Um juiz exemplar

5 de novembro de 2020

Membro do Conselho Editorial Ex-presidente do STF e do TSE Professor emérito da Universidade de Brasília – UnB e da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG Advogado

Compartilhe:

Convivi com o Ministro Celso de Mello de junho de 1990, quando ingressei no Supremo Tribunal Federal, até janeiro de 2006, quando me aposentei. Até então, não o conhecia, pessoalmente. Sabia-o notável membro do Ministério Público paulista, conhecia o seu livro, “Constituição Federal Anotada”, e excelentes pareceres seus na Consultoria-Geral da República.

Mas o Juiz Celso de Mello, eu conheci pouco a pouco. Os seus bem elaborados votos, com apoio na jurisprudência da Casa e em lições de reconhecidos mestres do Direito, impressionavam pela erudição e pelo equilíbrio. Deles divergi, em alguns casos, respeitosamente, como no caso do início da execução penal após o julgamento do 2º grau de jurisdição.

Passei a morar no mesmo prédio onde Celso residia. Ele no segundo andar, eu no terceiro. Ouvia a movimentação, pela madrugada, ele chegando do Tribunal, onde ficava trabalhando noite adentro. Celso só saia de casa para o trabalho. E para as livrarias de Brasília, aos sábados, nos shoppings. Comumente, com a sua filha. Nos intervalos dos livros, fartavam-se, nos fast-food, de hambúrgueres e refrigerantes.

Não ia a jantares festivos. Mas em um jantar que minha mulher improvisou para a professora Leda Boechat Rodrigues, a notável historiadora do Supremo Tribunal Federal, Celso jantou conosco. E foi longa a sua conversa com Leda. Celso sempre cuidou da história do Supremo e acabou tornando-se também seu historiador, com as suas “Notas sobre o Supremo Tribunal Federal”. Mas, dizíamos: Celso raramente ia a teatros e reuniões e não aceitava convites para palestras. Falava nos autos, lecionava nos seus votos, vivia para o estudo, para o trabalho.

No biênio 1997-1999 fui seu vice-presidente. Celso, fiel ao seu retiro voluntário, não atendia pessoalmente convites de governos e judiciários estrangeiros. Recebi dele, algumas vezes, delegação para representar o Supremo Tribunal. Assim o fiz, por exemplo, junto ao Judiciário americano e, por duas vezes, no Cairo, a convite da Corte Constitucional do Egito, da qual trouxe excelente impressão.

Antes das viagens, Celso e eu trocávamos ideias, em longas e proveitosas conversas. Atento às coisas do Judiciário, encarecia a necessidade de informar as características do Judiciário brasileiro: juízes independentes, que têm a Constituição e a lei como norte e que não se submetem senão à sua ciência e a sua consciência, que ingressam na magistratura por concurso público de provas e títulos e que são investidos das garantias da magistratura. Os tribunais, por sua vez, têm autonomia administrativa e orçamentária e autogoverno. Temos problemas, quem não os tem? O nosso problema maior é a lentidão processual, uma mazela. E o foro privilegiado, o que sempre sustentei, outra moléstia grave. O Supremo Tribunal Federal sempre que é chamado a decidir nos exatos termos de sua competência constitucional, em termos de jurisdição constitucional, por exemplo, o faz exemplarmente. Competências que não deveriam ser suas, em matéria penal, decorrentes do foro privilegiado, é que costumam desgastar a Corte de tradições mais que centenárias. 

De hábitos simples, discreto, equilibrado, homem justo e bom, nunca fez desafeto. Se os tem, não deve saber de sua existência. Cordial, um cavalheiro, Celso ensina e pratica, no dia-dia, o respeito à dignidade do ser humano. 

A admiração pelo juiz de alto saber jurídico, de irrepreensível honestidade intelectual, agressivamente independente, surgiu ao longo do tempo. Juiz íntegro, olhos postos nos direitos e garantias constitucionais, honrou o Tribunal. O princípio da igualdade, característica da República, a Constituição o invoca inúmeras vezes, porque quer vê-lo respeitado e cumprido. Na verdade, não há falar em República sem observância rigorosa do princípio isonômico.

Péricles, no ano 430 a.C., no discurso aos mortos da Guerra do Peloponeso, realçou a importância do princípio da igualdade, ele que falava na pátria da democracia. Geraldo Ataliba, que deixou saudade e lições memoráveis sobre a República, ensinou que o “princípio constitucional fundamental, imediatamente decorrente do republicano, é o da isonomia ou igualdade diante da lei, diante dos atos infralegais, diante de todas as manifestações do poder, quer traduzidas em normas, quer expressas em atos concretos. Firmou-se a isonomia”, acrescentava, “no Direito constitucional moderno, como direito público subjetivo a tratamento igual de todos os cidadãos pelo Estado”.

O Ministro Celso de Mello sempre teve na máxima consideração o princípio da igualdade. Fazer cumprir, rigorosamente, esse valor republicano foi a marca da sua vida de juiz. “A ideia de República”, proclamou Celso de Mello, mais de uma vez, “traduz valor fundamental de que todos são iguais perante a lei”.

Juiz incorruptível reconhecia que a corrupção corrói por dentro a República, o que foi, aliás, a causa da decadência dos romanos. Recolho de um de seus votos: “O ato de corrupção constitui um gesto de perversão da ética do poder e da ordem jurídica desta República, que não tolera o poder de quem corrompe nem admite o poder que se deixa corromper”.

A liberdade individual e as liberdades públicas foram valores que o Ministro Celso de Mello, em quaisquer circunstâncias, fez respeitar. Em nota que distribuiu à imprensa de repúdio à censura, assinalou: “Qualquer tipo de censura, mesmo aquela ordenada pelo Poder Judiciário, mostra-se prática ilegítima e essencialmente incompatível com o regime das liberdades fundamentais consagrado pela Constituição”.

Celso de Melo foi, sobretudo, um juiz constitucional, que sempre respeitou e protegeu a Constituição, nutrindo por ela o sentimento constitucional de que fala Pablo Lucas Verdú, sentimento constitucional que faz da Constituição o breviário dos povos livres.

Se não é fácil encontrar juiz que o suceda, certo é que o sucessor não deslustrará a cadeira exercida com honra e brilho por Celso de Mello, porque terá no sucedido o exemplo e o símbolo do juiz íntegro, sábio, libertário, que compreendia que a balança da Justiça tem dois pratos. Num deles estão os sagrados direitos individuais; no outro, os não menos sagrados direitos da coletividade. O bom juiz sabe realizar o equilíbrio desses valores, equilíbrio necessário à credibilidade e ao prestígio da Justiça.

Hoje, 13/10/2020, dia em que Celso de Mello deixa o Supremo Tribunal, a Folha registrou, no seu editorial: “A aposentadoria do Ministro Celso de Mello afasta do Supremo Tribunal Federal não apenas seu mais antigo integrante, o decano, mas aquele que soube defender com mais vigor a instituição e os poderes que a Carta de 1988 lhe conferiu”. E acrescentou: “A ordem jurídica edificada após a redemocratização do país não teria levado tão longe os direitos assegurados pela nova Constituição sem sua contribuição para fortalecer o STF como seu guardião e intérprete”.

É assim Celso de Mello, que se despede do Supremo Tribunal Federal, respeitado e admirado pelos seus pares, pelos advogados e pelos jurisdicionados, após mais de 30 no Tribunal e mais de 50 anos de serviços prestados à Justiça, à cidadania, ao Brasil, com a simplicidade republicana própria dos grandes juízes, o que convém à República.

Missão cumprida com honra e lustre.

Notas__________________________________

1 Ataliba, Geraldo, “República e Constituição”, Malheiros, 2ª edição, p. 158.

2 Montesquieu, “Grandeza e Decadência dos Romanos”, Livraria Francisco Alves, 1937.

3 Voto proferido no julgamento da AP 470, a denominada ação do mensalão.

4 Verdú, Pablo Lucas, “El Sentimiento Constitucional”, Instituto Editorial Reus, Madri, 1985.

5 Folha de S. Paulo, 13.10.2020, A2.