Reforma tributária e a Emenda Constitucional 42/03

5 de junho de 2004

Ives Gandra da Silva Martins Membro do Conselho Editorial, Professor emérito das universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e CIEE

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A Emenda Constitucional nº 42/03 foi mais um remendo que a Constituição recebeu do Congresso Nacional, com poderes constituintes derivados, que hoje conformam permanente “contribuição de pioria” ao texto aprovado em 1988.

Sua origem reside no PEC 41/03, que sofreu alterações profundas, desde sua apresentação e discussão na Câmara e no Senado, com algumas amputações necessárias (progressividade do imposto sobre operações não onerosas e imposto sobre transmissão imobiliária onerosa) e alterações de ocasião, tendo sido reduzido, de rigor, à prorrogação da CPMF e à desvinculação da receita da União, assim como transferência de parte da CIDE para Estados e Municípios, além da inserção de alguns dispositivos “explicitadores” do que já existia no texto constitucional. Prorrogou-se, por outro lado, a discussão do grande desafio, que é equacionar  os problemas provocados pelo ICMS, imposto de vocação nacional, regionalizado no país, – experiência única no mundo-com péssimos resultados  colhidos até aqui, no que concerne à técnica de valor agregado.

Passo a elencar as modificações, com rápidos comentários.

Foi acrescentada a letra “d” ao inciso III do art. 146 da Constituição Federal, com a dicção seguinte:

Art. 146 “Cabe à lei complementar: … III. estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: … d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239”.

Trata-se de artigo explicitador do art. 179 da lei suprema, que já continha, de forma genérica, tal disposição, estando assim redigido:

“A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei”.

Meu receio é que aquilo que já se fazia por lei ordinária fique agora sujeito a regime de lei complementar. Uma vantagem, entretanto, decorre da disposição. É que a lei complementar obrigará União, Estados, Distrito Federal e Municípios, devendo pois, voltar-se principalmente para o ICMS e às contribuições sociais.

O parágrafo único, com a redação que se segue, acrescenta:

§ único – “A lei complementar de que trata o inciso III, “d”, também poderá instituir um regime único de arrecadação dos impostos e contribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, observado que: I-  será opcional para o contribuinte; II – poderão ser estabelecidas condições de enquadramento diterenciadas por Estado; III- o recolhimento será unificado e centralizado e a distribuição da parcela de recursos pertencentes aos respectivos entes federados será imediata, vedada qualquer retenção ou condicionamento; IV- a arrecadação, a fiscalização e a cobrança poderão ser compartilhadas pelos entes federados, adotado cadastro nacional único de contribuintes”.

A norma beneficia mais o fisco que o contribuinte, pois, a título de favorecer o regime único para as entidades federativas, no que concerne às empresas de pequeno porte, permitirá uma fiscalização única, objetivando manter controle das 3 esferas da Federação, em nível muito superior ao que se faz na atualidade, com a potencialidade de se aumentar o arbítrio e de se facilitar a “concussão” e “corrupção”, visto  que autorizará o exercício do poder fiscalizatório de todas as esferas e de todas as entidades federativas ao mesmo tempo. Uma empresa que trabalhe com 10 Estados ou 50 Municípios, poderá sofrer 60 fiscalizações e não apenas aquela do Município e do Estado onde está sediada.

O artigo 146-A é positivo, tendo a seguinte redação:

“Lei Complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo”,

Objetiva evitar concorrência predatória, através de incentivos fiscais abusivos,  que possam desequilibrar a livre concorrência entre empresas de diversos Estados ou Municípios, ou mesmo entre empresas conformadas por grupos diversos, mas sob controle único.

Poderá, entretanto, facultar o arbítrio fiscal, alargando o espectro de atuação da polêmica e, a meu ver, inconstitucional norma anti-elisão (L.C. 104/00).

O § 1º do art. 149 recebeu redação ofertada pela E.C. n. 41/03 (previdência), estabelecendo critérios para a cobrança de contribuição de servidores dos Estados, D.F., Municípios, estando assim redigido:

§ 1º – “Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão contribuição, cobrada de seus servidores, para o custeio, em benefício destes, do regime previdenciário de que trata o art. 40, cuja alíquota não será inferior à da contribuição dos servidores titulares de cargos efetivos da União”.

O § 2º do art. 149, inciso II, alargou o espectro de incidência das contribuições sociais e as de intervenção do domínio econômico. Nenhuma delas ostenta perfil interventivo para regular setores descompassados na economia, mas sim apenas para tributar, intentando o aumento da arrecadação. São, pois, meros rótulos. Têm,  a norma, a seguinte dicção:

“As contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico de que trata o caput deste artigo: …. II. incidirão também sobre a importação de produtos estrangeiros ou serviços; …”.

O argumento de que objetivou equiparar os produtos importados ou serviços prestados no exterior aos que se produzem ou se prestam no Brasil, perde consistência, num país de juros elevados, pela antecipação de receita que implicará, no âmbito das contribuições não cumulativas, sobre representar considerável aumento, nas contribuições cumulativas.

Dispositivo a ser elogiado é o da letra “c” do artigo 150, com o discurso que se segue:

“Art. 150 Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

… c) antes de decorridos 90 dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea “b”.”

Acresce-se, pois, ao princípio da anterioridade o da denominada noventena. Assim, mesmo que promulgada em 31/12 uma lei contendo aumento ou instituição de tributo não excepcionado do princípio, só entrará em vigor em 31 de março – ou 30, se o ano for bissexto.

O § 1º do artigo 150 apresenta, todavia, “n” exceções, estando assim redigido:

A vedação do inc. III, “b”, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, IV e V; e 154, II, e a vedação do inc. III, “c”, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, III e V, e 154, II, nem à fixação da base de cálculo dos impostos previstos nos arts. 155, III, e 156, I”.

Por erro de promulgação, esqueceu o constituinte de acrescentar o inciso I, letra “b”, do § 4º do art. 177, assim redigido:

“A lei que instituir contribuição de intervenção no domínio econômico relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível deverá atender  aos seguintes requisitos:

I.     a alíquota da contribuição poderá ser: … b) reduzida e restabelecida por ato do Poder Executivo, não se lhe aplicando o disposto no art. 150, III, b”, que também introduz uma exceção à contribuição de intervenção no domínio econômico a que me refiro.

Como se percebe, há mais regras de exceção que regra geral, com o que, o instituto dá com uma mão e retira com a outra, o benefício outorgado.

O § 3º, inciso IV, do artigo 153 contém, por outro lado, novidade programática, sendo sua dicção a que se segue:

§ 3º – “O imposto previsto no inc. IV: … IV. terá reduzido seu impacto sobre a aquisição de bens de capital pelo contribuinte do imposto, na forma da lei”.

De rigor, dependerá de lei a redução do nível impositivo do IPI sobre a aquisição de bens de capital, como forma de incentivar a produção nacional de tais imprescindíveis bens para o desenvolvimento nacional, valendo, também, para as máquinas e equipamentos importados.

Espera-se que a lei seja rapidamente publicada. E será lei ordinária federal.

O § 4º, inciso III, introduz novidade, estando assim redigido:

“O imposto previsto no inc. VI do caput: … III. será fiscalizado e cobrado pelos Municípios que assim optarem, na forma da lei, desde que não implique redução do imposto ou qualquer outra forma de renúncia fiscal”.

O município com capacidade para arrecadar o tributo ficará com a receita do ITR, desde que não reduza a alíquota estabelecida por lei federal ou promova qualquer forma de renúncia fiscal.

A intenção é boa, pois permite que se utilize o tributo de forma nacional como instrumento de política agrária, mas também beneficia os municípios com capacidade de arrecadá-lo (que tenham, pois, máquina administrativa para tanto), que ficarão,  com o produto de sua arrecadação.

O artigo 155, § 2º, inc. X, letra “a”,  foi também alterado, tendo a seguinte dicção:

§ 2º- “O imposto previsto no inc. II atenderá ao seguinte: …  X – não incidirá: a) sobre operações que destinem mercadorias para o exterior, nem sobre serviços prestados a destinatários no exterior, assegurada a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores;”. A alteração tornou definitiva a “não exportação de tributos”, já contemplada na lei complementar n. 87/96, porém, de duvidoso significado, pois a título de regulamentar quais seriam os produtos semi-elaborados não sujeitos ao ICMS, declarou que não havia nenhum.

A alteração é, portanto, positiva.

A letra “d”, do mesmo inciso, foi introduzida como se segue:

d) “nas prestações de serviço de comunicação nas modalidades de radiodifusão sonora e de sons e imagens de recepção livre e gratuita”.

A norma é boa e atende à discussão que se trava sobre se seriam ou não, tais operações, tributadas. Corrije, e para melhor, a omissão anterior, ensejadora de dúvidas e discussões.

O § 6º, introduzido no artigo 155, acerca do imposto sobre a propriedade de veículos automotores (previsto no inciso III), está assim redigido:

“O imposto previsto no inciso III: I. terá alíquotas mínimas fixadas pelo Senado Federal; II. poderá ter alíquotas diferenciadas em função do tipo e utilização”.

A meu ver, também foi positiva a introdução, visto que tem por objetivo eliminar a guerra fiscal entre os Estados. A alíquota mínima fixada pelo Senado, evita que os veículos de um Estado sejam licenciados em outro, por força de alíquota menor.

Elemento positivo da reforma

O artigo 195, inciso IV introduziu nova forma de tributação, para as contribuições sociais, a saber:

Art. 195- “A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: … IV. do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar”.

Já comentei o dispositivo anteriormente. Quando a contribuição for cumulativa, representa efetiva elevação da carga tributária. Foi editada, para torná-la exigível, a MP 164/03 . O § 12º, do respectivo artigo, tem a seguinte redação:

“A lei definirá os setores de atividade econômica  para os quais as contribuições incidentes na forma dos incisos I, “b”; e IV do caput, serão não-cumulativas”.

Abre, pois, a faculdade de serem as contribuições não cumulativas. Na redação que foi veiculada (mera faculdade), o § 12º é despiciendo. Se não existisse, nem por isto seria proibida a adoção da não-cumulatividade para as contribuições. O próprio governo já – antes da promulgação da referida emenda – veiculara a MP 135/03, introduzindo a não-cumulatividade – a meu ver inconstitucional por outros motivos (inconstitucionalidades formais e materiais) e não por este (introdução da não-cumulatividade para a Cofins).

E, por fim, o ato complementar das disposições transitórias –a Constituição Brasileira, com 48 emendas, é a mais transitória que conheço, razão pela qual a considero uma Constituição provisória – foi acrescido de 5 novos artigos (89 a 94), quatro, assim redigidos, dedicados ao sistema tributário:

Art. 90 – “O prazo previsto no caput do art. 84 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias fica prorrogado até 31/12/2007.
§ 1°- Fica prorrogada, atéa data referida no caput desteartigo, a vigência da Lei 9.311, de 24/10/96, e suas alterações. § 2° – Até a data referida no caput deste artigo, a alíquota da contribuição de que trata o art. 84 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitárias será de trinta e oito centésimos por cento. Art. 91 – A União entregará aos Estados e ao Distrito Federal o montante definido em lei complementar, de acordo com critérios, prazos e condições nela determinados, podendo considerar as exportações para o exterior de produtos primários e semi-elaborados, a relação entre as exportações e as importações, os créditos decorrentes de aquisições destinadas ao ativo permanente e a efetiva manutenção e aproveitamento do crédito do imposto a que se refere o art. 155, 2°, X, “a”.

1° – Do montante de recursos que cabe a cada Estado, setenta e cinco por cento pertencem ao próprio Estado, e vinte e cinco porcento, aos seus Municípios, distribuídos segundo os critérios a que se refere o art. 158, parágrafo único, da Constituição.
§ 2°- A entrega de recursos prevista neste artigo perdurará, conforme definido em lei complementar, até que o imposto aque se refereo art. 155,11, tenha o produto de sua arrecadação destinado predominantemente, em proporção não inferior a oitenta por cento, ao Estado onde ocorrer o consumo das mercadorias, bens ou serviços.

§ 3º- Enquanto não for editada a lei complementar de que trata o caput, em substituição ao sistema de entrega de recursos nele previsto, permanecerá vigente o sistema de entrega de recursos previsto no art. 31 e Anexo da Lei Complementar 87, de 13/09/96, com a redação dada pela Lei Complementar 115, de 26/12/2002.

§ 4° – Os Estados e o Distrito Federal deverão apresentar á União, nos termos das instruções baixadas pelo Ministério da Fazenda, as informações relativas ao imposto de que trata o art. 155, II, declaradas pelos contribuintes que realizarem operações ou prestações com destino ao exterior.

Art. 92 – São acrescidos dez anos ao prazo fixado no art. 40 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitárias.

Art 93 – A vigência do disposto no art. 159, III, e 40, iniciará somente após a edição da lei de que trata o referido inciso III. Art. 94- Os regimes especiais de tributação para microempresas e empresas de pequeno porte próprios da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cessarão a partir da entrada em vigor do regime previsto no art. 146, III, “d”, da Constituição”.

Prorroga-se, por tais disposições, a CPMF e a desvinculação da receita da União; garante-se aos Estados compensações pela perda da incidência do ICMS nas exportações imunes dos semi-elaborados, cabendo aos Municípios parte desta compensação (25%); admite-se que, um dia, adotar-se-á o polêmico regime de destino, admitindo-se que até lá continue prevalecendo o sistema atual; aumentam-se as exigências burocráticas para as exportações, acrescentando às existentes, aquelas que os Estados irão obter junto aos contribuintes para informar a União, na busca de maior partilha; prorroga-se por 10 anos o artigo 40 de incentivos à Zona Franca (irá até 2023); condiciona-se à emissão de lei o repasse da contribuição de intervenção no domínio econômico para Estados e Municípios no percentual de 25%; e declara-se o esgotamento de toda a legislação que hoje beneficia às empresas de pequeno porte, tão logo editada a Lei Complementar a que se refere o artigo 146, inciso III, letra “d”, já comentado anteriormente.

De rigor, a reforma tributária foi pífia. Pequenos remendos, o sempre previsível aumento de carga tributária, quando se fala em reforma tributária, e a permanência de quase todos os grandes problemas que, desde 1988, prejudicam a vida dos contribuintes.

Os artigos comentados, que propiciam o aumento da Cofins, CIDE e outras incidências –por um espectro mais lato de imposição instituído— certamente trarão, para o futuro, mais complicações na vida dos contribuintes e, certamente, maior carga, para amarrar o desenvolvimento nacional, que já hoje não permite que o Brasil evolua,  patinando em nível de desenvolvimento, enquanto os outros países emergentes crescem.

Não sem razão, graças à permanente contribuição de pioria que a reforma tributária vem representando, até aqui, o Brasil caiu de 8ª. economia do mundo –obtido nos tempos do regime autoritário– para 15ª em 2003, prevendo-se, em face do excesso de burocracia, do excesso de tributos e dos excessivos juros, que dias piores virão.