Jèze nas primeiras edições de seu Tratado, m 1930,  há mais de setenta anos, era a de que “se prohibe ceder el contrato administrativo sin autorización em razão da essencialidade da relação intuitus personae 1Observa o clássico tratadista, porém, que  “la doctrina y la jurisprudencia están de acuerdo, en la actualidad, en reconocer a la autoridad que ha dado la concesión el derecho de aprobar cualquier sustitución de un concesionario por otro, ya se trate de cesiones voluntarias o de cesiones forzosas” 2. A aprovação supre o requisito da relação intuitu personae pois o cessionário só pode sub-rogar-se na relação se preencher todos os requisitos exigidos para contratar com o poder público.

Marcelo Caetano, no seu clássico “Manual de Direito Administrativo”,  define o “trespasse” [transferência] da concessão assim: “Dá-se o trespasse da concessão quando o concessionário transmite a outra empresa, com assentimento do concedente, a sua posição no serviço, obrigando-se o novo concessionário a cumprir as cláusulas do primitivo acto constitutivo”3. E observa com acuidade: “O assentimento do concedente ao trespasse distingue-se de uma concessão nova por no trespasse o novo concessionário se limitar a levar a cabo a execução dos compromissos assumidos pelo antigo, regendo-se, portanto, as suas relações com o concedente pelo primitivo título constitutivo e sucedendo o novo concessionário ao antigo nos direitos e obrigações em relação ao serviço público” 4.

Quanto à subconcessão, tem ela o mesmo tratamento do “trespasse”, mediante prévio assentimento do poder concedente, consistindo ela na “transferência que o concessionário, autorizado pelo concedente, faz para outra empresa de uma parte dos encargos do serviço concedidos e dos poderes necessários para os cumprir, nas condições em que entre o concessionário e o subconcessionário forem estipuladas”, inexistindo “relações diretas entre o concedente propriamente dito e o subconcessionário”5. Por aí já se vê como o art. 26 da Lei das Concessões, ao cuidar das subconcessões,  afastou a proa do rumo da verdadeira teoria geral do direito das concessões de serviços público. Fê-lo, obviamente, por falta de cultura da teoria geral da concessão do serviço público. Mas ao cuidar das transferências, manteve-se fiel à doutrina do direito das concessões imodificada nos últimos cem anos.

Recentemente, Eurico de Andrade Azevedo e Maria Lúcia Mazzei de Alencar, na sua obra “Concessão de Serviços Públicos” [ed. Mallheiros, SP, 1998], expressaram estas judiciosas palavras: “Pode convir ao interesse público a transferência da concessão a outra empresa do ramo que, seguramente, venha obtendo sucesso em empreendimentos similares. Como a lei exige que o pretendente atenda a todas as exigências de capacidade técnica, idoneidade financeira e regularidade jurídica e fiscal, obrigando-se a cumprir as cláusulas do contrato em vigor, pode-se entender que o requisito constitucional impositivo da licitação já foi atendido quando da outorga da concessão, como bem observa Arnold Wald. Na mesma ordem de idéias, em judicioso comentário sobre a matéria e apresentando exemplos elucidativos, Maria Aparecida Fagundes chega à mesma conclusão, argumentando que a maleabilidade introduzida pelo art. 27 favorece o interesse público, permitindo que o poder concedente atenda aos princípios constitucionais da finalidade e da razoabilidade” [p. 111].

Dessa mesma forma é tratada, no direito argentino, a cessão do contrato como a subcontratação [leia-se, a transferência da concessão e a subconcessão6, ou seja, ambas subordinadas tão somente ao prévio consentimento do poder concedente, e os exemplos poderiam ser multiplicados com socorro à doutrina estrangeira. Seria muito atrevimento supor que todos esses eminentes cultores do direito público tivessem pregando a subversão dos princípios licitatórios nos respectivos países.

Assim, o argumento, fundado no art. 175 da Constituição, o de que o cessionário receberia a concessão ou permissão sem licitação,  constitui gritante falácia. O que a Constituição exige é que  ninguém pode ser investido numa nova permissão ou concessão sem licitação. A Constituição não proíbe a sub-rogação, ou seja, que um dos titulares do contrato seja substituído, sem que isso venha a caracterizar uma nova permissão ou concessão a reclamar licitação.

Em conclusão, o art. 27 da Lei 8.987/95 está afinado à teoria geral da concessão de serviço público e não apresenta nenhuma face de conflito com o art. 175 da Constituição, desde que seja observada a exigência de prévio assentimento para transferência dos direitos concessionais. Toda a legislação correspondente ao novo modelo do Estado brasileiro, fundado no renascimento do instituto da concessão, consagra o princípio doutrinário que admite a transferência. O instituto, ademais, está umbilicalmente ligado à história do direito das concessões.

Destarte, se o STF não for alertado por algum amicus curiae, de que ele não está julgando a árvore mas toda a floresta, um desastre pode cair sobre o sistema concessional do País e pôr em risco toda a reforma do Estado, em grande parte construída sobre a parceria com a iniciativa privada.

De outro lado, para acatar-se a alegação de inconstitucionalidade dois obstáculos devem ser vencidos: o primeiro, quanto à demonstração do alegado vício, e o segundo, quanto à presunção de constitucionalidade que milita em favor dos textos legislativos.

A alegação de inconstitucionalidade não pode ser aceita  quando, como no caso, vem genericamente formulada, sem demonstração razoávelda sua existência. Os princípios são adotados nas ações de inconstitucionalidade, mas, obviamente, são válidos para todas as hipóteses em que se pretendas desconstituir uma lei sob suspeita de inconstitucionalidade. Na ADIN n. 259-DF, o Ministro Moreira Alves [DJU de 19.2.93, p. 203] alertava que “é necessário, em ação direta de inconstitucionalidade, que venham expostos os fundamentos jurídicos do pedido com relação às normas impugnadas, não sendo de admitir-se alegação genérica de inconstitucionalidade, sem qualquer demonstração razoável…”7. A simples alegação de que a transferência deve obedecer ao princípio da licitação, constitui um argumento extremamente simplificado, que ignora toda a teoria da concessão do serviço público, tal como concebida, ensinada, aprendida e aplicada nos últimos cem anos. Não há, repita-se, nova concessão ou permissão, mas sub-rogação nos direitos e obrigações de concessão ou permissão existente.

De outra parte, como lembrava Alfredo Buzaid, porque “em favor da lei milita a presunção de constitucionalidade (cf., ainda, Willoughby, The Constitutional Law, vol. I, pág. 20; Walker, Introduction to American Law, Boston, 1887, pág. 73, nota “b”; Robert Carr, The Supreme Court and Judicial Review, pág. 188; Ghigliani, Del Control Jurisdicional de Constitucionalidad, pág. 90; Lúcio Bittencourt, O Controle Jurisdicional, pág. 91; Castro Nunes, Teoria e Prática do Poder Judiciário, Rio, 1943, pág. 590)” [Buzaid, Alfredo. Da Ação Direta de Declaração de Inconstitucionalidade no direito brasileiro, ed. Saraiva, SP, 1958, p. 23].

O eminente Carlos Maximiliano, na “Hermenêutica”, p. 312/3, professava: “Todas as presunções militam a favor da validade de um acto,  legislativo ou executivo; portanto, se a incompetência, a falta de jurisdição ou a inconstitucionalidade em geral, não estão acima de toda a dúvida razoável, interpreta-se e resolve-se pela manutenção do deliberado por qualquer dos três ramos em que se divide o Poder Público. Entre duas exegeses possíveis, prefere-se a que não infirma o ato da autoridade”. Lúcio Bittencourt, mais adiante, enfatizava esse princípio hermenêutico, segundo o qual, “sempre que possível, adotar-se-á a exegese que torne a lei compatível com a Constituição”8.Por isso, conclui o saudoso jurista, corolário da presunção de constitucionalidade das leis é a regra segundo a qual apenas deve ser reconhecida a inconstitucionalidade manifesta, decidindo-se, na dúvida, em favor da higidez do ato legislativo9.

Tal norma tem origem histórica na Lei 221, de 20 de novembro de 1894, cujo art. 13, § 110, dispunha: “Os juízes e tribunais apreciarão a validade das leis e regulamentos manifestamente incompatíveis com as leis ou com a Constituição”. Elival da Silva Ramos, Procurador do Estado de São Paulo, na sua preciosa monografia “A Inconstitucionalidade das Leis – Vício e Sanção”10 registra: “Uma vez que o conflito entre a lei e a Constituição não deve ser presumido – adianta Cooley – segue-se, necessariamente, que as Cortes devem, se possível, dar à lei interpretação tal que lhe permita manter-se válida e eficaz – the court, it possible, must give the statute such a construction as will enable it to have effect.” [p. 206].

A defesa do art. 27, feita pela Advocacia da União e as informações prestadas pelo Sr. Presidente da República, lamentavelmente se limitaram a defender a árvore e esquecer a floresta. Não disseram que todo o sistema de concessões do País, passando por energia elétrica, telefonia, radiodifusão, transporte aéreo, petróleo, mineração etc, possui regra semelhante. Estamos, pois, diante do risco de um colapso do sistema concessional como um todo e não apenas da lei geral se o STF não se der conta de que não basta avaliar a árvore sem a visão da floresta.

Notas _______________________________________________________________________

1 Jèze, Gaston. Principios de Derecho Administrativo, trad. arg., Depalma, B. Aires, 1950, vol. IV, p. 204/5.

2 Jèze, Gaston. Principios de Derecho Administrativo, trad. arg., Depalma, B. Aires, 1950, vol. IV, p. 205, Nota n. 21.

3 Caetano, Marcelo. Manual de Direito Administrativo. Coimbra. 1.960, p. 543.

4 Caetano, Marcelo. Manual de Direito Administrativo. Coimbra. 1.960, p. 543.

5 Caetano, Marcelo. Manual de Direito Administrativo. Coimbra. 1.960, p. 544.

6 Marienhoff, Miguel. Tratado de Derecho Administrativo, Ed. Abeledo-Perrot, B. Aires, 1.974, T. III-A,  p. 320, n. 700 e, ainda, T. III-B, p. 614.

7 Cf. in Loureiro, Lair da Silva, e outro, Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ed. Saraiva, 1996, p. 105.

8 O Controle Jurisdicional da Constitucionalidade das Leis. Atualização de José Aguiar Dias. 2ª ed., Rio de Janeiro. Forense. 1968, p. 118.

9 Lúcio Bittencourt, op. cit., p. 115.

10 Ed. Saraiva, SP, 1994.