Responsabilidade presidencial em pandemia

5 de novembro de 2020

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Há 20 anos publiquei obra (“Lições de Direito Constitucional” pela editora Forense e já esgotada), cuja segunda edição destacava responsabilidade presidencial por eventual omissão de norma administrativa cuja previsão constitucional expressa a tornasse imprescindível. À época, ainda formulava a hipótese – durante o magistério e sequer imaginando que um Presidente adotaria no futuro – de deliberada inação presidencial em face de surto de transmissão contagiosa com potencial nacional.

Como tema jurídico, tal situação se cingiu ao princípio de prevenção sanitária (art. 196 ab initio), pelo qual a saúde é “direito de todos (…) garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos”, bem como à competência normativa concorrente entre União, Estados e Municípios (art. 24, XII, in fine), debatida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Cuja decisão, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6341/2020, impediu que a Medida Provisória 926/2020 excluísse o exercício de polícia sanitária, pelos demais entes federativos, com medidas amplas de contenção ao contágio do novo coronavírus, reservando-as à União e mediante eventuais decretos presidenciais.

ESTADO DE DEFESA CONTRA CALAMIDADE NATURAL

No entanto, há dispositivo constitucional que instrumentaliza especificamente a Presidência da República para contenção de situações, inicialmente locais, mas cuja disseminação atinja a ordem pública e a paz social: o Estado de Defesa, cuja decretação presidencial independe de qualquer outra autoridade (art. 136) e propicia restringir, em áreas determinadas no território brasileiro, o exercício do direito de reunião e ocupar, temporariamente, bens e serviços públicos em face de calamidade pública (inciso I, alínea a, e inciso II do parágrafo 1°).

Pois seu emprego não se limita, como mecanismo de emergência constitucional, à instabilidade institucional local que for grave e iminente, mas, também e expressamente, quando ordem pública ou paz social sejam atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza. Evidentemente, nesta situação constitucionalmente prevista se enquadrava, completamente, a irrupção localizada (especialmente em certas áreas do Sudeste) de uma pandemia global no País, desde que sua transmissão – embora ainda local – se tornou oficialmente comunitária, pelo próprio Ministério da Saúde, em março de 2020. A partir deste momento, o potencial do surto local já tornara sua progressão emergencial para a vida nacional, inclusive econômica.

Decretado por até 30 dias e prorrogável até pelo mesmo período, se persistentes ou ampliados os problemas locais que ensejaram o Estado de Defesa (parágrafo 2°), é tanto instrumento presidencial para contenção de situação acarretada por calamidade natural – como a da contaminação pandêmica pelo novo coronavírus – ainda localizada em seu nascedouro, quanto de emergência constitucional em Estado Democrático de Direito. Sua iniciativa presidencial é privativa, mas não se furta do controle posterior pelo Congresso Nacional (parágrafo 4°), o qual o pode cessar em qualquer tempo de sua vigência, prorrogada ou não (parágrafos 5° a 7°).

Mesmo a eventual ineficácia na contenção local da pandemia, pelo Estado de Defesa (cuja eficácia, obviamente, é proporcional à sua imediaticidade), já ensejaria medidas mais restritivas de sua transmissão progressiva e através de outro instrumento de emergência constitucional: o Estado de Sítio que, quando decorrente de ineficaz Estado de Defesa, advém da parceria já estabelecida entre Executivo e Legislativo, o qual precisa autorizar sua decretação pela Presidência da República (art. 137, I, in fine). Em ambos os instrumentos de emergência constitucional, tem de haver consulta presidencial aos Conselhos da República e de Defesa Nacional, órgãos cuja estrutura é fixada, respectivamente, pelos artigos 89 e 91.

Sendo o decreto presidencial de Estado de Defesa um ato político-administrativo, sua interpretação jurídica, comumente, o confere à Presidência da República como faculdade na qual é o único juiz de sua conveniência e oportunidade. Ela se baseia em três dogmas tradicionais ao Direito Público: da liberdade de configuração conferida aos agentes políticos, em geral, para o exercício de suas funções (inclusive quando democraticamente delegadas); da discricionariedade própria aos atos administrativos genericamente previstos pela legislação; e pela literalidade constitucional de sua atribuição presidencial (art. 84, IX e 136, caput).

Tal tradição interpretativa da emergência constitucional (da qual o Estado de Defesa é uma modalidade brasileira, ao lado do Estado de Sítio e da intervenção federal) é adequada à subversão da ordem institucional, em geral e que está na origem desses institutos. Porém, como anteriores à Carta de 1988, na qual não se confundem com a Organização dos Poderes, mas residem em título posterior e próprio (V) – Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas – necessitam de interpretação conforme a fórmula constitucional do Estado Democrático de Direito, na qual a responsabilidade de gestores públicos é dimensão inerente ao seu exercício funcional ordinário e, portanto, ainda maior quando extraordinário, como ocorre durante ações e omissões de emergência constitucional.

Então, não cabe confundir ambas as hipóteses constitucionais de decretação do Estado de Defesa (instabilidade institucional e calamidade natural): enquanto o grau da primeira depende, estritamente, de juízo político livremente exercido pela Presidência da República, o advento da segunda consiste em conceito jurídico indeterminado pelo qual cabe às Ciências (inclusive e peculiarmente não jurídicas) determinar o enquadramento de eventos naturais específicos à situação constitucionalmente prevista. Dada sua ocorrência eventual, caberia à Presidência da República decretar o Estado de Defesa, como autodefesa primária da nacionalidade brasileira contra calamidades naturais que sejam internas ao nosso território e apesar de pontuais, desde que potencialmente nacionais. Sua decretação presidencial é exercício de Poder Público como chefe de Estado e não de governo: um Poder-dever fundamental porque constitucionalissimamente emergencial.

A contenção de calamidade natural que atinja a ordem pública ou a paz social é imperativo presidencial. Para isso, a Presidência da República é o único órgão público dotado pela própria Constituição com instrumento administrativo emergencial no qual ela é uma situação expressamente positivada. A chefia do Executivo federal devia ter decretado Estado de Defesa, logo que irrompeu a pandemia no Brasil, porque tal situação é constitucionalmente fixada como de emergência constitucional. Portanto, é inegável dever presidencial constitucional e fundamental – porque emergencialmente previsto pela Carta Magna – decretar o Estado de Defesa para interromper a situação ocasionada pela calamidade natural através da legalidade excepcional que o caracteriza e, se não contida, assumir o iter procedimental (também constitucionalmente prescrito) de solicitação ao Congresso Nacional para eventual Estado De Sítio.

OMISSÃO NORMATIVA INCONSTITUCIONAL COMO EMERGÊNCIA CONSTITUCIONAL

Tal imperatividade presidencial de decretação do Estado de Defesa para evitar ou restabelecer a ordem pública ou a paz social atingidas por calamidade natural, em locais determinados do território brasileiro, ainda é corroborada, pela Constituição Federal à medida que sua omissão é inconstitucional.

Há inconstitucionalidade por omissão normativa quando qualquer Poder de Estado deixa de produzir norma imediatamente infraconstitucional expressamente prevista pela Constituição. Embora ao Legislativo caiba produzir, rotineiramente, normas (legais) elencadas logo abaixo das já presentes no texto constitucional (art. 59), o dever de produzir normas jurídicas incumbe é ostensivo no Estado de Direito, mas só é inconstitucional a não produção normativa quando sua edição específica foi constitucionalmente fixada como necessária à aplicação de certo dispositivo constitucional.

Por isso, não apenas lacunas legais, pela falta de legislação especificamente prevista na Constituição, mas eventualmente de normas de cunho administrativo, desde que previstas pela Carta e sem necessidade de outra norma interposta entre ambas, tornam suas lacunas normativas (administrativas) igualmente inconstitucionais. De fato, sempre que a aplicação de norma constitucional dependa de outra seguinte a ser editada, sua omissão normativa é inconstitucional e ainda que de natureza administrativa. Tal inconstitucionalidade omissiva por lacuna administrativa consta do parágrafo 2° do art. 103 in fine.

Deixar de decretar Estado de Defesa quando atingida ordem pública ou paz social por calamidade natural consistiu em omissão normativa inconstitucional, já que ocorrera a situação prevista em locais determinados, onde irromperam surtos pandêmicos no território brasileiro. Sem sua edição (privativamente presidencial), sequer houve a obrigatória tentativa federal de contenção da situação, ainda localizada, para evitar sua disseminação nacional. Se não bastasse tal obrigatoriedade ser reputada como emergencial, em uma ordem constitucional que condena inconstitucionalidades omissivas tanto quanto as comissivas (de normas colidentes com a Constituição), tal omissão normativa presidencial é inadmissível por negligenciar instrumento de autodefesa nacional conferido pela própria Carta política à Presidência da República.

Sendo o órgão público detentor do Estado de Defesa como prerrogativa inerente, a Presidência da República também poderia ter sido interpelada mediante ação direta de inconstitucionalidade por omissão normativa e pela qual o STF, se declarando a mora constitucional do Executivo federal (art. 103, parágrafo 2°, in fine), lhe fixaria o prazo de 30 dias corridos para sua edição. Todos os legitimados para ação de inconstitucionalidade normativa, em geral (incisos do art. 103), poderiam ter arguido a falta de decretação presidencial, inclusive – conforme jurisprudência assentada pelo STF sobre entes dotados com especial interesse – governadores e mesas das respectivas Assembleias Legislativas do Sudeste, bem como os conselhos regionais de medicina da região, onde irrompera o surto pandêmico e sua transmissão se tornara comunitária.

No entanto, a falta de arguição, da omissão normativa presidencial em decretar Estado de Defesa, também não exime a responsabilidade político-administrativa por sua edição, a qual radica no próprio dispositivo emergencial constitucional (art. 136, in fine) onde é prerrogativa presidencial normativa e administrativa para prevenção ou restabelecimento de ordem pública ou paz social localizadas e atingidas por calamidade natural.

RESPONSABILIDADES PRESIDENCIAIS POR OMISSÃO EMERGENCIAL E NORMATIVA ADMINISTRATIVA: POLÍTICA, CRIMINAL E CIVIL

A soberania nacional e a dignidade humana como princípios fundamentais (art. 1°, I e III), a vida no pórtico dos direitos fundamentais (art. 5°, caput), a saúde como direito social (art. 6°), incumbência administrativa comum aos vários entes federativos (art. 23, II) e à legislação federal geral (art. 24, XII, parágrafo 1°), a moralidade como princípio da administração pública (art. 37, caput), a segurança pública como preservação da incolumidade das pessoas (art. 144, caput), a função social da propriedade e a defesa do consumidor como princípios da atividade econômica (art. 170, III e V), o bem-estar social como objetivo da ordem social (art. 193), inclusive pela redução do risco de doença como parâmetro (art. 196) proíbem, peremptoriamente, ao principal administrador público (art. 84, II) não intervir diretamente contra propagação contagiosa, eventualmente mortal, no território nacional.

Renunciar ao emprego do instrumento presidencial constitucional (Estado de Defesa), conferido para contenção emergencial de situações locais pelas quais ordem pública ou paz social são estritamente atingidas por calamidade natural, não é uma opção política constitucionalmente válida. Trata-se de situação excepcionalmente prevista pela Constituição e para a qual dotou somente o principal administrador público brasileiro (art. 84, II), para seu exercício emergencial. Deixar de decretar a legalidade extraordinária do Estado de Defesa, em locais onde ordem pública ou paz social fossem debilitadas por calamidades naturais, só não implicaria responsabilidade político-administrativa da Presidência quando outras medidas tomadas impedissem sua propagação nacional.

A mera não adoção do Estado de Defesa no início da pandemia em território brasileiro e sua posterior disseminação nacional acarretam correspondente responsabilidade (omissiva) presidencial. Ao sequer recorrer aos instrumentos emergenciais, constitucionalmente prescritos para situação na qual calamidade natural vulnerou ordem pública ou paz social, o Presidente Jair Bolsonaro não exerceu a chefia do Estado brasileiro, omitindo-se de, ao menos, tentar evitar ou minorar a extensão nacional da pandemia cujo alastramento ceifou vidas, mais rápido que qualquer outra causa de morte e bloqueou a economia, tornando muito lenta sua recuperação ulterior.

Neste sentido, a omissão normativa administrativa de decretar Estado de Defesa da ordem pública e paz social atingidas pela eclosão da pandemia no Brasil, como calamidade natural de grandes proporções, ocasionou as seguintes responsabilidades presidenciais:

Responsabilidade presidencial político-administrativa – Houve omissão presidencial de decretar Estado de Defesa em face da situação calamitosa, constitucionalmente prevista e oficialmente detectada, pela irrupção pandêmica no mês de março de 2020. Declarada pelo próprio Ministério da Saúde naquele mês, também foi mencionada pelo relatório do Ministro Marco Aurélio – em 24/03/2020 sobre a ADI 6341/2020 e mencionando técnicos no assunto – como “em estado embrionário” naquele momento.

De fato, nem é necessária qualquer outra norma – embora seja salutar à ordem jurídica brasileira – para conferir responsabilidade presidencial (um aspecto central do projeto de lei nº 1043/2020, que tramita, atualmente, no Senado Federal) em pandemia nacional. Ela advém da cominação entre o art. 136, caput, in fine com o parágrafo 2° do art. 103 e o art. 85, V. Assim, a omissão presidencial de não decretação do Estado de Defesa para controle da pandemia, em seu início no território nacional, atentou contra a Constituição Federal, especialmente sendo crime político de improbidade administrativa omissiva ou por omissão. A sanção político-administrativa é a do impeachment presidencial pelo Senado Federal (art. 52, I).

Como todo ato – comissivo ou omissivo – de improbidade administrativa deve acarretar perda da função pública e suspensão (interdição temporária) de direitos políticos (neste caso segundo procedimento disciplinado pela lei nº 1.070/1950), mas não elide ação penal cabível, nem indenização pertinente ao erário (parágrafo 4° do art. 37), a omissão normativa presidencial em enfrentar a propagação viral também importa responsabilidades criminal e civil.

Responsabilidade presidencial criminal – Desde a oficialização ministerial (pelo próprio Ministério da Saúde) da irrupção pandêmica, a deliberada opção presidencial – explicitada por discursos e ações do Presidente da República – de sequer se opor, em termos normativos e administrativos, à propagação do novo coronavírus em território nacional e nem mobilizar os órgãos de segurança interna para seu controle, foi causa superveniente à pandemia que potencializou a ocorrência de infecções e mortes pela covid-19.

A mobilização das Forças Armadas em defesa da Pátria (art. 144, caput) e órgãos de segurança pública para a incolumidade das pessoas (art. 144, I, II e II), funcionais sob tutela presidencial, é imprescindível – formalmente e materialmente – para qualquer controle nacional de contágio viral, o qual se limitou a medidas locais por governadores e prefeitos, cuja articulação coordenada foi explicitamente recusada pela Presidência da República, cujo papel institucional a assumiria, tão extraordinariamente quanto constitucionalmente, pelos mecanismos emergenciais postos à sua disposição pela Carta Política e através do iter procedimental (emergencial e constitucional) que articula Estado de Defesa ao de Sítio.

Assim, a falta de decretação presidencial do Estado de Defesa e correspondente legalidade extraordinária, emergencialmente prescrita pela Constituição Federal quando ordem pública ou paz social são atingidas por calamidade da natureza (tal como é o novo coronavírus), consistiu em infração penal de homicídio eventual dos brasileiros que perderam suas vidas, pela covid-19, nos meses seguintes ao de março. Tal enquadramento (art. 121, cominado com 18, I do Código Penal) da omissão presidencial contra a extensão do contágio viral reside no risco consciente às vidas de brasileiros que gerou e pelo qual optou. A sanção cabível é pena privativa de liberdade, aplicada pelo STF (art. 102, I, alínea b; inciso I do parágrafo 1° do art. 86 e parágrafo 3° do mesmo dispositivo constitucional).

Responsabilidade presidencial civil – Enfim, da omissão presidencial em decretar Estado de Defesa para controlar a transmissão pandêmica, assim que contágio local se tornou epidêmico e potencialmente exponencial no território brasileiro, também emana responsabilidade civil da União para com pessoas (físicas e jurídicas) prejudicadas pela magnitude nacional – resultado cujo objetivo o instrumento emergencial presidencial tem a finalidade constitucional de evitar – assumida pelo novo coronavírus.

Como agente político e principal da União, enquanto pessoa jurídica de direito público, a mesma deve indenizar (parágrafo 6° do art. 37), em tese, sequelados e familiares de mortos pela covid-19, posteriores a março de 2020, bem como demais pessoas físicas e jurídicas (de direito público ou privado), especialmente empresariais cujos negócios foram deprimidos ou falidos pelos efeitos econômicos da pandemia. À União ainda cabe direito de regresso contra o Presidente da República (art. 37, parágrafo 6° in fine) para ressarcimento ao erário do que indenizar a terceiros – inclusive mediante indisponibilidade de seus bens particulares para tanto (parágrafo 4° do art. 37).

Dado que epidemias letais podem ser tão deletérias para economias nacionais quanto guerras, a inércia presidencial – atestada pelo desprezo presidencial do Estado de Defesa para conter o alastramento do novo coronavírus pelo Brasil – responsabiliza a União, como pessoa jurídica de direito público, pelos prejuízos econômicos ocasionados pela expansão da covid-19. Ao não instituir a legalidade extraordinária temporária do Estado de Defesa, o Governo Federal ainda deixou de prover o setor privado da economia, em âmbito nacional, que indicasse horizontes para suas atividades, conforme incumbência constitucional (art. 174 e seu parágrafo 1°).

Assim, à União – devido à omissão normativa presidencial contrária à contaminação nacional – cabe indenizar danos materiais e morais, de pessoas físicas e jurídicas, ocasionados pela progressão pandêmica no Brasil após março de 2020. Tais indenizações têm seu locus decisório na Justiça Federal (artigos 106 e 19, I).