Edição

Um marco-zero para a reforma do Sistema Penitenciário

5 de novembro de 2003

Compartilhe:

A cada governo, a promessa de “construção de presídios” é retomada como meio de controle da violência e da criminalidade. Contudo, a edificação prisional vem sendo usada por um sistema que não possui caráter preventivo, mas viciado, dispendioso, abrigando uma das maiores redes de transgressões sob a responsabilidade governamental. Inaugurada uma nova edificação penitenciária, é imediatamente contaminada pelos próprios integrantes dos setores que mantém o sistema em funcionamento.

Soluções apontadas sem compromisso e fundamento pela sociedade e pelas autoridades, negligenciam o fato de que o tratamento “doméstico” pode tornar-se tão prejudicial quanto o desempenho ilegítimo de uma profissão. O sistema penitenciário carece de uma reengenharia cuja essência não possui caráter inédito, mas o simples cumprimento da Lei de Execuções Penais.

A condução do sistema penitenciário

As soluções para a revitalização do sistema _ fruto de rompantes passionais para saciar a sede da sociedade por segurança e de justiça _ não têm tido o devido tempo de amadurecimento visto que os mandatos governamentais são curtos para viabilizar uma política estratégica para sua efetivação.

Uma reforma penitenciária pode parecer uma política demagógica e dispendiosa diante de tantas outras necessidades sociais. Ao mesmo tempo, as penitenciárias tão congestionadas quanto os xadrezes policiais, aguardam a implantação das penas alternativas para promover um esvaziamento das unidades carcerárias.

A política de privatizações em todo o país tem se mostrado eficaz aliviando o governo do ônus para com empresas deficitárias e contaminadas pela política do empreguismo improdutivo. Por lei, a função da segurança pública e da custódia de presos são incumbências do governo, impossibilitando a privatização plena do sistema penal. Conseqüentemente, o estado continua gerenciando uma vergonhosa estrutura que contraria os princípios básicos das seguintes leis e regulamentos normativos: (a) a Declaração dos Direitos Humanos; (b) as Regras Mínimas da ONU para o Tratamento de Reclusos; (c) a Constituição Federal; (d) a Lei de Contravenções Penais; e (e) a Lei de Execuções Penais.

Comitivas encaminhadas ao exterior e a diversos pontos do país são rotinas realizadas periodicamente originando documentos e pró-forma, os quais acabam se tornando inúteis documentos de fundo de gaveta. Profissionais de gabarito que ocupam cargos governamentais erigem verdadeiras “igrejas de sabedoria” em seus gabinetes, dificultando a necessária renovação de profissionais de nível superior. Em contrapartida, as funções administrativas ou subalternas acabam sendo delegadas a funcionários oriundos da política de empreguismo, sem qualquer preparo para os respectivos cargos, contaminando a qualidade dos serviços.

Construir para remediar

Discussões sobre educação levam à construção de escolas; sobre saúde, de hospitais e postos de saúde; sobre mendigos e meninos de rua, de abrigos; sobre segurança, de presídios (termo usado inadequadamente por todos, sem distinção, a palavra “presídio” classifica a unidade prisional quanto à sua espécie, ou seja, estabelecimento destinado ao preso provisório enquanto aguarda o julgamento e não para o cumprimento de pena, cujo estabelecimento é a penitenciária). O interesse na execução de obras acaba beneficiando financeiramente os diretamente envolvidos na construção civil e politicamente os que ocupam cargos público‑administrativos que liberam verbas para tais fins.

Em contraste com a urgência e a satisfação de interesses pela construção de novas unidades prisionais, a implantação de uma reforma penitenciária a médio-longo prazo trata-se de um processo moroso, mas que seja iniciado o quanto antes para que possamos contar com um projeto criterioso e embasado nos conhecimentos práticos e teórico-científicos. Não poderão ser ignoradas as experiências anteriormente vivenciadas. Da mesma forma, a vaidade pessoal e profissional deverá ser posta à parte para que não se torne um entrave à implantação dessa empreitada carente de imparcialidade, capacidade administrativa e de visão técnico-social. Já não sem tempo, o governo deveria, abraçar essa causa apoiando e dando subsídios a profissionais que, por vocação, queiram e possam dar de si para revolucionar esse sistema.

O trabalho intramuros

Na administração pública, as sempre insuficientes dotações orçamentárias, dentre outros fatores, comprometem a qualidade dos serviços. Ao contrário das áreas relativas à educação e à saúde, a população não é um usuário direto e voluntário das unidades prisionais, tampouco dos abrigos para menores e carentes.

Nas unidades penitenciárias, o trabalho intramuros é previsto por lei. Além de escasso, a demagogia e a falta de vontade de setores sócios -políticos têm formado barreiras para que o trabalho dos presos tenha valor financeiro significativo, mesmo que se restrinja a oficinas para reparos do patrimônio ou para fabricação de produtos de consumo da administração pública. O fato é que o governo paga por esses serviços e produtos a terceiros, muitas vezes superfaturados. Cotados pelo valor de mercado, a receita proveniente poderia ser revertida para o Sistema Penitenciário visando a sua auto-suficiência.

O funcionário e a infraestrutura do sistema penitenciário

Outro assunto polêmico gira em torno da localização das novas unidades penitenciárias que, quando não envolvem questões relativas à degradação turística e ambiental dos sítios escolhidos, ameaçam sacrificar o fornecimento de infra-estrutura básica e o acesso dos familiares dos apenados com longos percursos entre suas residências e as unidades prisionais. Tais decisões não dispensam a elaboração de um Relatório de Impacto Ambiental, no sentido de avaliar como os complexos inseridos servem como pólo de atração ocupacional ao invés desvalorizarem os meios devendo numa macro-escala serem compatíveis com as políticas de desenvolvimento dos planos diretores municipais.

Indiferentemente de qualquer outra penitenciária, as muito distantes dos centros urbanos abrigam, além dos indivíduos condenados à pena privativa de liberdade, uma série de profissionais, que estarão sendo condenados a condições aflitivas de trabalho. Tais dificuldades abririam caminho, mais uma vez, para que somente funcionários não capacitados, quando não necessitados, fossem designados para as diversas funções, dando início a um novo foco de ineficiência administrativa.

Sem dúvida existe uma gama de profissionais capacitados que, por puro altruísmo, servem ao sistema penal e são remunerados de forma vergonhosa. A profissionais dessa estirpe, que vivem nos bastidores do sistema, não se dá a mínima condição de trabalho que promova resultados otimizados que façam jus ao sacrifício da sua abnegação. Para toda a sociedade, é colocada a figura dos agentes penitenciários como os indispensáveis carcereiros responsáveis pelo controle e segurança das prisões, cujas condições de trabalho são igualmente deficientes.

Independente do fator distância, as unidades prisionais têm sido mantidas de forma precaríssima, o que seria motivo de condenação dos imóveis pelos órgãos municipais e conselhos federais, e de conseqüente desocupação dos mesmos, caso se tratasse de uma propriedade mera e vulneravelmente particular. Dentre essas irregularidades podem ser apontadas: estrutura comprometida com infiltrações e ferragens expostas, telhados danificados e com acesso facilitado aos presos viabilizando fugas, instalações elétricas expostas e ausência de quadros gerais de segurança, precariedade das instalações hidro‑sanitárias, condições térmicas deficientes gerando insalubridade generalizada devido, inclusive, à superlotação carcerária e iluminação natural e artificial insuficientes, dentre outras.

Argumentações irracionais de que “criminosos não têm direito a condições mínimas de habitação” vão contra o princípio de que o preso não está condenado a qualquer condição aflitiva e nada além da privação da liberdade. Da mesma forma os funcionários têm o direito às mínimas condições de trabalho garantidas pela lei. Os estabelecimentos prisionais são, além de local para a custódia de pessoas presas, locais de trabalho de pessoas livres.

A arquitetura prisional

A arquitetura prisional, como qualquer outra, deve ser concebida para abrigar o usuário com segurança e garantir as condições mínimas de habitação relativamente às condições ergonômicas, térmicas, acústicas e de iluminação, seja para fins de moradia, trabalho, lazer, até mesmo reclusão.

Alarmante é o fato do poder público administrar essas edificações sucateadas, tendo ele o poder e dever de fiscalizar e exigir o cumprimento dessas condições mínimas junto aos cidadãos e seus respectivos imóveis, perdendo moralmente sua legitimidade enquanto seu patrimônio apresenta a mais alta incidência de irregularidades físicas. Manutenção precária ou inexistente coloca em risco a salubridade e a vida de seus usuários, além de depreciar o valor do patrimônio.

Expressões tais como: “boa vida para presos” ou “conforto para bandidos” não têm a mínima relação com a presente abordagem, mas se tratam de argumentos típicos da incapacidade de raciocinar de forma abrangente considerando assuntos interdisciplinares.

Diversos aspectos devem ser relacionados de modo que possa ser desenvolvida uma nova geração de edificações prisionais: (a) programa, devendo atender às necessidades da tipologia da edificação prisional e sua lotação funcional e de detentos; (b) massa e fluxo, aspectos indispensáveis para a otimização da distribuição do programa, para assegurar as condições adequadas de habitabilidade segundo os fatores de insolação, ventilação iluminação e acústica para garantir o máximo de segurança possível relativamente ao trabalho e contra eventuais tentativas de fuga; (c) materiais de acabamento, os quais devem ser especificados de acordo com as previsões de durabilidade, de baixa manutenção e de segurança; (d) equipamentos em geral, devendo ser evitados ao máximo, uma vez que o estado possui poucos recursos disponíveis para sua compra, manutenção, reparo ou reposição; (e) ambientação, devendo ser concebida de tal forma a reduzir o stress causado pela própria tipologia da edificação, visando o funcionário no desenvolvimento de suas tarefas e os indivíduos sob custódia.

Fica sob a responsabilidade dos governos estadual e federal a delegação dos poderes de normalização e fiscalização desses aspectos a indivíduos tecnicamente capacitados, avaliados, através de concursos públicos.

O Marco-Zero e a Reforma Penitenciária

Em contraste à falta de planejamento técnico a médio-longo prazo, temos a vocação de milhares de profissionais, que sequer possuem campo para uma formação profissional, capaz de administrar com decência o atual lixo penitenciário tutelado pelas autoridades estaduais, em sua grande maioria.

Se a reforma do atual sistema penitenciário é considerada utopia, que tudo o que estiver fora das premissas da modernidade do sistema seja “congelado” e condenado à extinção gradativa _ juntamente com seus apenados, seus funcionários, seu patrimônio, seus vícios e sua ineficiência – até que o último preso cumpra a sua pena e o último funcionário se aposente. Em seu lugar, a partir de um marco-zero, uma nova geração de profissionais e uma nova tipologia de prisão poderão dar uma nova identidade ao sistema penitenciário no país, em conjunto com as frentes que já assumiram essa postura em alguns pontos no país.

Tal proposta é despojada de ineditismo, mas implantá-la em meio ao caos é uma simples questão de competência.  O estado do Paraná já é berço de um novo sistema penitenciário e com o qual muito podemos aprender.

As colunas a seguir traçam o panorama atual do Sistema Penitenciário de forma simplificada e apresenta propostas, sob a ótica de um profissional da área da construção civil que não vê a construção de novas unidades prisionais como solução para o sistema penitenciário no Brasil, mas como final de linha de uma radical reforma do sistema penitenciário.