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Um diálogo necessário sobre vícios construtivos

3 de setembro de 2021

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A partir de informações compartilhadas pela CAIXA, estudo realizado pela Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) constatou que tramitam na Justiça Federal mais de 51 mil processos relacionados a vícios construtivos. O estudo verificou ainda que grande parte dessas ações judiciais, que se multiplicaram principalmente a partir de 2019, são demandas temerárias, que não reúnem provas dos alegados vícios e não possibilitam à construtora a realização dos consertos.

Para debater formas de reduzir a judicialidade excessiva e estimular o uso de soluções extrajudiciais para conflitos relacionados à temática, a Revista Justiça & Cidadania promoveu em agosto, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília (DF), nova edição do projeto Conversa com o Judiciário.

O seminário “Um diálogo necessário sobre vícios construtivos” reuniu ministros, juízes federais, representantes do mercado imobiliário e juristas de renome, especializados na matéria, com apoio da CBIC, do STJ, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Conselho Federal da OAB. 

A coordenação científica ficou a cargo do Juiz do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) Antônio Cesar Bochenek e dos ministros do STJ Paulo de Tarso Sanseverino e Luis Felipe Salomão, ambos integrantes da 2ª Seção, especializada em Direito Privado.

“É uma alegria para o STJ participar desse evento de grande importância, não só para o mercado imobiliário, mas também para o crescimento e o desenvolvimento do Brasil, por trazer luzes a todos os operadores do Direito sobre um setor que tem sido uma alavanca propulsora do crescimento”, saudou na abertura o Presidente do STJ, Ministro Humberto Martins.

Uso predatório – Ainda na abertura, o Presidente do Conselho Jurídico da CBIC, José Carlos Gama, explicou que a entidade investigou as ações relacionadas a vícios construtivos e identificou indícios de uso predatório do Poder Judiciário, inclusive com publicações enganosas e aliciamento de clientes. A CBIC conseguiu reunir documentos e vídeos que comprovam o problema em condomínios do antigo programa Minha Casa Minha Vida – atual programa Casa Verde e Amarela. 

“Queremos separar o joio do trigo, não permitir, como já aconteceu na Região Sul, que pequenas e médias empresas sérias, que produzem, dão emprego, geram renda e tributos possam entrar em recuperação judicial porque os recursos que deveriam ser usados para a produção de imóveis foram canalizados para pagar escritórios de advocacia. (…) Que esse exemplo nefasto não se amplie no Brasil todo”, concluiu Gama, que representou no evento o Presidente da CBIC, José Carlos Martins.

Arestas pendentes – Em sua participação, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva comentou as variações da jurisprudência do Tribunal sobre o tema e as divergências ainda não pacificadas na 2ª Seção. Especificamente sobre o grande volume de pedidos de indenização por danos morais no âmbito dos programas habitacionais, o magistrado elencou precedentes que reafirmam o entendimento do STJ segundo os quais o dano moral precisa ser demonstrado.

“É um tema tão velho quanto o Direito Civil, mas ainda há arestas pendentes. Espero que possamos em breve pacificá-las no âmbito da 2ª Seção”, concluiu o Ministro Villas Bôas Cueva, referindo-se à Seção de Direito Privado do STJ.

Indústria de ações – O advogado Carlos Pinto Del Mar descreveu o modus operandi da “indústria de ações” que se organiza em torno dos empreendimentos habitacionais. Segundo ele, em geral os advogados aliciam o síndico a obter procurações, acenando com ganhos a curto prazo e sem custos. Em posse das procurações, ingressam no Juizado Especial Federal, que tem a esfera de atuação de valores até 60 salários mínimos. Solicitam perícia técnica e Justiça gratuita, apresentam fotos e laudos de outros empreendimentos com problemas para tentar sensibilizar os juízes. Muitas vezes, apresentam laudo único para empreendimentos com centenas de unidades, como se todas tivessem os mesmos defeitos. Em geral, esses advogados não pedem a reparação dos vícios, mas indenizações em dinheiro, alegando que se a construtora voltar à obra vai incorrer nas mesmas falhas que causaram a reclamação.

Segundo Del Mar, o que se espera na esfera legislativa são alterações para classificar os vícios em razão de sua natureza ou gravidade, com prazos de garantia e de prescrição compatíveis, a exemplo do que ocorre na legislação internacional mais recente. Já em relação ao Poder Judiciário, disse esperar que no primeiro grau de jurisdição os construtores tenham a oportunidade de reparar falhas; que haja rigor na análise do interesse processual daqueles que ingressam com ações judiciais sem antes recorrer às vias administrativas; e que haja ainda mais critério nas decisões de inversão do ônus da prova.

Questão social – Outro painel teve como tema “A judicialização das demandas da Habitação” e foi mediado pelo Ministro do STJ Mauro Campbell, que em sua apresentação lembrou que o déficit habitacional de seis milhões de moradias no País faz do tema uma questão eminentemente social. Em sua participação, o Juiz Antônio César Bochenek contou ter identificado na 2ª Vara Federal de Ponta Grossa (PR) uma litigância de massas com demandas improcedentes em série. Em busca de soluções, promoveu audiências públicas para reunir os advogados das construtoras, das partes e da CAIXA.

Além das audiências públicas, o magistrado recomendou: a participação de amicus curiae nos processos, em busca da compreensão total dos casos; atos concertados entre juízes; e a utilização de negócios jurídicos processuais “para que a demanda seja bem instruída e posicionada para o julgamento correto, justo e adequado”. Em consequência da aplicação dessas medidas, segundo Bochenek, a “avalanche” de processos relacionados a vícios construtivos de 2019 não teria voltado a se repetir nos últimos 18 meses.

Abacaxi – No encerramento, o Ministro Luis Felipe Salomão comentou que a questão é realmente um tema muito sensível na jurisprudência do STJ. “É um abacaxi que a nossa 2ª Seção vai ter que enfrentar, ponderando todos os lados. Seguramente, esse tipo de evento contribui para uma melhor jurisdição que poderemos prestar. (…) Aqui vimos o empresário, o jurista, o outro lado da moeda. Temos que valorizar eventos como esse, feitos dentro do nosso Tribunal, o que é simbólico, significa que estamos ouvindo e estamos refletindo na melhor saída para todos que participam desse tipo de contrato, que tem múltiplos interesses”, finalizou o Ministro.

Participaram ainda do seminário os ministros do STJ Paulo Dias de Moura Ribeiro e Antonio Carlos Ferreira, o Desembargador aposentado do TJRJ Sérgio Cavalieri Filho, o Diretor Jurídico da CAIXA, Gryecos Loureiro, o Secretário-Geral do CNJ, Juiz Federal Valter Shuenquener, o Desembargador Cesar Cury, que preside o Núcleo Permanente de Práticas Restaurativas e de Mediação (Nupemec) do TJRJ, e o Vice-Presidente de Habitação de Interesse Social da CBIC, Carlos Henrique Passos. Para saber mais, assista à íntegra do seminário no canal de YouTube da Revista Justiça & Cidadania.