Um retrato sobre o uso da inteligência artificial no Poder Judiciário

8 de março de 2021

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Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV lança o relatório de seu mais recente estudo sobre aplicações de IA nos tribunais

Estudo do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getúlio Vargas (CIAPJ/FGV) constatou que em um universo de 59 cortes brasileiras, há pelo menos 64 projetos de inteligência artificial (IA) já instalados ou em desenvolvimento. O levantamento inclui o Supremo Tribunal Federal (STF), o Superior Tribunal de Justiça (STJ), o Tribunal Superior do Trabalho (TST), os cinco Tribunais Regionais Federais (TRFs), os 24 Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) e os 27 Tribunais de Justiça (TJs) nos estados, além do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). 

“É um dado alvissareiro. A inteligência artificial é um importante instrumento de gestão para o Judiciário, que implica em racionalizar nossa atividade diante da escassez de recursos e da abundância de demandas. Temos uma mão de obra muito qualificada, porém pequena perante o tamanho do problema. Para ganhar a agilidade necessária, é claro que a IA é uma ferramenta muito importante. Para entendermos um pouco melhor o que está acontecendo, identificar nossos problemas e avançar com segurança é que apresentamos essa pesquisa”, explicou o Ministro do STJ e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Luis Felipe Salomão, coordenador do CIAPJ/FGV, na apresentação da primeira fase da pesquisa “Tecnologia Aplicada à Gestão dos Conflitos no Âmbito do Poder Judiciário com Ênfase em Inteligência Artificial”. 

O relatório foi apresentado durante o webinar “Inteligência Artificial no Judiciário: um inventário da experiência brasileira” – realizado em 26 de fevereiro – pela Coordenadora-Executiva do CIAPJ/FGV Juliana Loss e pela Pesquisadora Renata Braga. Além delas e do Ministro Luis Felipe Salomão – que também é Presidente do Conselho Editorial da Revista JC – participaram do seminário eletrônico o Coordenador-Adjunto do CIAPJ/FGV, Desembargador Elton Leme, o Juiz Federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) Marcus Lívio Gomes, e a Juíza Federal do TRF2 Caroline Tauk, os dois últimos na condição de debatedores.

A Coordenadora-Executiva Juliana Loss afirmou que o objetivo principal da primeira etapa da pesquisa era identificar o que já existe em termos de IA nos tribunais. “Existiam muitos artigos, mas hoje que estamos mais em contato com a área da tecnologia é possível perceber que muita coisa era espuma. Quando fomos nos aprofundar, muitas vezes vimos ideias não tão implementadas e outras que, na verdade, não utilizam de fato a inteligência artificial, mas que não deixam de ser exemplos do uso de tecnologia. Na próxima etapa, que já está em andamento, há uma ampliação do escopo para a compreensão do que seria o uso da inteligência computacional. Ou seja, demos um importante passo no sentido de entender o que é e detalhar o uso dessas tecnologias no Judiciário”, explicou.

Segundo ela, desde o fim da coleta de dados até hoje, o número de tribunais que utilizam a IA já aumentou, dada a velocidade das transformações e das resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para regulamentar a digitalização do Sistema de Justiça. Uma incorporação tecnológica que, em um primeiro momento, atendeu sobretudo à necessidade de automatização de tarefas repetitivas, mas que agora já permite a integração entre diferentes instituições e mesmo o apoio à tomada de decisões dos magistrados. 

Objetivos do Milênio – A Pesquisadora Renata Braga explicou que a pesquisa é uma das ferramentas de acompanhamento e promoção da meta 16.3 da Agenda 2030, dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), criada pela Organização das Nações Unidas (ONU): “Fortalecer o Estado de Direito e garantir acesso à Justiça a todos, especialmente aos que se encontram em situação de vulnerabilidade”. 

Ela explicou que por meio da tabulação dos formulários semiestruturados de coleta de dados foi possível perceber que existe uma distribuição muito homogênea em relação ao uso das soluções de IA no território brasileiro, sem concentrações em estados e regiões. O levantamento identificou ainda várias frentes colaborativas, com destaque para a plataforma Sinapses do CNJ, que permite o compartilhamento de tecnologia entre os tribunais. 

Dados abertos x LGPD – A Juíza Federal Caroline Tauk falou sobre a necessária conciliação entre o dever de transparência exigido pela Constituição ao Poder Judiciário em seus atos e julgamentos (a exceção dos julgamentos que correm em segredo de Justiça), com a regulação estabelecida pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) para a circulação de informações públicas. Para a magistrada, a abertura das informações que a Justiça produz pode ser utilizada para criar estratégias de transformação digital: “Dados são a matéria prima para a inovação”. Outro fator que justifica a importância da estruturação e compartilhamento desses dados, segundo ela, é a possibilidade de redução da litigância, uma vez que as bases de dados podem ser utilizadas para ampliar a conciliação. Contudo, de acordo com a Juíza, é necessário desenvolver sistemas de mineração de dados que preservem a privacidade das partes envolvidas nos processos que tramitam na Justiça. 

Juiz Federal Marcus Lívio Gomes, Secretário Especial de Programas, Pesquisas e Gestão Estratégica do CNJ

Para o Juiz Federal Marcus Lívio Gomes, Secretário Especial de Programas, Pesquisas e Gestão Estratégica do CNJ, a Justiça ingressou definitivamente no mundo digital com o projeto Judiciário 4.0, lançado em fevereiro pelo Presidente do STF e do CNJ, Ministro Luiz Fux. Segundo o magistrado, o Judiciário brasileiro está na vanguarda do desenvolvimento de softwares de manuseio de dados, bem como dos instrumentos para resguardar a ética no uso da IA. 

Sobre a necessária conciliação da política de dados abertos com a LGPD, Marcus Lívio Gomes explicou que foram criados dois grupos de trabalho no CNJ para tratar da questão, no âmbito dos sistemas do Conselho, como o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP) e o Sistema Eletrônico de Execução Unificada (SEEU). O trabalho é iluminado pela normativa publicada em maio de 2019 pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), ratificada pelo Brasil, que traz os primeiros padrões internacionais acordados entre governos para a administração responsável da inteligência artificial. Umas das principais preocupações do CNJ, segundo o magistrado, é regulamentar o manuseio de dados para evitar eventuais violações aos direitos fundamentais dos cidadãos, ao princípio da não-discriminação e ao princípio da transparência.

Ética – O Secretário Especial do CNJ manifestou ainda preocupação com a ética na criação e uso das ferramentas de IA no Poder Judiciário: “Muito em breve, teremos sistemas de software capazes de minutar sugestões de decisões para magistrados. A partir desse momento, o controle da atividade judicial vai ficar muito mais complexo. Como compatibilizar isso com a ética? São desafios muito grandes que o Poder Judiciário e o CNJ têm que enfrentar.

Marcus Lívio explicou que o ato normativo do CNJ que pretende enfrentar essa questão é a Resolução nº 332, editada em agosto de 2020. “Posso assegurar que foi um documento amplamente debatido internamente pelo grupo de juízes. Mais de 30 colegas colaboraram para que esse ato normativo fosse consolidado, tivemos também a ajuda de muitos outros atores externos, mas é importante deixar claro que não é um ato definitivo. Estaremos sempre aptos a propor alternativas de solução ou melhor redação, sempre que instados, principalmente, pelo centro de estudos liderado pelo Ministro Luis Felipe Salmão”.

Nota______________________________
1 O relatório completo da pesquisa está disponível em: https://ciapj.fgv.br/sites/ciapj.fgv.br/files/estudos_e_pesquisas_ia_1afase.pdf