O STF e a violação aos princípios constitucionais
20 de setembro de 2013
Ophir Cavalcante Presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil
Uma das matérias mais tormentosas à advocacia é fazer chegar ao Supremo Tribunal Federal recursos extraordinários em que se debate a existência de violação aos princípios da legalidade, da ampla defesa, do devido processo legal, do contraditório, dos limites da coisa julgada, da motivação dos atos decisórios e da prestação jurisdicional por configurarem, via de regra, violações indiretas ou reflexas.1
Com efeito, em que pese reconhecer a dificuldade da Suprema Corte em processar as centenas de recursos extraordinários em que os recorrentes alegam a violação de princípios e, até mesmo, de certo modo, reconhecer que essa jurisprudência defensiva é correta na maioria dos casos, creio que não se pode deixar de analisar cada caso concreto sob pena de se negar a missão do próprio Tribunal.
Realmente, há questões que apresentam relevância sob o ponto de vista jurídico, com especial repercussão no patrimônio daqueles que batem às portas da Corte, onde se debatem situações que implicam em inequívocas violações à norma constitucional, dentre as quais se podem destacar os princípios da legalidade, do devido processo legal e da segurança jurídica.
Detendo-nos um pouco mais, por exemplo, sobre a “segurança jurídica”, é imperioso buscar em Gilmar Mendes a exata dimensão da sua importância para o próprio Estado de Direito:
Em verdade, a segurança jurídica, como subprincípio do Estado de Direito, assume valor ímpar no sistema jurídico, cabendo-lhe papel diferenciado na realização da própria ideia de justiça material.2
De igual modo, Luís Roberto Barroso, festejado jurista e agora ministro da Suprema Corte, igualmente defende a importância da segurança jurídica para se alcançar a justiça material ao estabelecer que o desenvolvimento, doutrinário e jurisprudencial, da expressão “segurança jurídica” passou a designar um conjunto abrangente de ideias e conteúdos, que incluem:
1. a existência de instituições estatais dotadas de poder e garantias, assim como sujeitas ao princípio da legalidade;
2. a confiança nos atos do Poder Público, que se deverão reger pela boa-fé e pela razoabilidade;
3. a estabilidade das relações jurídicas, manifestada na durabilidade das normas, na anterioridade das leis em relação aos fatos sobre os quais incidem e na conservação de direitos em face da lei nova;
4. a previsibilidade dos comportamentos, tanto os que devem ser seguidos como os que devem ser suportados;
5. a igualdade na lei e perante a lei, inclusive com soluções isonômicas para situações idênticas ou próximas.3
E não para por aí:
Os atos praticados a cada dia pelo Poder Público, e entre estes os atos jurisdicionais, além dos efeitos específicos que se destinam a produzir, formam o que é percebido como o padrão de conduta das autoridades estatais. Procurando adequar-se a esse padrão, os particulares praticam atos que repercutem sobre suas esferas de direitos e obrigações, fiados na legítima expectativa de que o Estado se comportará, no presente e no futuro, de forma coerente com sua postura no passado. Note-se, portanto, que o dever de boa-fé é um limite jurídico à ação discricionária do poder estatal, que não pode simplesmente adotar qualquer comportamento, encontrando-se vinculado a agir de maneira uniforme diante de situações idênticas, não surpreendendo o particular injustificadamente, em desrespeito à segurança jurídica. (Grifo nosso.)
O padrão de conduta do Poder Público gera nos particulares uma expectativa legítima de que a atuação estatal não irá surpreendê-los, sendo certo que essa expectativa não deve ser frustrada pelo Estado.
Reconhecendo a existência de situações específicas em que não se pode aplicar essa jurisprudência defensiva, a Suprema Corte vem admitindo o debate em torno da violação ao artigo 5o, e seus incisos, da Constituição Federal.4 Das decisões citadas, cabe destacar a ementa do RE 398.407, da Relatoria do Ministro Marco Aurélio, que bem sintetiza a mitigação que há de ser feita em cada caso concreto:
Não se coaduna com a missão precípua do Supremo Tribunal Federal, de guardião maior da Carta Política da República, alçar a dogma a assertiva segundo a qual a violência à Lei Básica, suficiente a impulsionar o extraordinário, há de ser frontal e direta. Dois princípios dos mais caros na sociedade democráticas e, por isso mesmo, contemplados pela Carta de 1988, afastam esse enfoque, no que remetem, sempre, ao exame do caso concreto, considerada a legislação ordinária – os princípio da legalidade e do devido processo legal. (RE 398.407, DJ 12/12/2004, Rel. Min. Marco Aurélio).
Como bem sintetiza Teresa Arruda Alvim Wambier, “há casos em que o excesso de regras em torno da admissibilidade desses recursos (excepcionais) leva a contrassensos. Exemplo disso é a regra no sentido de que só cabe conhecer de ‘ofensa direta’ à Constituição Federal.” E justifica:
Esta regra, em nosso entendimento, leva a um paradoxo: a Constituição consagra certo princípio e se, pela sua relevância, a lei ordinária o repete, por isso, o Tribunal, cuja função é a de zelar pelo respeito à Constituição Federal, abdica de examinar a questão.5
Bruno Dantas, doutor em Direito e ex-conselheiro do CNJ, reconhece que:
(…) a aplicação da doutrina da ofensa direta não pode ser automática e cega. Antes, o STF deve verificar, caso a caso, se a gravidade da violação não é tal que acaba por infirmar o próprio texto constitucional. Nessa linha de raciocínio, o ponto fulcral, segundo pensamos, deveria residir na intensidade da ofensa reflexa, inadmitindo-se aqueles recursos em que se verificasse um baixo grau de intensidade.6
O critério do “grau de intensidade”, proposto por Bruno Dantas, parece-me extremamente interessante como standard básico para balizar a análise da violação a princípios constitucionais, pois se trata de fazer respeitar postulados essenciais ao Estado de Direito, como a segurança jurídica, a legalidade e o devido processo legal, que, quando negados, acabam por infirmar o próprio texto constitucional, ou seja, se mantiver de forma cega a jurisprudência defensiva da Corte, todas as vezes em que for violado um princípio constitucional pela lei ou por uma decisão judicial, o Supremo Tribunal Federal não poderá proceder a correção dessa decisão, ficando atado, como bem referiu o Min. Marco Aurélio no RE 236.233/DF, a um “dogma sacrossanto dissonante da Constituição e colocando em plano secundário a violência intermediada pelo desrespeito a normas estritamente legais.”
Notas ____________________________________________________________________
1 “EMENTAS: 1. RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Alegação de ofensa ao art. 5o, XXXV e LV, da Constituição da República. Ofensa constitucional indireta. Decisão mantida. Agravo regimental não provido. As alegações de desrespeito aos postulados da legalidade, do devido processo legal, do contraditório, dos limites da coisa julgada e da prestação jurisdicional, se dependentes de reexame prévio de normas inferiores, podem configurar, quando muito, situações de ofensa meramente reflexa ao texto da Constituição. 2. RECURSO. Agravo. Regimental. Jurisprudência assentada sobre a matéria. Caráter meramente abusivo. Litigância de má-fé. Imposição de multa. Aplicação do art. 557, § 2o, c.c. arts. 14, II e III, e 17, VII, do CPC. Quando abusiva a interposição de agravo, manifestamente inadmissível ou infundado, deve o Tribunal condenar a agravante a pagar multa ao agravado.” (AI-AgR 548172 PE, Relator: Ministro Cezar Peluso. Julgamento: 27/11/2007).
No mesmo sentido: AI-AgR 643463 AM, Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Julgamento: 2/10/2007; AgR-RE-245.580/PR, Relator: Ministro Carlos Velloso, 2a Turma, in DJ de 8/3/2002).
2 MENDES, Gilmar. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. Estudos de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 212.
3 BARROSO, Luís Roberto. Revista Eletrônica de Direito Processual. vol. III. p. 2-17. Disponível em: <http://www.redp.com.br>.
4 RE 158.215-4/RS, 154.159/PR, 198.016-8/RJ, 398.407, 231.452/PR, RE 163.301/AM.
5 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Controles das decisões judiciais por meio de recursos de estrito direito e ação rescisória. São Paulo: RT, 2001, p. 169-171.
6 DANTAS, Bruno. Repercussão geral. 3. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 183.