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Variações sobre ética e cultura

31 de março de 2006

Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

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Na magnífica revista Brasilis de novembro/dezembro de 2005, Ubiratan Borges de Macedo publica corajoso artigo denunciando a ausência de Ética no pensamento brasileiro.

Faz ele um confronto entre a bibliografia mexicana e a brasileira sobre o assunto, mostrando que, ante a nossa omissão, na primeira figuram nada menos de três manuais: o de Eduardo García Maynez, de excepcional orientação axiológica, o de José Ruben Sanabria, de fundação tomista, e o de Francisco Larroyo, de formação neokantiana, todos em sucessivas edições, sem falar na “Ética” de A. Sánchez Vásquez, muito conhecida entre nós.

Segundo Ubiratan, em nossa cultura filosófica prevalecem estudos de caráter científico ou epistemológico, quando não estéticos e metafísicos, havendo um vazio no tocante à Ética ou à Moral.

Não há dúvida de que inexistem, no Brasil, monografias ou manuais específicos sobre a Ética ou a Moral, não obstante se reconheça universalmente a fundamental importância de ambas no plano filosófico.

Talvez haja exagero na posição de Ubiratan, pois problemas éticos são entre nós versados em obras ou cursos de caráter geral.

No que se refere ao autor do presente artigo, não se poderá dizer que não tenha dado a devida atenção à Ética em dezenas de seus livros. Posso mesmo dizer que, desde minhas primeiras obras, tive sempre plena consciência do significado da Ética no domínio da Filosofia, situando-a no ápice das pesquisas, dedicando-lhe mesmo títulos extensos em meus estudos.

Observo em primeiro lugar que tem sido, por mais de um autor, observada a diferença, entre nós, entre a Ética de perfil tomista – durante longo tempo dominante – e a resultante, por exemplo, da posição científica do positivismo, para a qual a hegemonia da ciência positiva exige uma Ética de base experiencial ou pragmática.

Por outro lado, não deixa de haver referências às mudanças verificadas no tratamento da Ética em razão de alterações como as do neokantismo ou de compreensão da história no envolver das civilizações.

Além disso, quando se escreve uma monografia específica, como é o caso de minha tese sobre fundamentos do Direito, impõe-se de per si a necessidade de estudo de Ética, sobretudo quando se chega ao tema das relações e diferenças entre Moral e Direito. Como se vê, os estudos atuais sobre Ética não ficaram confinados nos livros dedicados exclusivamente a ela.

Para dar apenas um exemplo, lembro que na referida obra Fundamentos do Direito, cuja primeira edição é de 1940, estudo a Ética kantista de Del Vecchio e a de Stammler, mostrando as diferenças entre eles. A seguir, analiso a Ética positivista dos sociologistas, como é o caso de Duguit. A seguir, dedico minha atenção à Ética fundada nos valores, ou seja, na Axiologia etc.

Não é possível olvidar estudos dessa natureza quando se pretende saber se no Brasil a Ética é efetivamente ausente.

Permanecendo no estudo de minha posição, meu ponto de partida fundamental foi a de Max Scheler, com sua obra básica “Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik” (O Formalismo na Ética e uma Ética Material dos Valores, 1913-1916). Partindo dela foi que evoluí no sentido da Ética como momento essencial da cultura.

Minha posição ética se situa no culturalismo, a partir da idéia de pessoa. Não é demais lembrar esses pontos com base no que escrevi sobretudo em meus livros Filosofia do Direito e Introdução à Filosofia.

Falar em Ética é falar em intersubjetividade, entre correlação de formas de trabalho, como bem soube dizer Einstein em 1953: “Todos nós somos alimentados e obrigados pelo trabalho de outros homens e devemos pagar honestamente por ele, não apenas com o trabalho escolhido para nossa satisfação íntima, mas com o trabalho que, segundo a opinião geral, os sirva” (Albert Einstein: O Lado Humano. Rápidas visões colhidas de seus arquivos, de Helen Dukas e Banesh Hoffmann, trad. de Lucy de Lima Coimbra, Ed. UnB, 1984, pág. 48).

Há, assim, uma compreensão ética do trabalho que é, ao mesmo tempo, ética da cultura, entendendo-se aquele como fonte de vida em comunidade, dando-lhe o sentido e a medida.

Não se pense que nesse tópico Einstein empregue o advérbio “honestamente” sem lhe dar todo o peso de seu significado, pois de outras afirmações deixadas pelo autor da teoria geral da relatividade resulta a sua compreensão moral do trabalho, não em termos de produtividade (campo em que capitalistas e comunistas se encontram, embora sob diversas óticas), mas em termos de serviço devido à comunidade. Nessa compreensão ética do trabalho, entendido como fonte de cultura e, por conseguinte, de deveres para com a comunidade, se insere também um novo entendimento da pedagogia e do “direito à educação”.

Como temos tantas vezes afirmado, a Moral como expressão normativa dos valores da subjetividade é a fonte primordial de toda vida ética, sendo, concomitantemente, o seu ponto culminante. Em nenhuma parte da Filosofia, mais do que nesta, as distinções de caráter didático albergam tamanho risco de comprometer a unidade essencial do tema, levando a divorciar o valor moral como revelação do espírito na autoconsciência de sua autonomia, dos campos de ação em que esse poder criador ou nomotético se desenvolve, dando nascimento às “formas éticas” de vida, que são tanto as costumeiras como as jurídicas ou as políticas.

A eticidade da cultura se revela, pois, sob vários enfoques. Em primeiro lugar, toda e qualquer objetivação do espírito (entendido o termo “objetivação” em sua acepção mais ampla, quer como ato de perceber ou pensar objetos, quer como ato de realizar objetos e objetivos) pressupõe uma relação entre um “eu” e “outro eu”, ou seja, a “intersubjetividade”. Desse modo, na raiz de toda instauração de um bem de cultura há uma relação inter homines, que exige a formulação de uma norma ou medida que atribua a cada um o que é seu.

Eis aí como se coloca a concepção da Ética no culturalismo, de modo a se poder falar em Ética da Cultura. Pode-se discordar dessa compreensão da matéria, mas não é possível ignorá-la quando se pretende saber se inexiste no País trabalho específico sobre Ética.