Trabalhadores de aplicativos e a competência da Justiça do Trabalho

14 de junho de 2021

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Muito se tem discutido sobre a relação jurídica das pessoas que prestam serviços via plataformas digitais, notadamente se são empregados, trabalhadores autônomos ou empreendedores.

Interessantes discussões, com posições fundamentadas na doutrina e em trabalhos acadêmicos, procuram enfrentar essa questão, havendo bons argumentos que defendem se tratar de empregados e, de reverso, que entendem se tratar de trabalhadores autônomos. Há quem aponte que, na verdade, estamos diante de empreendedores, considerando que as grandes empresas desse novo modelo de negócios, que conecta as pessoas através de ferramentas informatizadas e tecnologia consideram os trabalhadores como parceiros.

O tema é complexo e está a exigir conhecimentos específicos do mundo da tecnologia – a forma de atuação das plataformas digitais por meio de aplicativos acessados por dispositivos móveis – a desafiar o Poder Judiciário que começa a receber para solução as ações decorrentes dos conflitos entre os atores sociais dessas relações jurídicas. Sendo a instituição estatal responsável pela pacificação social, pois guarda a atribuição constitucional de solucionar os litígios, o Judiciário depara-se com as ações que se multiplicam na mesma velocidade do número de novos parceiros dos empreendimentos na forma de plataformas digitais.

Quanto à configuração da relação jurídica que une as pessoas que atuam por meio de empresas no formato negocial de plataformas digitais, as possibilidades que se nos apresentam têm por base as conceituações legais dos diplomas que regulamentam as várias formas de prestação de serviços.

A definição de empregado extrai-se da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que dispõe sobre os elementos que permitem caracterizar o que seja um empregado, na perspectiva de uma prestação de serviços por pessoa física, de forma não eventual e sob dependência/subordinação.

Por outro lado o trabalhador autônomo pode ser definido a partir de dispositivo de norma de Direito Previdenciário – Lei nº 8.212/1991, art. 12º, V, item “h” – como sendo pessoa física que exerce, por conta própria, atividade econômica de natureza urbana, com fins lucrativos ou não.

Não há uma definição legal do que seja o empreendedor, havendo a conceituação de vertente sociológica e econômica, cuja característica é a de pessoa inovadora, que promove mudanças e desencadeia o processo de desenvolvimento econômico.

A despeito da controvérsia sobre qual a roupagem das pessoas que prestam serviços por meio de plataformas digitais, há questão precedente para aqueles que pretendem ajuizar ação judicial na defesa do seu direito e objeto específico deste arrazoado: definir qual o ramo do Judiciário competente em razão da matéria para decidir sobre a pretensão que se pretende apresentar.

A questão não é de pouca relevância, pois o ajuizamento de ação em ramo ou órgão do Judiciário não competente pode causar, além da prática de atos que poderão se tornar sem qualquer efeito, postergar a solução do litígio, objetivo da atuação estatal.

De forma resumida, explico que o Poder Judiciário é uno, porém, o legislador optou por organizar a sua estrutura dividindo-a em órgãos jurisdicionais por ramos – estadual e federal – e definindo a medida de jurisdição de cada um deles. Temos, assim, de maneira geral, a competência da Justiça dos estados e, de forma residual, as competências das Justiças denominadas especializadas, a Justiça Federal comum, a Justiça do Trabalho, a Justiça Eleitoral e a Justiça Militar, cada qual com a competência material definida na Constituição Federal de 1988 (CF/1988).

Existe, ainda, divisão interna de competência em alguns ramos do Poder Judiciário, definidos pelos códigos de organização judiciária, nos estados, ou por lei, no caso da Justiça Federal comum, quando se trata, por exemplo, das varas cíveis estaduais ou federais e os juizados especiais.

A lei dispõe que a competência material dos ramos e órgãos do Poder Judiciário encarta matéria de ordem absoluta, de modo que o juiz ao se deparar com determinada ação deverá analisar se é competente em razão da matéria para processar e julgar a demanda e essa análise deve ocorrer de ofício ou por provocação.

Pois bem. Tendo-se em mente a controvérsia quanto à natureza da relação jurídica que une os trabalhadores e as empresas do mercado de plataformas digitais, e as regras legais de competência material, indaga-se qual seria o ramo do Poder Judiciário competente para processar e julgar os processos decorrentes dessa relação jurídica?

Questão que se apresenta tormentosa, não havendo, ainda, uma definição do entendimento entre os próprios ramos do Poder Judiciário. Ações são ajuizadas tanto na Justiça do Trabalho, quanto na Justiça comum dos estados, com decisões de mérito, bem como decisões declinando da competência, por entender que outro ramo do Judiciário é que detém a competência material para decidir o processo.

De acordo com os processualistas, a competência do juízo é determinada, quanto à matéria, pela natureza da relação jurídica controvertida, que é definida a partir da causa de pedir e pedido apresentado na ação.

A competência material da Justiça do Trabalho é assentada na Constituição, com as alterações promovidas pelo legislador derivado, pela denominada reforma do Judiciário.

A parcela de jurisdição da Justiça do Trabalho, definida pelo legislador originário da CF/1988, que se circunscrevia a “conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores”, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 45/2004 avançou, passando a deter a competência para “processar e julgar: as ações oriundas da relação de trabalho (…)”.

Houve, assim, por expressa deliberação do parlamento, significativo acréscimo do espectro competencial da Justiça do Trabalho, no sentido de que este ramo do Poder Judiciário passou a ostentar competência material para processar e julgar não apenas os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, que retratam relação de emprego, mas sim, toda e qualquer ação oriunda da relação de trabalho, de forma a alcançar as diversas formas de trabalho individual remunerado.

A exceção – nos termos do entendimento assentado pelo Supremo Tribunal Federal na ação direta de inconstitucionalidade nº 3395 – é a relação jurídico-estatutária, ou seja, a competência da Justiça do Trabalho não alcança os trabalhadores vinculados a ente público por um regime estatutário.

Dessa forma, quer se considere o trabalhador individual que presta serviços remunerados por meio de empresas de plataformas digitais como empregado quer como autônomo, nos termos do art. 114, I, da CF/1988, a competência para processar e julgar as ações é da Justiça do Trabalho, pois oriundas de uma relação de trabalho.

Ainda que se alegue nas ações a tese defensiva de que se tratam não de empregados ou trabalhadores autônomos, mas sim de empreendedores, a definição do órgão competente para processar e julgar a ação deverá observar a natureza da relação jurídica controvertida, balizadas pela causa de pedir e pedido.

Ou seja, pretendendo o autor da ação que o Poder Judiciário reconheça e declare que a relação jurídica mantida com o empreendimento do segmento de plataformas digitais é de emprego, sob a alegação de presença dos elementos configuradores do vínculo de emprego, ou mesmo que, na condição de trabalhador autônomo, postule direitos que entenda violados pelo tomador dos serviços, será a Justiça do Trabalho o ramo do Judiciário competente para processar e julgar a ação, ainda que a tese de defesa negue a condição do autor de empregado ou trabalhador autônomo, sustentando manter com o trabalhador relação de parceria ou empreendedorismo a competência não se desloca, cabendo ao juiz do trabalho, convencendo-se da tese defensiva, negar acolhimento às pretensões apresentadas.

Causa certa incredulidade a controvérsia que se descortina quanto à competência da Justiça do Trabalho, quando a causa de pedir e pedido apontam a natureza da relação jurídica controvertida a ser alcançada pela competência material definida pela Constituição Federal.

Antes da reforma do Judiciário pela Emenda Constitucional nº 45/2004, cuja competência desse ramo especializado cingia-se às relações de emprego, era comum o ajuizamento de ações decorrentes de relações jurídicas, a princípio, diversas da empregatícia, como era o caso, por exemplo, da representação comercial autônoma, regida pela Lei nº 4.886/1965.

Não era incomum o ajuizamento de ações de trabalhadores que firmaram contrato de representação comercial autônoma com o tomador do serviço, e que, em juízo, alegavam fraude à legislação do trabalho (art. 9º, da CLT), pois, na realidade exerciam suas atribuições não com autonomia, mas sim, sob subordinação a configurar vínculo de emprego.

Considerando que a causa de pedir e os pedidos conformavam a natureza jurídica controvertida sob o aspecto competencial da Justiça do Trabalho, caberia ao juiz do trabalho decidir sobre a procedência – acolhimento das alegações do autor – ou improcedência dos pedidos – convencendo-se da legalidade do contrato de representação.

Não me recordo de qualquer celeuma quanto à questão competencial nessas ações. Guardadas as devidas proporções – no caso, o poderio financeiro das gigantes do mercado de plataformas digitais – a situação jurídica é a mesma quando nos deparamos com ações de trabalhadores individuais que prestam serviços por meio de plataformas digitais.

A definição do órgão de jurisdição competente importa em celeridade e racionalização da atividade jurisdicional. De acordo com os dados do Conselho Nacional de Justiça, a Justiça do Trabalho é o ramo mais célere do Judiciário Nacional e de grande capilaridade, e seus magistrados especializados para o julgamento de ações oriundas das relações de trabalho, com vínculo empregatício, autônomo ou nas diversas outras formas de contratação, estando, assim, preparada para receber e julgar as ações dos prestadores de serviços através de empresas do segmento das plataformas digitais.