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União homoafetiva é reconhecida pelo STF

30 de junho de 2011

Da Redação, por Giselle Souza

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Um marco histórico. Assim pode ser definido o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que culminou com o reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo como entidades familiares. A decisão, unânime, foi proferida no último dia 5 de maio, durante a apreciação de ações movidas pela Procuradoria-Geral da República e o Governo do Estado do Rio de Janeiro. Os casos foram relatados pelo ministro Carlos Ayres Britto, que, inspiradíssimo, defendeu em seu voto que “o sexo das pessoas, salvo disposição contrária, não se presta para desigualação jurídica”.

A determinação abre um importante precedente. O ministro Celso de Mello, durante o julgamento, defendeu o efeito vinculante do entendimento. Isso quer dizer que a primeira e a segunda instância de todo o Brasil terão de seguir a orientação do Supremo ao julgarem causas semelhantes. Assim, também, como o Poder Público, ao analisar as ações administrativas que visarem ao reconhecimento da união homoafetiva.

Com a decisão, cresceu a busca de informações por parte de casais gays acerca dos procedimentos necessários para proceder ao reconhecimento, explicou Yoya Rosane Fernandes Bessa, advogada especializada em direito processual, penal e administrativo. “Havia por parte de vários casais a busca da efetivação do reconhecimento das suas uniões, porém, quando era levada à Justiça, não se tinha a certeza se haveria o reconhecimento. Com o julgamento no STF, já houve uma busca nos cartórios de todo o país por casais homossexuais querendo reconhecimento das suas situações”, constatou.

“Praticamente no primeiro dia útil após a decisão do STF, vários casais do mesmo sexo me procuraram para regularizar suas situações. Já estou preparando as respectivas minutas das escrituras públicas de constituição de união estável para serem lavradas. Por meio delas, os interessados poderão definir alguns tópicos relevantes, tal como o regime de bens, por exemplo”, acrescentou ainda a advogada Gladys Maluf Chamma, especialista em Direito de Família e sócia do escritório Chamma Advogados Associados.

Vale ressaltar que o casamento civil de pessoas do mesmo sexo ainda não é possível. Elas não podem, portanto, alterar o estado civil ou adotar o nome do parceiro. Mas, podem fazer um contrato ou uma declaração de união estável em cartório e, com isso, ter a certeza de que a Justiça garantirá os seus direitos.

Esse fato, por si só, é um grande avanço na sociedade brasileira. De acordo com especialistas, as regras a serem aplicadas às uniões homoafetivas deverão ser as mesmas que já valem para as uniões estáveis entre homens e mulheres. Isso quer dizer, na prática, que planos de saúde, por exemplo, não poderão criar qualquer tipo de impedimento à inclusão do parceiro homossexual como dependente. Além disso, em casos de separação, um dos dois poderá entrar com uma ação de reconhecimento por união estável.

“Com a união estável, os casais homoafetivos terão legalmente reconhecido o vínculo dessa união, o que irá gerar não apenas direitos, mas também obrigações. Agora, assim como os casais heterossexuais que já vivem em união estável, o companheiro será reconhecido como dependente para fins previdenciários, será incluído no plano de convênio médico e será aceito nos clubes, o que ainda era objeto de restrição em grupos mais fechados”, explicou o advogado Luiz Kignel, especialista em Direito de Família e Sucessão Empresarial e sócio da PLKC Advogados.

Segundo os advogados, no caso da dissolução da união, especificamente, o que muda é a forma como o Judiciário analisará os casos. Hoje, as ações não são julgadas pelas varas de família. Antes são analisadas pelos magistrados como uma sociedade de fato, ou seja, uma sociedade comercial, em que o parceiro tinha de comprovar, para fins de partilha, que tinha contribuído para a formação dos bens do casal. Com a decisão do STF, passa a prevalecer a comunhão parcial de bens, em que os bens adquiridos pelo casal após a união são divididos meio a meio.

Nos casos de herança, os especialistas aconselham aos casais a formalizarem, por meio da escritura de união estável, o regime de bens que deverá prevalecer no caso de falecimento de um dos parceiros. Caso não haja um contrato nesse sentido, valerá o regime parcial de bens: em que o companheiro terá direito à metade do patrimônio, e a outra metade deverá ser divida entre os demais herdeiros (filhos e pais).

Importante mudança ocorre em relação à adoção. A Justiça já tem precedentes no sentido de dar a guarda conjunta a um casal homossexual. No entanto, decisões nesse sentido ainda são poucas. Por receio, muitos casais optam por apenas um dos parceiros ingressar com o pedido de adoção, por meio de ações individuais e na condição de solteiro. Agora, se já houve uma adoção individual e o companheiro homossexual desejar incluir seu nome na guarda da criança, isso já é juridicamente possível.

A mudança, além de representar um importante avanço para a comunidade LGBT, poderá ser também uma grande conquista para crianças e adolescentes que precisam de uma família. O número de jovens disponíveis para adoção é seis vezes menor do que o de pretendentes em adotar, segundo o Cadastro Nacional de Adoção (CNA), gerido pelo Conselho Nacional de Justiça.

De acordo com o CNA, o número de crianças e adolescentes aptos a serem adotados chega a 4.427, enquanto o de possíveis pais é da ordem de 26.694. Na maior parte dos casos, esses jovens não são inseridos em uma família por não atenderem ao perfil exigido. Os pretendentes, em sua maioria, preferem crianças até três anos de idade, do sexo feminino e da cor branca. Também nesse caso, a decisão do Supremo pode combater o preconceito.

Mas essas não são as únicas implicações do reconhecimento. Ao proferir seu voto, o decano do STF, ministro Celso de Mello, frisou que o Judiciário foi chamado “para garantir o livre exercício da liberdade e igualdade, como garantem os direitos fundamentais”, devido à falta de normas específicas sobre o tema.

Para Luiz Kignel, a decisão unânime tomada pelo Supremo, estendendo aos casais homoafetivos os benefícios da união estável, demonstra a preocupação do Poder Judiciário em conferir ao cidadão direitos e garantias prejudicados com a inércia do Congresso Nacional. “É importante que se diga que o STF não criou a união homoafetiva e tampouco a está promovendo. O que fez o STF foi reconhecer uma situação fática, já aceita pela sociedade, inclusive a heterossexual”, afirmou o advogado.

Na avaliação dos advogados, o reconhecimento pelo Judiciário da união estável entre casais do mesmo sexo, exigirá um posicionamento do Poder Legislativo sobre o assunto. Levantamento do Núcleo de Assessoramento Técnico da Câmara dos Deputados mostra a existência de oito projetos atualmente em tramitação na Casa, que visam justamente a regulamentar os direitos dos casais homoafetivos. “O Legislativo não deve se omitir após a decisão do STF. Seria uma vergonha, para esse Poder, não editar leis que efetivamente garantam o direito da união homoafetiva”, defendeu a advogada Yoya Rosane.

Para Gladys, o Legislativo deverá focar sua atuação na normatização de questões como a adoção. “Aos casais homossexuais deverão ser aplicadas as mesmas regras de união estável entre pessoas heterossexuais. Todavia, existem algumas restrições legais que deverão, oportunamente, ser regularizadas, como por exemplo, no caso de adoção de filhos. Como constar a filiação no registro civil da criança, se não há previsão legal para a existência de dois pais ou duas mães? Neste ponto, há uma lacuna à qual a lei deve ser adaptada para se resolver. Anoto que, o texto do Código Civil é discriminatório no conceito de família, já que só reconhece a entidade familiar, como aquela mantida entre um homem e uma mulher, nos termos do artigo 1.723 do Código Civil”, explicou.