Edição

Segunda instância em uma hora dessas?

3 de agosto de 2020

Antônio Laért Vieira Júnior Diretor Secretário do Setor Administrativo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB)

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Após o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir sobre a impossibilidade de início do cumprimento da pena de prisão depois de decisão de segunda instância, em 7/11/2019, no julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43, 44 e 54, o tema voltou à carga no Congresso Nacional.

Tramita no Parlamento a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 199/2019, de autoria do Senador Alex Manente (Cidadania-SP), para alterar os artigos 102 e 105 da Constituição Federal, transformando os recursos extraordinário e especial em ações revisionais de competência originária do STF e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), com extensão da discussão originária na área penal também às áreas cível, trabalhista e tributária, para que condenações passem a valer após decisão de segunda instância. Discute-se também a PEC 5/2019, de autoria do Senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), subscrita por mais 31 senadores, que insere o inciso XVI no art. 93 da Constituição Federal, para positivar a possibilidade de execução provisória da pena, após a condenação por órgão colegiado, dentre as iniciativas mais faladas e comentadas na mídia.

Sobreveio o recesso parlamentar, intervalo e espaço de respiração na discussão do tema. Retomadas as atividades, de súbito, fomos tragados pela pandemia da covid-19, que apontou para prioridades e urgências inadiáveis sobre as quais precisou se debruçar o Parlamento. Os movimentos dos atores indicam que a discussão voltará à pauta com a retomada das sessões presenciais.

As referidas PECs, com inspiração em iniciativas anteriores, deixam sob risco a cidadania, porque, além de revelar claro combate a monstros nascidos de escolhas desoladas e intempestivas, não tomam em consideração a situação atual de operacionalidade do Poder Judiciário no País, seja o Judiciário Federal e do Trabalho, seja o Judiciário dos estados, o que compromete a garantia dos direitos do cidadão. Essas soluções legislativas, em última análise, se efetivadas, podem contribuir para subtrair direitos básicos.

O Judiciário caminha para julgamentos em sessões virtuais e eletrônicas, de duvidosa qualidade e legalidade. Todos os advogados brasileiros, dentre os 1,2 milhão inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que sobrevivem diuturnamente da advocacia, sabem muito bem que a qualidade das decisões do Judiciário perdeu densidade e massa crítica nas últimas décadas. Desde quando se informatizou e priorizou estatísticas, quantidade em detrimento da qualidade, se vê descendo ladeira abaixo o conteúdo e a compreensão das decisões que vêm sendo produzidas pelo Judiciário.

E o que desejam essas iniciativas legislativas? Responder apenas ao indefinido “clamor da sociedade”, sem descer a reflexões mais profundas sobre o tema em todas as suas nuances, pouco importando as garantias constitucionais da cidadania.

A presente reflexão não é ufanismo por um passado que talvez não volte mais, mas sim interpelação necessária de reflexão para tentar compreender onde se deseja chegar e que valores e princípios vale a pena sacrificar, nessa nova “década de rupturas” a se iniciar.

A cotidianidade revela que a Justiça de segunda instância tem decidido com base em posições tomadas com o maior protagonismo de assessores dos julgadores. Isso significa dizer que grande parte dos magistrados, infelizmente, tem se demitido de sua função constitucional, terceirizando a jurisdição em nome do volume de processos, de uma questionável produtividade e das facilidades proporcionadas pelas estruturas dos gabinetes.

Os tribunais, ao adotarem como regra os julgamentos virtuais – troca de e-mails privados (intranet) entre os julgadores, sem publicidade e acesso do advogado – em detrimento dos julgamentos presenciais, agravaram tremendamente esse quadro, porque afastaram da discussão e dos debates várias questões relevantes, além da interpeladora e sempre incômoda presença do advogado – aquele que está ao lado da parte – com graves riscos à garantia cidadã da ampla defesa e do contraditório, com os meios e recursos a ela inerentes.

Não bastassem essas perplexidades, a pandemia, acelerando o futuro, tornou ainda muito pior essa equação, quando órgãos jurisdicionais, à míngua de alternativas, valendo-se da tecnologia como última ratio, terminaram por editar, dentre muitos, alguns atos: Portaria 61, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 31/3/2020, que criou a “Plataforma emergencial de videoconferência para audiências e sessões de julgamento no período de isolamento social decorrente da pandemia da covid-19”; Resolução STJ/GP 9, de 17/4/2020, que disciplinou sessões  de julgamento com uso de videoconferência em caráter excepcional no STJ; Resolução 317 do CNJ, de 30/4/2020, que permitiu a realização de perícias em meios eletrônicos ou virtuais nas ações em que se discutem benefícios previdenciários por incapacidade ou assistenciais, enquanto durarem os efeitos da crise ocasionada pela pandemia, tudo isso sob o pretexto de continuar entregando a cada um o que é seu.

Além disso, sobrevieram a Lei nº 13.994/2020, que alterou a Lei nº 9.099/1995, para possibilitar conciliação não presencial mediante recursos tecnológicos de sons e imagens, e a Lei nº 13.989/2020, que autorizou o uso da telemedicina enquanto durar a crise do coronavírus.

É com esse Judiciário em transformação que se deseja que tudo venha terminar na segunda instância. Como assegurar que o uso dos meios tecnológicos garanta o direito dos advogados, de modo a preservar voz, som, imagem, qualidade, tom, entendimento, forma de percepção e recepção mais próxima da realidade e impressão pessoal com a mesma qualidade? Sabe-se, por vezes, como se dão as coisas: “Ministro(a), Desembargador(a), quero lembrá-lo(a) que faltam apenas dez minutos para que V. Exa. vote aquela questão na sessão virtual”.

E assim, se vai decidindo a sorte de uma vida, o patrimônio de uma pessoa e a liberdade daquele cidadão. Em tempos de distopia, dirão alguns, isso é utopia. Seja lá o que for, a reflexão se impõe: Que tipo de Justiça queremos? É necessário depurar o caldo de cultura para reabrir as fontes que foram poluídas e bloqueadas, ainda que estejamos diante desse estranho vazio que precede o estado de incertezas que vivemos e tenhamos que admitir que algumas coisas desse tempo estranho venham a permanecer.

Qual densidade e qualidade das decisões judiciais devemos buscar e cooperar para construir? Talvez não percebamos mesmo que, por influência do que lemos, escutamos, ouvimos e até muitas vezes admitimos, transigir com esse estado de coisas no silogismo do processo não tem cabimento e não se justifica, sob pena de lamentar, além do que já foi sacrificado, uma nova era de perdas.

Todo o problema do processo continuará a ser o tempo. Tudo na vida, para amadurecer, demanda um tempo: o tempo de duração razoável do processo. O processo continuará sendo uma conversa contínua até o seu epílogo.

Quem então irá ouvir, ler e tomar em consideração o que foi dito, escrito, sustentado? Onde serão esclarecidos pontos de fato e questões de ordem? Quem receberá o advogado, o escutará, lerá seus memoriais, ouvirá com atenção e respeito sua sustentação oral presencial, por videoconferência ou por meio eletrônico através de áudio?

Pensemos, pois, sobre isso, porque o tempo urge e as iniciativas açodadas nunca são as melhores. Ainda que sejamos contramajoritários e não almejemos a aprovação e a unanimidade dos contemporâneos, necessário se faz a autorreflexão para depurar a essência e lembrar todos os dias, todas as horas às pessoas o combate travado e o que se está combatendo, para que não se mate o espírito e a criatividade dessas garantias, entregando-as e abdicando delas em nome apenas da sacralização de um momento cujo valor mais alto, como tudo na  vida, também passará.