Tributo ao Ministro Celso de Mello

5 de novembro de 2020

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A partir da esquerda, os ministros Edson Fachin, Rosa Weber,  Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Celso de Mello

Despediu-se do Supremo Tribunal Federal (STF), no último dia 13 de outubro de 2020, por aposentadoria, o eminente Ministro Celso de Mello, que por mais de três décadas no exercício da jurisdição constitucional vivificou a letra da Constituição Federal de 1988 e dignificou seus valores e princípios. A sincronia entre este exponencial marco normativo da democracia em nosso País e o ofício jurisdicional, por ele encetado desde 17/08/1989, dá a medida da relevância de seu riquíssimo legado à nação. Seus votos paradigmáticos, verdadeiros carros-chefes do magistério jurisprudencial da Corte Constitucional no período, refletem saber jurídico de dimensões enciclopédicas, permeado por emoção e sensibilidade, e afirmam a democracia brasileira pelo fortalecimento da cidadania e seus sistemas de proteção.

A Constituição Federal de 1988 adentrou o cenário jurídico nacional no dia 5 de outubro daquele ano, como um dos mais expressivos emblemas da cidadania e dos anseios democráticos da história da República. Bem espelham o espírito reinante as palavras de Ulysses Guimarães, Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, no discurso que proferiu na oportunidade: “Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A nação quer mudar, a nação deve mudar, a nação vai mudar”.

A vinculação ontológica entre democracia e transformação sujeita o Estado de Direito ao ideal compromissário de permanente concretização dos princípios democráticos essenciais à plena cidadania. Delineadas no preâmbulo da Constituição de 1988 a identidade e a finalidade do Estado Democrático brasileiro, edificadas sobre os pilares da cidadania plena, em que se entrelaçam as matrizes republicanas da dignidade, fraternidade, igualdade e liberdade, autonomia e participação. Na esteira das Constituições do México de 1917 e de Weimar de 1919, sobreleva na Constituição cidadã a dimensão social e humanística que resulta do alçar da pessoa humana a pedra angular da arquitetura constitucional, conformando a matriz civilizatória do Estado Democrático de Direito. Nessa linha, o extenso rol de direitos sociais estampados no quadro dos direitos fundamentais, com reforçada proteção desse patamar contra as flutuações do legislador ordinário.

Em tal cenário, não escapou à aguda percepção do Ministro Celso de Mello, em primoroso artigo doutrinário, fundado na teoria de Karl Loewestein, “(…) o fenômeno da erosão da consciência constitucional, motivado pela instauração, no âmbito do Estado, de um preocupante processo de desvalorização funcional da Constituição escrita (…)” a exigir dos Três Poderes da República uma relação de incondicional respeito, sob pena de juízes, legisladores e administradores converterem o alto significado do Estado Democrático de Direito em uma palavra vã e em um sonho frustrado pela prática autoritária do poder”. E emerge contundente a advertência por ele lançada: “Não obstante a posição eminente que detêm na estrutura político-institucional do Estado, os juízes, os legisladores e os membros do Poder Executivo, como qualquer outro cidadão deste País, são também súditos das leis e da Constituição (…)”.

A irredutível salvaguarda das liberdades individuais e a afirmação dos direitos fundamentais, com atenção especial às minorias, pari passu com a intransigente defesa institucional do Poder Judiciário, constituem marcas indeléveis da atuação do Ministro Celso de Mello no STF. O trajeto percorrido de construção da consciência democrática repercute na hermenêutica constitucional por ele empreendida, sem que o sensível campo das relações laborais tenha ficado ao desamparo. Seus históricos votos fortalecem o postulado da proibição do retrocesso e a garantia constitucional do mínimo existencial, emanações diretas da “dignidade da pessoa humana”.

No Direito do Trabalho, a realidade social diferenciada – em invocação a Manoel Alonso Olea – que lhe habita a gênese e a ele subjaz, fonte material a nutri-lo e sobre a qual atua de uma perspectiva transformadora, plasmou complexo normativo – regras e princípios – de proteção ao trabalhador, a partir da desigualdade substancial entre os sujeitos da relação de emprego. O deslocamento do núcleo do Direito do Trabalho perpetrado pela Constituição de 1988, conferindo-lhe estatura constitucional, veio a impor no mínimo o aguçar das lentes de estudo e aplicação, uma vez mantida a realidade social subjacente, a despeito dos fenômenos da globalização, da terceirização e dos avanços tecnológicos. E sem dúvida enaltecido na jurisprudência do Ministro Celso de Mello o valor social do trabalho como vetor de integração do cidadão trabalhador, em ambas as esferas, individual e coletiva, do Direito do Trabalho.

Nessa linha, às vésperas de deixar a Suprema Corte, Sua Excelência presenteou nossa República Federativa, juntamente com julgados memoráveis na área penal (destaco o Habeas Corpus 172.136–SP, a reconhecer o direito dos presos à saída da cela para banho de sol por duas horas diárias), com duas decisões na área trabalhista também iluminadas pela força viva e ativa da dimensão social e humanística da Constituição. Refiro-me a duas ações de controle concentrado de constitucionalidade sob sua relatoria – sessão virtual do Tribunal Pleno de 02 a 09/10/2020: ADI 2096-DF, quanto à higidez do art. 7º, XXXII, in fine, da Constituição Federal, na redação da Emenda Constitucional 20/1998, no que majorada a idade mínima do trabalho infantil de 14 para 16 anos; e ADI 4468-DF, quanto à constitucionalidade da Lei nº 12.317/2020 no que fixou em 30 horas semanais a duração do trabalho da categoria profissional dos Assistentes Sociais.

Na primeira delas, após percuciente análise do processo histórico e progressivo da proteção da criança e do adolescente no ordenamento pátrio, desde a fase imperial à doutrina da proteção integral, na conformação do equilíbrio entre os valores do trabalho e da livre iniciativa (CF, art. 1º, IV), consolidou o direito à profissionalização, à proteção no trabalho e à saúde da criança e do adolescente, orientado pelos princípios da primazia do interesse da criança e do adolescente e da absoluta prioridade dos seus direitos.

Já na ADI 4468-DF, proclama, ainda que em obiter dictum, consoante ementa do acórdão, (…) “a relevância do postulado da autonomia da vontade no âmbito do Direito Coletivo do Trabalho, desde que seu exercício sempre respeite a intangibilidade dos direitos fundamentais sociais mínimos assegurados aos trabalhadores pela Constituição Federal, por tratados e convenções internacionais e, ainda, pela legislação trabalhista”, com incidência, no caso, “do postulado constitucional que veda o retrocesso social e o reconhecimento de seu caráter de vocação protetiva dos direitos sociais básicos da classe trabalhadora”. Extraio do voto, após a afirmação do perfil imperativo e de caráter indisponível da legislação trabalhista, in verbis: “Tenho para mim, desse modo, ainda que em obiter dictum, mesmo reconhecendo a existência de posições divergentes na matéria, que as normas coletivas de trabalho, resultantes do exercício da autonomia coletiva privada (norma coletiva autônoma), somente podem prevalecer sobre ‘o padrão geral heterônomo’ se e quando respeitarem por traduzirem resoluções in mellius, vale dizer, mais favoráveis ao trabalhador – a integridade e a intangibilidade dos direitos fundamentais sociais mínimos da classe trabalhadora, sob pena de frontal transgressão ao postulado constitucional que veda o retrocesso social (ARE 639.337-AgR/SP, Relator Ministro Celso de Mello – RE 581.352- AgR/AM, Relator Ministro Celso de Mello, v.g.).”

Feliz o País que tem em sua Corte Constitucional – como Ministro de ontem, de hoje e de sempre – juiz de tal quilate e envergadura! Há que celebrar e agradecer! Obrigada eminente Ministro Celso de Mello!

Notas_______________________________

1 MELLO FILHO, José Celso de. O Supremo Tribunal Federal e a jurisprudência das liberdades sob a égide da Constituição de 1988. In: FURTADO, Marcus Vinícius (Coord.). Reflexões sobre a Constituição: uma homenagem da advocacia brasileira. Brasília: Alumnus: OAB, Conselho Federal, 2013, p. 311-350.

2 MELLO FILHO, José Celso de. O papel constitucional do Supremo Tribunal Federal na consolidação das liberdades fundamentais. In: TOFFOLI, José Antonio Dias (Org.). 30 anos da Constituição brasileira: democracia, direitos fundamentais e instituições. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 477-494.

3 Jornal O Liberal de 25/05/1997 (in Ministro Celso de Mello: 25 anos no STF. Brasília: STF, 2014.)

4 STF. Agravo em Recurso. ARE: 639337 AGR. Relator Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe 15/09/2011.

5 STF. HABEAS CORPUS. HC 172.136-SP, Relator Ministro Celso de Mello, Segunda Turma julgado em 10/10/2020, DJe 21/10/2020.

6 STF. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ADI 2096-DF, Relator Ministro Celso de Mello, decisão unânime, sessão virtual do Plenário de 02/10/2020 a 09/10/2020. Acórdão pendente de publicação.

7 STF. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ADI 4468-DF, Relator Ministro Celso de Mello, decisão unânime, sessão virtual do Plenário de 02/10/2020 a 09/10/2020. Acórdão pendente de publicação.