Edição 299
Serviço de Transporte Coletivo de Passageiros por Ônibus e a Inconstitucionalidade do Adicional de ICMS para Custeio FECP
11 de julho de 2025
Débora Fontes Silveira Advogada / Vice-Presidente da Comissão de Transportes da OAB-RJ
Rodrigo Mascarenhas Galeão Advogado / Membro da Comissão de Transportes da OAB-RJ

Por meio da Emenda Constitucional (EC) no 31, de 14/12/2000, modificou-se o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), com a introdução de artigos que previram a criação do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza.
No âmbito do Poder Executivo federal, esse Fundo foi instituído para vigorar até 2010, mediante regulamentação por lei complementar, a fim de possibilitar, aos brasileiros, acesso a níveis dignos de subsistência, conforme artigo 79, caput, do ADCT.
A mesma EC no 31/2000 determinou a criação de Fundos de Combate à Pobreza pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios, que podem ser financiados por meio de adicionais de até 2% da alíquota do ICMS, ou do imposto que vier a substituí-lo, sobre produtos e serviços supérfluos, assim definidos em lei federal (artigo 82, caput e § 1o, e artigo 83 do ADCT, com redação dada pela EC no 31/2000). Trata-se de adicional com natureza extrafiscal, utilizado como mecanismo de custeio de Fundos de Combate à Pobreza, e que devem incidir sobre produtos e serviços considerados não essenciais.
Ocorre que diversos estados brasileiros instituíram adicionais para financiamento de tais Fundos sem aguardar a lei federal definidora de produtos e serviços supérfluos. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, foi editada a Lei no 4.056, de 30/12/2002, que autorizou o Governo a criar o Fundo Estadual de Combate à Pobreza e às Desigualdades Sociais (FECP).
Mesmo sem definição legal, a validade do adicional do FECP acabou sendo ratificada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), a partir da interpretação conferida ao art. 4o da Emenda Constitucional no 42, de 19/12/2003,que, segundo o posicionamento firmado pelo TJRJ, teria convalidado vícios originários de inconstitucionalidade, em uma espécie de constitucionalização superveniente.
Com o advento da Emenda Constitucional (EC) no 67, de 22/12/2010, o artigo 79 do ADCT foi alterado para prorrogar a vigência do Fundo de Combate à Pobreza por tempo indeterminado, o que, no estado do Rio de Janeiro, chancelou a promulgação da Lei no 8.643, de 4/12/2019, que, alterando a Lei no 4.056/2002, estendeu a vigência do FECP estadual até 31/12/2023.
Observe-se, porém, que a Lei Estadual no 4.056/2002 estabeleceu exceções ao adicional do FECP, não incidindo, portanto, sobre as atividades previstas no parágrafo único do seu artigo 1o, inclusive aquelas relacionadas no Livro V do Regulamento do ICMS (Decreto no 27.427, de 17/11/2000).
Entre as exceções contempladas pelo Legislador fluminense, destaca-se, neste estudo, o serviço de transporte coletivo rodoviário intermunicipal de passageiros (cf. Título III, artigo 27, inciso I, do Regulamento do ICMS). Assim, não estando o aludido serviço intermunicipal abrangido pela Lei do FECP estadual, as empresas que o executam também não se sujeitam ao pagamento do adicional de ICMS para financiá-lo.
Com a edição da Lei Complementar (LC) federal no 194, de 23/6/2022, finalmente a matéria foi regulamentada, quando o Legislador, então, passou a indicar, expressamente, produtos e serviços considerados essenciais/indispensáveis, não se sujeitando, desse modo, à incidência do adicional do Fundo de Combate à Pobreza.
Observe-se que, ao incluir o artigo 18-A e parágrafo único, inciso I, ao Código Tributário Nacional, a referida LC federal explicitou a essencialidade de “combustíveis, gás natural, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo” (grifou-se), que não podem ser tratados como supérfluos, sendo vedada a fixação de alíquotas de ICMS em patamares superiores aos estabelecidos para as operações em geral.
No mesmo sentido foi a alteração promovida pela LC no 194/2022 na Lei Kandir (LC no 87/1996), com a inserção do artigo 32-A e § 1o, inciso I, sendo reafirmada a essencialidade e indispensabilidade dos produtos e serviços mencionados (combustíveis, gás natural, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo) com relação à incidência do ICMS, impedindo-se que sobre eles recaiam alíquotas superiores às dos produtos/operações em geral.
É verdade que, conceitualmente, jamais houve dúvida de que o serviço de transporte coletivo de passageiros por ônibus, espécie de direito social, tem natureza essencial, nos termos dos artigos 6o e 30, V, da Constituição da República. De todo modo, a LC no 194/2022 tem a virtude de evidenciar a impossibilidade de criação do adicional de ICMS sobre tal serviço público.
Ignorando a referida LC federal, no entanto, em 21/7/2023, foi editada a LC do estado do Rio de Janeiro no 210, que, ao instituir o FECP por período indeterminado, revogou expressamente a Lei Estadual no 4.056/2002, deixando de excepcionar o serviço intermunicipal de transporte coletivo de passageiros por ônibus da incidência do adicional. Por força dessa LC no 210/2023, então, também o transporte público rodoviário intermunicipal ficou sujeito à cobrança do adicional de 2% da alíquota do ICMS, conforme o seu artigo 2o, inciso I. Regulamentando a LC no 210/2023, foi editado o Decreto Estadual no 48.664/2023, para determinar que o adicional instituído pela mencionada LC passaria a ser aplicado, também, ao transporte coletivo rodoviário intermunicipal de passageiros, a partir de 01/01/2024.
Ao estender a aplicação do adicional do FECP, contudo, o Legislador olvidou a vedação constitucional inserta na norma do artigo 82, § 1o, do ADCT, que, conforme enfatizado, é taxativo ao restringir sua incidência a produtos e serviços supérfluos. A rigor, criou-se, com o artigo 2o da LC no 210/2023, exação fiscal manifestamente inconstitucional, ao menos se interpretado o dispositivo no sentido de que o adicional do FECP deveria recair, também, sobre o serviço de transporte coletivo rodoviário intermunicipal de passageiros.
Nessa perspectiva, verifica-se que a LC fluminense violou, igualmente, os princípios da isonomia e da seletividade em matéria tributária, previstos, respectivamente, no artigo 150, II, e no artigo 155, § 2o, III, da CRFB/1988.
Se, de um lado, isonomia significa tratar igualmente os iguais, o princípio também comporta, de outro, a garantia de tratamento desigual entre aqueles que se encontram em situações distintas. E parece evidente que a essencialidade do serviço de transporte coletivo de passageiros por ônibus merece tratamento diferenciado, não podendo ser tributado como se supérfluo fosse.
Quanto à seletividade, por sua vez, a natureza essencial do serviço impede que sobre ele recaia alíquota equivalente a serviço supérfluo, razão por que, sobre o transporte coletivo de passageiros por ônibus, devem ser exigidas alíquotas menores de ICMS.
Aliás, em relação ao serviço intermunicipal de transporte coletivo de passageiros por ônibus, o tema submetido à apreciação do Judiciário fluminense pela Federação das Empresas de Mobilidade do Estado do Rio de Janeiro (SEMOVE), por meio de mandado de segurança coletivo impetrado pela Entidade sindical, e, em decisão do Juízo da 11a Vara de Fazenda Pública da Comarca da Capital, foi deferida medida liminar a favor da Impetrante, para impedir a cobrança do adicional de 2% da alíquota do ICMS destinado ao FECP, em face da essencialidade do serviço, tal como definido pela LC federal no 194/2022.
Essa decisão liminar ainda foi confirmada em acórdão da Sétima Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado do RJ e ratificada por sentença daquele Juízo Fazendário, publicada em 5/12/2024, que concedeu a segurança “para determinar a exclusão do FECP sobre a prestação de serviços de transporte coletivo a partir da vigência da Lei Complementar no. 194, de 23 de junho de 2022, no que refere as empresas filiadas à entidade impetrante”.
Ante tais premissas, conclui-se pela inconstitucionalidade material do artigo 2o da LC fluminense no 210/2023 e, por arrastamento, também do artigo 1o, parágrafo único, IV, do Decreto Estadual no 48.664/2023, se aplicadas estas disposições normativas ao serviço intermunicipal de transporte coletivo de passageiros por ônibus.
Assim nos parece, s.m.j.
Notas
1 ADCT (redação dada pela EC no 31/2000): “Art. 82. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem instituir Fundos de Combate à Pobreza, com os recursos de que trata este artigo e outros que vierem a destinar, devendo os referidos Fundos ser geridos por entidades que contem com a participação da sociedade civil. § 1o. Para o financiamento dos Fundos Estaduais e Distrital, poderá ser criado adicional de até dois pontos percentuais na alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, ou do imposto que vier a substituí-lo, sobre os produtos e serviços supérfluos, não se aplicando, sobre este adicional, o disposto no art. 158, inciso IV, da Constituição. […]
Art. 83. Lei federal definirá os produtos e serviços supérfluos a que se referem os arts. 80, II, e 82, §§ 1o e 2o.”
2 EC no 42/2003:“Art. 4o. Os adicionais criados pelos Estados e pelo Distrito Federal até a data da promulgação desta Emenda, naquilo em que estiverem em desacordo com o previsto nesta Emenda, na Emenda Constitucional no 31, de 14 de dezembro de 2000, ou na lei complementar de que trata o art. 155, § 2o, XII, da Constituição, terão vigência, no máximo, até o prazo previsto no art. 79 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.”
3 Note-se, porém, que a jurisprudência do STF jamais admitiu a possibilidade de constitucionalização superveniente de leis originalmente inconstitucionais. Cf. RE 390840, Relator Marco Aurélio, Tribunal Pleno, j. 09/11/2005, DJ 15-08-2006.
4 Lei Complementar no 194/2022:
“Art. 1o A Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), passa a vigorar acrescida do seguinte art. 18-A:
‘Art. 18-A. Para fins da incidência do imposto de que trata o inciso II do caput do art. 155 da Constituição Federal, os combustíveis, o gás natural, a energia elétrica, as comunicações e o transporte coletivo são considerados bens e serviços essenciais e indispensáveis, que não podem ser tratados como supérfluos.
Parágrafo único. Para efeito do disposto neste artigo:
I – é vedada a fixação de alíquotas sobre as operações referidas no caput deste artigo em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços;’”
5 Após a edição da LC no 194/2022, a jurisprudência dos tribunais vem se consolidando no sentido de afastar a incidência do adicional do FECP sobre produtos e serviços definidos como essenciais pela Lei Complementar federal. No que se refere à energia elétrica e aos serviços de telecomunicação, conferir, respectivamente: (i) TJRJ – APL 0152438-47.2016.8.19.0001; Rio de Janeiro; Décima Terceira Câmara Cível; Rel. Des. Fernando Fernandy Fernandes; DORJ 07/12/2022; Pág. 575; (ii) TJPB – AI no 0809144-73.2020.8.15.0000, 2a Câmara Cível, Rel. Des. João Batista Barbosa, j. 10/06/2023.
6 Com redação atribuída pela Lei estadual no 4.086/2003.
7 Mandado de Segurança Coletivo Preventivo – Processo no 0164684-31.2023.8.19.0001.
8 Agravo de Instrumento no 0013099-95.2024.8.19.0000.