Substancial expansão da advocacia extrajudicial

5 de julho de 2021

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No capítulo “Das funções essenciais à Justiça”, o art. 133 da Constituição Federal (CF) dispõe sobre o papel indispensável do advogado à administração da justiça, bem como da inviolabilidade de seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei. O dispositivo constitucional vê, na advocacia, relevante função pública, notadamente a de deduzir postulações, em nome do cidadão, ordinariamente, perante o Poder Judiciário e Administração. Nessa linha, é notório que o advogado contribui para a proteção, a continuidade e o fortalecimento do Estado Democrático de Direito.

A indispensabilidade da função do advogado também se revela no art. 2º da Lei nº 8.906/1994 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil), segundo o qual além de prestar serviço público no exercício de sua atividade, o advogado exerce função social e contribui diretamente para a obtenção de decisão que encerrará litigio.

Apesar das referidas previsões constitucional e legal sobre a indispensabilidade da atividade do advogado à administração da justiça, existem algumas situações em que o próprio sistema jurídico permite a dispensa do advogado, no âmbito do Poder Judiciário. A primeira situação exemplificativa se dá no caso de impetração de habeas corpus, remédio constitucional previsto no art. 5º, LXVIII da Constituição. O art. 1º, § 1º do Estatuto da OAB dispõe que não se inclui na atividade privativa de advocacia a impetração de habeas corpus, “em qualquer instância ou tribunal”.

A atuação do advogado também é facultativamente dispensável no âmbito de processos trabalhistas em diversas situações. Os artigos 791 e 839 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) preveem que os empregados e os empregadores podem apresentar reclamação pessoalmente perante a Justiça do Trabalho; em atenção ao princípio do jus postulandi, a pessoa terá direito de acessar essa justiça especializada e ainda capacidade de ali postular. O Tribunal Superior do Trabalho (TST), por meio do verbete da Súmula 425, limita o jus postulandi às Varas do Trabalho e aos Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs). Ou seja, não é permitido propor ação rescisória e ação cautelar, impetrar mandado de segurança e interpor recursos de competência do TST, sem a atuação do advogado.

Outra situação em que pode ser dispensada a atuação do advogado é a postulação perante os Juizados Especiais; o art. 9º da Lei nº 9.099/1995 dispõe que, nas causas de valor até 20 salários mínimos, as partes não precisam de advogado para serem representadas em juízo (para interpor recursos a presença do advogado é obrigatória – Lei nº 9.099/1995, art. 41, §2º). Já se o valor da causa for entre 20 e 40 salários mínimos, a representação da parte por advogado é obrigatória.

A regra é um pouco semelhante quanto aos processos que tramitam perante o Juizado Especial Federal, órgão competente para julgar ações com valor até 60  salários mínimos (Lei 10.259/2001, art. 3º). A parte pode exercer o jus postulandi (Lei 10.259/2001, art. 10), desde que não se trate de interposição de recursos (ocasião em que é obrigatória a presença de advogado). Nas hipóteses de processos criminais a presença de advogado também é necessária.

Não obstante essas possibilidades de atuação do advogado em processos judiciais (ora obrigatória, ora facultativa), a chamada “advocacia extrajudicial” – exercício da profissão sem a necessidade de intervenção do Poder Judiciário – foi significativamente ampliada, notadamente à luz do fenômeno crescente da desjudicialização. Vê-se, cada vez mais, que a atuação do advogado em meios alternativos ao processo judicial é importantíssima e necessária. Esse tipo de atividade tem ganhado força nos últimos tempos, em busca de procedimentos mais céleres, eficientes e em muitos casos menos onerosos, especialmente para combater a lamentável realidade brasileira de “judicialização da vida” que enseja dezenas de milhões de processos judiciais em curso.

Normalmente, a advocacia extrajudicial é exercida perante cartórios e serventias extrajudiciais em procedimentos que trazem como requisito necessário, ou não, a presença e a atuação do advogado. A maioria dos procedimentos realizados em cartórios que necessitam a presença de advogado gira em torno do Direito de Família. Os principais procedimentos são: divórcio, dissolução de união estável e escrituras de separação. Outro destaque está nos assuntos que envolvem sucessão, tais como inventário, planejamento sucessório, testamento público. Esses procedimentos passaram a ser disciplinados precipuamente pela Lei nº 11.441/2007, que alterou o antigo Código de Processo Civil de 1973 e, com isso, desde então, permite-se realizar inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual pela via administrativa, desde que preenchidos os requisitos legais.

Também com base na referida lei, é permitido que o divórcio consensual, a separação consensual e a extinção consensual de união estável se realizem por escritura pública com especificação e descrição da partilha de bens comuns e da pensão alimentícia, nos casos em que não há nascituro ou filhos incapazes. Poderá igualmente ser disposto ao acordo sobre a retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou a manutenção do nome adotado pelo casamento. Aliás, o art. 733, § 2º do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015) prevê a atuação do advogado nesse procedimento; essa regra dispõe que “o tabelião lavrará a escritura somente se os interessados estiverem assistidos por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial”.

A regra não é diferente para inventário e partilha: se todas as partes interessadas forem capazes, poderão ser realizados mediante escritura pública, que constituirá documento hábil para registro e para levantamento da importância depositada em instituições financeiras (art. 610 do CPC/2015). A ressalva trazida pelo CPC/2015 também gira em torno da atuação do advogado.

Uma outra área em que a sociedade necessita substancialmente de conselhos jurídicos técnicos é a previdenciária. Aqui a atuação extrajudicial é intensa, em decorrência do Tema 350/STF (RE 631.240/MG). O advogado, em síntese, acompanha e fiscaliza os procedimentos necessários para assegurar os benefícios aos segurados do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). Esse trâmite, quase sempre com o fim de obter a “carta de concessão”, ocorre perante o próprio INSS; embora o processo seja eminentemente regido pela Lei nº 9.784/1999, deve-se analisar outras questões sobressalentes, como por exemplo o recente acórdão proferido pelo Supremo tribunal Federal (STF), que julgou o RE 1.171.152/SC (homologação de acordo celebrado entre Advocacia Geral da União, Departamento de Patrimônio da União, Ministério Público Federal e INSS para reduzir e uniformizar o tempo de espera por perícias e a própria conclusão dos processos). Caso o segurado não obtenha o êxito pretendido, poderá judicializar a questão (como, na verdade, em regra, acontece em qualquer processo administrativo, à luz do princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, previsto no art. 5º, XXXV, da CF).

A usucapião extrajudicial é outro exemplo de advocacia extrajudicial. O art. 1.071 do CPC/2015 prevê que a Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos) passa a vigorar acrescida do art. 216-A, por meio do qual é reconhecido e admitido o requerimento extrajudicial de usucapião, a ser processado diretamente perante o Cartório do Registro de Imóvel (CRI) da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo. A postulação deverá ser realizada pelo próprio interessado, desde que esteja assistido por advogado, pois caberá a este a orientação e a análise da configuração da usucapião pelos fatos apresentados.

A atuação em conciliação e mediação pelo advogado também é importante atividade extrajudicial desenvolvida pelos profissionais da área jurídica. São interessantes métodos alternativos de solução adequada de conflitos, que certamente ajudam a reduzir os riscos já mencionados do processo judicial (onerosidade, demora, custos elevados, etc.). Há alguns anos, inclusive, a mediação judicial já conta com lei específica (Lei nº 13.140/2015). O advogado, na condição de conciliador ou mediador, exerce papel fundamental de facilitador do diálogo entre as partes; deve buscar a solução adequada diante das pretensões das partes ao expor as resoluções conforme as regras do sistema jurídico, especialmente as do direito material. Aliás, o Código de Ética e Disciplina da OAB elenca como dever do advogado o incentivo ao uso dos métodos extrajudiciais de solução de conflitos (art. 2º, parágrafo único, VI). Tamanho relevo do tema incitou recentemente alguns juristas a já lançarem a pertinente ideia de se criar uma regra para mediação/conciliação ser uma etapa prévia obrigatória para eventual judicialização de algumas questões controvertidas.

O Estatuto da OAB também trata de atividades extrajudiciais e privativas que podem ser exercidas pelo advogado, quais sejam: consultoria, assessoria e direção jurídica (art. 1º, II). A atividade consultiva do advogado pode ser considerada como atividade preventiva em que o profissional trabalha com a prevenção de conflitos e riscos que possam surgir para o seu cliente; aqui, v.g., o advogado instrui e orienta o cliente nas tomadas de decisões ao caminho mais preciso. Já na atividade de assessoria o advogado presta serviço especializado para o cliente a fim de agregar conhecimento jurídico acerca da atividade negocial para eventualmente criar soluções e estratégias para os negócios do assessorado. A direção jurídica, por sua vez, é a gerência jurídica exercida pelo advogado em qualquer empresa (pública, privada ou paraestatal); atua diretamente no departamento jurídico da empresa, trata de questões jurídicas em geral.

Por fim, a última situação de atuação extrajudicial do advogado é facultativa e ocorre perante a tramitação de Processo Administrativo Disciplinar – PAD. Garante-se o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa ao servidor, com ou sem a presença de advogado. Após intensas controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais, o STF editou a Súmula Vinculante nº 5, por meio da qual prevaleceu o entendimento de que a ausência de advogado em PAD não ofende a Constituição.

Conclui-se, com base nos pontuais exemplos acima sintetizados (o leque de opções é superlativo; pretender exauri-lo mereceria ao menos um livro), que a atuação do advogado não se esgota no âmbito de processos judiciais. Muito ao contrário, há um amplo espaço fora do Poder Judiciário e em crescente expansão de atuação. A advocacia do futuro próximo, com certeza, será preponderantemente extrajudicial e excepcionalmente perante o Poder Judiciário. E os profissionais da área jurídica deverão estar preparados para essa nova realidade.