Vertentes legais do Direito Social à Saúde e as atuais intervenções do CNJ nessa esfera da cidadania do brasileiro

31 de julho de 2011

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No Título VIII – Da Ordem Social –, no Capítulo II – Da Seguridade Social – e na Seção II – Da Saúde –, está inserido o art. 196, que dispõe: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

A saúde é, ainda, caracterizada pelo art. 6o da Constituição Federal como um direito social, juntamente com a educação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade, a infância e a assistência aos desamparados.

O art. 1o, por sua vez, ao inaugurar o Texto Constitucional, traz em seu inciso III a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito em que se constitui a República Federativa do Brasil, a qual tem por objetivo construir uma sociedade livre, justa e solidária, na forma do inciso I do art. 3o. Em suas relações internacionais, a República Federativa do Brasil, a teor do art. 4o, II, da Constituição Federal, também se compromete com a prevalência dos direitos humanos.

Ademais, entre os Direitos e Garantias Fundamentais, o art. 5o, caput, assegura expressamente a inviolabilidade do direito à vida, com proteção reforçada por se tornar cláusula pétrea, consoante o disposto no art. 60, § 4o, IV.

Conjugando-se, portanto, o direito à vida e a proteção da dignidade da pessoa humana, frutifica certamente o direito à saúde, caracterizado como direito social inserido no Capítulo da Ordem Social e com previsão central no artigo 196.

Tendo, portanto, a Constituição Federal de 1988 reconhecido o direito à saúde como direito fundamental, é possível afirmar que as normas que o garantem têm aplicação imediata, na forma do § 1o do art. 5o do próprio Texto Constitucional. Esse entendimento decorre da própria concepção de normatividade direta da Constituição e se aplica também ao exame das normas programáticas que têm densidade normativa suficiente para a sua fruição, como é o caso do direito à saúde.

No campo da medicina e saúde do trabalhador, registre-se que a origem da Organização Internacional do Trabalho (OIT) entrelaça-se com a necessidade histórica de estipularem-se melhores condições de trabalho para o operariado. Foram as manifestações dos operários e as reivindicações estabelecidas em diversos congressos de trabalhadores, durante a Primeira Guerra Mundial, que levaram a Conferência da Paz, em 06 de maio de 1919, da Sociedade das Nações, a criar, pelo Tratado de Versailles (parte XII, arts. 387 a 487), a Organização Internacional do Trabalho, com o propósito de dar às questões trabalhistas um tratamento uniformizado.

Dentre os objetivos precípuos da OIT, podemos observar a preocupação com a elevação dos níveis de qualidade de vida e a proteção da saúde dos trabalhadores em todas as suas ocupações.

Sabe-se que as convenções da OIT têm status de leis internacionais, mas só obrigam os estados membros a se sujeitarem à respectiva normatização após a competente ratificação, a qual, no caso do Brasil, é da competência exclusiva do Congresso Nacional. Sendo ratificada pelo Brasil, passa a Convenção a ter força normativa, integrando, portanto, o direito positivo do estado membro.

Mister se faz relacionar as principais Convenções da OIT que tratam sobre o tema da proteção à saúde e ao meio ambiente do trabalho dos trabalhadores: Convenção no 103 – Sobre o amparo à maternidade (em vigor no Brasil desde 18.6.1966 – Decreto de promulgação no 58.820/1966); Convenção no 148 – Sobre a proteção dos trabalhadores contra os riscos devidos à contaminação do ar, ao ruído e às vibrações no local de trabalho (em vigor no Brasil desde 14.01.1983 – Decreto de promulgação no 93.413/1986); Convenções nos 152, 155, 159. As Convenções nos 167, 170, 171, 174 e 176 tratam, também, do meio ambiente do trabalho, mas ainda não foram ratificadas pelo Brasil.

Dentre as mencionadas, convém dar destaque à Convenção no 155, que, em seu art. 5o, apresenta, em detalhes, os elementos que podem ser considerados prejudiciais à saúde do trabalhador e ao meio ambiente do trabalho.

Assim, não há como se falar em “sadia qualidade de vida” (CF, art. 225, caput) se não houver qualidade de trabalho; nem se pode atingir o meio ambiente equilibrado e sustentável ignorando o aspecto do meio ambiente do trabalho.

Sem dúvida, necessitamos construir uma convivência harmoniosa do homem com o meio ambiente, a fim de que possamos garantir a todos um ambiente ecologicamente equilibrado, preservando a vida com dignidade.

A propósito, vale registrar que a medicina do trabalho, como especialidade médica, surgiu na Inglaterra, na primeira metade do século XIX, com a Revolução Industrial. Naquele momento, o consumo da força de trabalho, resultante da submissão dos trabalhadores a um processo acelerado e desumano de produção, exigia uma intervenção, sob pena de tornar inviáveis a sobrevivência e a reprodução do próprio processo. Robert Dernham, proprietário de uma fábrica têxtil, preocupado com o fato de que seus operários não dispunham de nenhum cuidado médico a não ser aquele propiciado por instituições filantrópicas, procurou o dr. Robert Baker, seu médico, pedindo-lhe que indicasse qual o procedimento que ele, empresário, poderia adotar para resolver tal situação.

A resposta do empregador veio com o ato de contratar Baker para trabalhar na sua fábrica, surgindo, assim, em 1830, o primeiro serviço de medicina do trabalho.

Na verdade, despontam na resposta do fundador do primeiro serviço médico de empresa os elementos básicos da expectativa do capital quanto às finalidades de tais serviços.

Paralelamente ao processo de industrialização, a implantação de serviços baseados nesse modelo rapidamente se expandiu por outros países e, posteriormente, aos países periféricos, com a transnacionalização da economia.

A inexistência ou fragilidade dos sistemas de assistência à saúde, quer como expressão do seguro social, quer diretamente providos pelo Estado, por meio de serviços de saúde pública, fez com que os serviços médicos de empresa passassem a exercer um papel vicariante, consolidando, ao mesmo tempo, sua vocação como instrumento de criação e manutenção da dependência do trabalhador (e frequentemente também de seus familiares), ao lado do exercício direto do controle da força de trabalho.

A preocupação por prover serviços médicos aos trabalhadores começa a se refletir no cenário internacional também na agenda da Organização Internacional do Trabalho (OIT), criada em 1919. Assim, em 1953, por meio da Recomendação no 97 – Sobre a Proteção da Saúde dos Trabalhadores –, a Conferência Internacional do Trabalho instava os estados membros da OIT a fomentar a formação de médicos do trabalho qualificados e o estudo da organização de “Serviços de Medicina do Trabalho”.

Em 1954, a OIT convocou um grupo de especialistas para estudar as diretrizes gerais da organização de “Serviços Médicos do Trabalho”. Dois anos mais tarde, o Conselho de Administração da OIT, ao inscrever o tema na ordem do dia da Conferência Internacional do Trabalho de 1958, substituiu a denominação “Serviços Médicos do Trabalho” por “Serviços de Medicina do Trabalho”.

No âmbito das relações saúde x trabalho, os trabalhadores buscam o controle sobre as condições e os ambientes de trabalho para torná-los mais saudáveis. É um processo lento, contraditório, desigual no conjunto da classe trabalhadora, dependente de sua inserção no processo produtivo e do contexto sócio-político de uma determinada sociedade.

Assim, a saúde do trabalhador apresenta expressões diferentes segundo a época e o país e diferenciada dentro do próprio país, como pode ser observado na Itália, na Escandinávia, no Canadá ou no Brasil. Porém, apesar das diferenças, mantém os mesmos princípios: trabalhadores buscam ser reconhecidos em seu saber, questionam as alterações nos processos de trabalho, particularmente a adoção de novas tecnologias, exercitam o direito à informação e à recusa ao trabalho perigoso ou arriscado à saúde.

Surge, ainda, no Brasil a assessoria sindical feita por profissionais comprometidos com a luta dos trabalhadores, que, individualmente ou através de organizações como o Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho (DIESAT) e o Instituto Nacional de Saúde no Trabalho (INST), estudam os ambientes e as condições de trabalho, levantam riscos e constatam danos para a saúde, decodificam o saber acumulado, num processo contínuo de socialização da informação, resgatando e sistematizando o saber operário, vivenciando, na essência, a relação pedagógica educador-educando.

Também pode ser constatada a contribuição ao desenvolvimento da área de saúde do trabalhador trazida pelos técnicos que, no nível das instituições públicas – as universidades e institutos de pesquisa, a rede de Serviços de Saúde e fiscalização do trabalho –, somam esforços na luta por melhores condições de saúde e trabalho, por meio da capacitação profissional, da produção do conhecimento, da prestação de serviços e da fiscalização das exigências legais.

Como características dessa nova prática, cabe ainda mencionar o esforço que vem sendo empreendido no campo da saúde do trabalhador para integrar as dimensões do individual x coletivo, do biológico x social, do técnico x político, do particular x geral. É um exercício fascinante, ao qual se têm dedicado os profissionais de saúde e os trabalhadores, que parece apontar uma saída para a grave crise da ciência médica ou das ciências da saúde no final do século passado.

Os cânones clássicos postos a partir de formas fragmentadas de ver e estudar o mundo, se contribuíram para o aprofundamento do conhecimento em níveis inimagináveis, estão a necessitar de uma nova abordagem que os consiga reunir, articular, colocando-os a serviço dos homens.

Esse processo social se desdobrou em uma série de iniciativas e se expressou nas discussões da VIII Conferência Nacional de Saúde, na realização da I Conferência Nacional de Saúde dos Trabalhadores, e foi decisivo para a mudança de enfoque estabelecida na nova Constituição Federal de 1988.

Mais recentemente, a denominação “saúde do trabalhador” aparece, também, incorporada na nova Lei Orgânica de Saúde, que estabelece sua conceituação e define as competências do Sistema Único de Saúde nesse campo.

A caminhada da medicina do trabalho à saúde do trabalhador encontra-se em processo. Sua história pode ser contada em diferentes versões, porém com a certeza de que é construída por homens que buscam viver, livres.

No campo da sociedade civil, problemas no atendimento em hospitais públicos, reclamações contra planos de saúde e falta de acesso a remédios e a procedimentos do Sistema Único de Saúde (SUS) têm aumentado, substancialmente, o número de ações judiciais na área da saúde, com demandas que têm por objeto, por exemplo, obrigatoriedade de fornecimento de medicamentos, tratamentos e disponibilização de leitos hospitalares, tanto no setor público quanto no setor privado.

Levantamento recente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) constatou que há mais de 240 mil processos relativos à área da saúde tramitando em todo o país.

Esse levantamento começou a ser feito no meio do ano passado, faltando ainda computar os dados de alguns tribunais. Até agora, o estado onde há mais ações é o Rio Grande do Sul: 113 mil. O número supera o dobro do segundo colocado, que é São Paulo, com 44.690 ações. O Rio de Janeiro é o terceiro, com 25.234 ações.

A constatação do aumento no número de demandas na área da saúde levou o Conselho Nacional de Justiça a criar o Fórum Nacional do Judiciário para Assistência à Saúde, tendo como marco inicial a Audiência Pública no 4, realizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que teve o escopo de discutir tal aumento de ações judiciais.

O Fórum Nacional do Judiciário para Monitoramento e Resolução das Demandas de Assistência à Saúde foi instituído em 3 de agosto de 2010 pelo Conselho Nacional de Justiça e tem como objetivos a elaboração de estudos e a proposição de medidas e normas para o aperfeiçoamento de procedimentos e a prevenção de novos conflitos judiciais na área da saúde. O Fórum busca criar, ainda, medidas concretas voltadas à otimização de rotinas processuais, bem como à estruturação e organização de unidades judiciárias especializadas.

Além da Resolução no 107/2010, que instituiu o Fórum, o CNJ também aprovou a Recomendação no 31, de 30 de março de 2010, para que os tribunais adotem medidas a subsidiar os magistrados a fim de lhes assegurar mais eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde; por exemplo, apoio técnico de médicos e farmacêuticos às decisões dos magistrados.

Espera-se que essas iniciativas institucionais sirvam de base e estímulo para que os direitos e as garantias constitucionais, sobretudo os relacionados à dignidade do ser humano e ao direito pleno à saúde, não sejam mero anseio legislativo e, ao mesmo tempo, sirvam de incentivo à busca da sua efetivação, possibilitando a todos desfrutar de uma existência digna, com vida social e profissional qualitativamente melhor. Assim, o que se procura é implementar medidas para preservar e conservar aquele que produz todo o trabalho e para quem se destina todo o benefício e riqueza gerados no país: o brasileiro.