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Vidas marcadas pela resistência ao autoritarismo

5 de junho de 2003

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Discurso do ministro Sepúlveda Pertence em saudação ao novo Presidente do Supremo Tribunal Federal

“Permitam-me os que honram esta solenidade que as primeiras palavras desta saudal1ao ao novo Presidente do Supremo Tribunal Federal tenham um toque marcadamente pessoal.

Agradeço-lhe, Ministro Maurício Correa, que de V.Exa. haja partido a minha indical1ao para saudá-lo em nome da Casa nesta hora culminante de sua vida pública: a escolha recorda quase meio século de convivência.

Colegas de turma – da orgulhosa Geral 60 da Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais –, nossas vidas acadêmicas foram diversas: a minha, dedicada a irrequieta agitação estudantil, de boemia despreocupal1ao com a vida futura; a sua, de laboriosa preparação para a afortunada vida profissional de advogado e empresário.

Eu, primeiro, V.Exa., meses depois, recém-formados, deixamos ambos a doce Belo Horizonte de nossa juventude, para vivermos a aventura da Brasília nascente, de cuja história nos fizemos testemunhas oculares e participantes.

Aqui, juntos, fadamos da OAB-DF o abrigo com um para a resistência possível ao arbítrio do regime militar; os trancos e as pisadelas da disputa eleitoral de 1984, cicatrizadas as magoas, não abalaram a reciprocidade da estima e do respeito que o reencontro no Supremo Tribunal transformou na amizade de hoje.

Confesso que o reencontro nesta Casa me surpreendeu: no advogado essencialmente pragmático, no político de estilo dinâmico e vocação executiva, revelado na presidência da Ordem, e reafirmado no Ministério da Justiça, não logrei eu adivinhar a sedução pela magistratura e suas múltiplas limitações de vida.

Não obstante, ao cabo de quase uma década de exercício da judicatura, chega V. Exa. a sua presidência da Casa ungido pelo reconhecimento geral de suas qualidades de juiz exemplar, incansavelmente dedicado – com inteligência, equilíbrio e descrição –, a faina irracional em que a falência de nosso modelo judiciário transformou a rotina dos juízes deste e outros tantos tribunais do País.

Já houve tempos – testemunha-o o grande Orozimbo – em que a presidência do Supremo Tribunal Federal, alem da honraria da investidura, representava um intervalo de calmaria e descanso para o ministro que o exercia.

Por certo, Presidente Mauricio Correa, não é o que o aguarda.

A chefia – malgrado simbólica – do Poder Judiciário fez do posto um dos mais difíceis da Republica.

A Constituição do Brasil – tendo repetidamente assinalado – apostou como nenhuma outra na solução jurisdicional dos conflitos de toda espécie.

Mas a máquina judiciária – que antes já não dava conta dos conflitos tradicionais –, cedo revelou a sua total incapacidade para responder, sequer razoavelmente, a demanda de jurisdição que se multiplica na razão direta da aceleração do processo democrático.

A virtual falência do sistema judiciário teve, assim, o travo da frustração de expectativas, que traz consigo a tendência da sociedade para atribuir a deficiência real do seu funcionamento a razões ocultas de ordem moral, freqüentemente assoalhadas com leviana generalização a partir de episódios isolados.

Os que se servem dessa predisposição na tentativa de acuar o Judiciário ou não se apercebem – ou se apercebem muito bem – de que a perda da credibilidade da Justiça afeta a sua própria legitimidade e compromete o desempenho de seu papel essencial na construção da democracia, cuja defesa intransigente incumbe a toda a magistratura, mas toca de modo especial aos que integramos esta Casa, guardiã da Constituição.

Nossas histórias de vida, Senhor Presidente, foram marcadas pela resistência ao autoritarismo.

Por isso, chegamos a este Tribunal vinculados a um irrecusável compromisso democrático, que hoje reclama, com a superação dos fatores reais de sua crise e a defesa sem recuos, de sua independência, o fortalecimento do Pode Judiciário.

A sua biografia – na qual o comedimento da maturidade não esmaeceu a tempera do guerreiro – é o penhor de que V. Exa. não fugirá a tais imperativos do bastão da presidência desta Casa que, tranqüilos, os seus pares lhe entregamos.”