Prescrição das ações indenizatórias contra o poder público e o código civil de 2002

31 de outubro de 2009

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I – Introdução

Definir o conceito de prescrição sempre foi um dos maiores dilemas do operador do Direito, em razão das diversas variantes que o instituto apresenta.

Todavia, pode-se dizer que existia quase um consenso na doutrina no sentido de que a prescrição (extintiva) tinha o condão de fulminar o direito de ação pelo decurso do prazo previsto em lei, e, por isso, opunha-se ao instituto da decadência, na medida em que este fulminava não o direito de ação, mas sim o próprio direito material.[1]

AGNELO AMORIM FILHO[2], porém, nos idos de 1961, desenvolveu estudo para estabelecer um critério científico para distinguir efetivamente os institutos da prescrição e da decadência, concluindo que a prescrição não afeta o direito de ação, mas sim a pretensão a que corresponde; de outro lado, a decadência fulmina o direito potestativo.

Após a entrada em vigor do atual Código Civil dissiparam-se, de certa maneira, as divergências conceituais sobre o instituto da prescrição, na medida em que o artigo 189 textualmente alinhou-o à noção de pretensão[3]. Por esta razão, pode-se afirmar que a prescrição extintiva é a perda não do direito de ação, mas sim da pretensão que o titular detém a partir dele, em virtude de sua inércia.

Nota-se, com isso, que a prescrição é um instituto intimamente ligado ao Direito Privado, notadamente ao Direito Civil, propondo-se a regular regras de estabilização das relações jurídicas a partir do estabelecimento de prazos para que os titulares exerçam a faculdade de exigir suas pretensões.

Nada obstante, as noções teóricas do instituto devem ser aplicadas não só às relações jurídicas oriundas do Direito Privado, mas também àquelas que, porventura, recebam o influxo de regras de Direito Público. Neste caso, em razão da taxonomia do Direito Administrativo, deve ser aplicada às relações jurídicas administrativas a essência do instituto da prescrição, cunhada pelo Direito Privado, mas com as vicissitudes do Direito Público, mormente à luz de critérios interpretativos que bem esclareçam a razão e os ideários da edição das normas jurídicas que pretendem e que pretenderam regular a prescrição das ações indenizatórias contra a Fazenda Pública.

De posse destas observações sobre o instituto da prescrição, passa-se efetivamente à análise do tema proposto neste ensaio.

II- Prescrição das ações indenizatórias contra o Poder Público e o Código Civil de 2002

Até a vigência do atual Código Civil era lugar comum falar-se que as ações indenizatórias a serem ajuizadas em face das pessoas jurídicas de Direito Público prescreviam em cinco anos, ante o disposto no artigo 1o do Dec. no 20.910/32. Tal vetusto Decreto sempre foi equivocadamente utilizado como a principal norma para regular a prescrição das ações indenizatórias contra o Poder Público.

Isto porque a prescrição das pretensões indenizatórias contra o Poder Público era objeto de regulação em data muito anterior à vigência do Dec. 20.910/32, eis que o revogado Código Civil de 1916, mais especificamente no artigo 178, § 10o, inciso VI, estabelecia, textualmente, que a prescrição das pretensões pessoais (e assim soem ser as indenizatórias) contra a Fazenda Pública ocorria em cinco anos.

Quer-se dizer com isto que, desde 1916, já se tinha no ordenamento jurídico brasileiro norma-regra genérica que preceituava ser de cinco anos a prescrição das pretensões indenizatórias contra a Fazenda Pública.

Nada obstante o acima exposto, doutrina e jurisprudência, ao se referirem à prescrição das ações indenizatórias contra a Fazenda Pública, quase sempre se reportavam aos ditames do Dec. 20.910/32, olvidando o que dispunha o Código Civil de 1916.

A pergunta que sugestiona o título deste estudo busca saber se houve alteração do prazo prescricional das ações indenizatórias após a vigência do atual Código Civil.

Sustentar-se-á neste trabalho que sim. Isto porque, nada obstante o novo Código Civil não ter trazido grandes inovações quanto ao regime de responsabilização civil das pessoas jurídicas de Direito Público — eis que repete no artigo 43, quase que integralmente, a regra prevista no artigo 37, § 6o da Constituição da República de 1988 —, inovou no estabelecimento do prazo de prescrição para que as pretensões indenizatórias sejam objetos de ações indenizatórias em face do Poder Público.

O artigo 206 do Código Civil de 2002, no § 3o, inciso V, estabelece que prescreve em (3) três anos o prazo para “pretensão de reparação civil”. Digno notar que a referida norma não traz qualquer distinção a respeito das pessoas que devem compor o polo passivo ou que estariam excluídas de sua aplicação, o que certamente permite concluir, prima facie, que as pessoas jurídicas de Direito Público estão aí inseridas.

Contra-argumento que poderia ser levantado em oposição à tese acima sustentada é o de que o artigo 1o, do Decreto 20.910/32, e o artigo 1o-C, da Lei Federal no 9.494/97, não teriam sido derrogados pelo artigo 206, § 3o, do Código Civil de 2002, por se apresentarem como regra normativa específica frente à norma do artigo 206, § 3º, Código Civil de 2002, que se apresenta no cenário jurídico como norma jurídica genérica. Aplicar-se-ia, segundo este argumento, o jargão jurídico de que norma geral não derroga norma especial. Apesar de sedutora, parece ser equivocada a adoção de tal entendimento.

Em primeiro lugar porque não é absoluto o método interpretativo segundo o qual norma geral não pode derrogar regra especial. É perfeitamente possível que isto aconteça quando as interpretações dos momentos históricos em que as normas jurídicas foram produzidas autorizarem e até indicarem este resultado interpretativo. Mais: será possível a norma geral derrogar a norma especial quando a sua permanência frustrar o instituto objeto da regulação jurídica (no caso a prescrição) e fomentar a injustiça.

E, se assim é, mostra-se perfeitamente possível sustentar a revogação do artigo 178, § 10o, VI, do Código Civil de 1916, bem como (parcialmente) os artigos 1o do Decreto nº 20.910/32 e 1o-C da Lei Federal no 9.494/97, que estabelecem o prazo de 5 (cinco) anos para a prescrição das pretensões pessoais (indenizatórias) em face das pessoas jurídicas de Direito Público. Esclareça-se, porque é importante, que as demais pretensões pessoais contra a Fazenda Pública (ex. anulação de um ato administrativo) continuarão a ser reguladas pela legislação antes mencionada, o que importa concluir que poderão ser intentadas no prazo de até cinco anos contados da ciência da “lesão”.

Digno reiterar que a prescrição quinquenal de todas as demandas pessoais — e assim se mostram as indenizatórias —, em face das pessoas jurídicas de Direito Público, já estava prevista no artigo 178, § 10o, VI, do Código Civil de 1916, situação que afasta a especialidade do Dec. 20.910/32 e da Lei Federal nº 9.494/97 (que apenas repetiram uma regra jurídica prevista em lei geral, o Código Civil de 1916), e faz aplicar, tranquilamente, o critério interpretativo para evitar antinomia de normas segundo o qual a norma posterior revoga a norma anterior, de igual hierarquia, quando dispuser em sentido contrário.

Para que o Decreto no 20.910/32 e a Lei Federal no 9.494/97, especificamente no que diz respeito ao estabelecimento do prazo prescricional das pretensões indenizatórias contra a Fazenda Pública, sejam considerados normas especiais deviam sê-las, igualmente, tendo como parâmetro a norma jurídica genérica (Código Civil de 1916) que vigia quando de suas edições. Ora,  se assim for analisada a questão jurídica, ver-se-á que o Decreto no 20.910/32 e a Lei Federal no 9.494/97 jamais pretenderam ser normas especiais frente à norma geral que vigia quando foram editadas, uma vez que estabeleciam exatamente o mesmo prazo de cinco anos para prescrição das ações indenizatórias contra o Poder Público, já contida no citado artigo 178, § 10o, inciso VI do Código Civil de 1916.

Por isso é que se sustenta que o artigo 206, § 3º, do Código Civil de 2002 dispôs em sentido contrário à redação contida no artigo 178, § 10o, VI, do Código Civil de 1916, reduzindo de 5 (cinco) para 3 (três) anos o prazo de prescrição das pretensões  indenizatórias em face da Fazenda Pública, permitindo a aplicação do brocardo jurídico que determina a revogação de uma norma geral por outra norma geral de igual hierarquia.

Por outro lado, caso não fosse o argumento acima desenvolvido suficiente para fazer a regra inserta no artigo 206, § 3o, do Código Civil de 2002 ser aplicável às demandas indenizatórias contra a Fazenda Pública, cabe enaltecer a necessidade de se proceder à interpretação histórica dos comandos legislativos envolvidos, mais especificamente aqueles previstos nos artigos 177, 178, § 10o, VI do CC de 1916 e 1o do Dec. nº 20.910/32 e artigo 1o da Lei Federal no 9.494/97.

Quando os dispositivos legais acima mencionados foram promulgados apresentavam a nítida missão de reafirmar a prescrição quinquenal das pretensões indenizatórias em face do Poder Público, bem assim de dispensar tratamento diferenciado para a Fazenda Pública em relação à regra prevista no artigo 177 do Código Civil de 1916, que estabelecia o prazo de 20 (anos) para o ajuizamento das demandas cujo objeto fosse a reparação civil. O objetivo da Lei Federal no 9.494/97 e do Decreto no 20.910/32 era, nitidamente, beneficiar a Fazenda Pública, não podendo, por isso, permanecer em vigor diante de nova norma geral mais benéfica, trazida ao ordenamento jurídico pelo artigo 206, § 3o, do Código Civil de 2002.

Ganhou fôlego o argumento acima utilizado com o fato de o Código Civil de 2002 ter confirmado a máxima legislativa de diminuição dos prazos prescricionais para todas as pretensões, sobretudo as indenizatórias.

Por sua relevância e importância, traz-se à colação último argumento fundamental à tese da NÃO subsistência da prescrição quinquenal das pretensões indenizatórias contra a Fazenda Pública, notadamente o fato de o próprio Decreto
no 20.910/32 (que poderia ser invocado como regra especial frente ao Código Civil, conforme acima se mencionou), no artigo 10o,[4] estabelecer que, em caso de conflito de normas relativas à prescrição, deverá prevalecer aquela que estabelecer o menor prazo prescricional em favor da Fazenda Pública.

Importante registrar que o Superior Tribunal de Justiça tem firmado o seu entendimento nos exatos termos aqui sustentados, conforme é possível concluir do aresto abaixo:

RESPONSABILIDADE. ESTADO. PRESCRIÇÃO.

Trata-se, na origem, de ação indenizatória lastreada na responsabilidade civil proposta contra o Estado por viúvo e filhos de vítima fatal de disparo supostamente efetuado por policial militar durante incursão em determinada área urbana. Assim, a questão cinge-se em saber se, após o advento do CC/2002, o prazo prescricional para o ajuizamento de ações indenizatórias contra a Fazenda Pública foi reduzido para três anos, como defende o recorrente com suporte no art. 206, § 3o, V, do mencionado código, ou permanece em cinco anos, conforme a norma do art. 1o do Dec. n. 20.910/1932. Isso posto, a Turma deu provimento ao recurso para o argumento de que o legislador estatuiu a prescrição de cinco anos em benefício do Fisco e, com o manifesto objetivo de favorecer ainda mais os entes públicos, estipulou que, no caso de eventual existência de prazo prescricional menor a incidir em situações específicas, o prazo quinquenal seria afastado nesse particular (art. 10o do Dec. n. 20.910/1932). O prazo prescricional de três anos relativo à pretensão de reparação civil (art. 206, § 3o, V, do CC/2002) prevalece sobre o quinquênio previsto no art. 1o do referido decreto. (REsp 1.137.354-RJ, Rel. Min. Castro Meira, julgado em 8/9/2009)[5].

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por igual, também tem se posicionado no mesmo sentido do que se sustenta neste trabalho[6]. Confira-se:

“RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE FERROVIÁRIO. CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA, QUE TERIA ATRAVESSADO A LINHA FÉRREA EM PASSAGEM CLANDESTINA. ROMPI­MENTO DO NEXO CAUSAL. INAPLICABILIDADE DO CDC AO CASO, EIS QUE A VÍTIMA NÃO SE ENQUADRA NO CONCEITO DE CONSUMIDOR, SEQUER POR EQUIPARAÇÃO. PRESCRIÇÃO. PRAZO PRESCRICIONAL REGIDO PELO ART. 206, § 3o, V, DO CÓDIGO CIVIL. O PRAZO PRESCRICIONAL PREVISTO NO ART. 1-C DA LEI No 9494/97 FOI INSTITUÍDO COMO PRERROGATIVA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, QUANDO O PRAZO PRESCRICIONAL COMUM ERA DE VINTE ANOS. ASSIM, QUIS O LEGISLADOR QUE AS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PÚBLICO E AQUELAS DELEGATÁRIAS DE SERVIÇOS PÚBLICOS SE BENEFICIASSEM COM MENOR PRAZO PRESCRICIONAL. NÃO SE VISLUMBRAM, POR ISSO, RAZÕES PARA SE APLICAR A LEI INVOCADA PELO APELANTE, JÁ AGORA QUANDO O CÓDIGO CIVIL VEIO ESTABELECER MENOR PRAZO PRESCRICIONAL. RECURSO DESPROVIDO”. (Apelação Cível: 2009.001.12295. Apelante: Marco Aurélio de Souza Silva e Outro. Apelados: Supervia Concessionária de Transporte Ferroviário S.A. Vara de Origem: 28a Vara Cível da Comarca da Capital. Relatora: Desª. Luisa Cristina Bottrel Souza).[7]

Em razão do acima exposto, conclui-se que, como regra, o prazo prescricional das pretensões indenizatórias contra a Fazenda Pública é de três anos, na medida em que o artigo 206, § 3o, V, do Código Civil de 2002 derrogou parcialmente o prazo prescricional de cinco anos previsto no artigo 178, § 10º,VI do Código Civil de 1916, no artigo 1o do Dec. no 20.910/32 e no artigo 1o da Lei Federal no 9.494/97[8].


[1] Confira-se, por todos, Silvio Rodrigues. “Direito Civil – Parte Geral”. São Paulo: Saraiva, 2003. vol. 1. p. 324-325.

[2] Apresenta o referido autor as seguintes conclusões: “1o) Estão sujeitas à prescrição (indiretamente, isto é, em virtude da prescrição da pretensão a que correspondem): todas as ações condenatórias, e somente elas (arts. 177 e 178 do Cód. Civil); 2o) Estão sujeitas à decadência (indiretamente, isto é, em virtude da decadência do direito potestativo a que correspondem): as ações constitutivas que têm prazo especial de exercício fixado em lei; 3o) São perpétuas (imprescritíveis): a) as ações constitutivas que não têm prazo especial de exercício fixado em lei; e b) todas as ações declaratórias”. Grifos do original. AMORIM FILHO, Agnelo. “Critério Científico para Distinguir a Prescrição da Decadência e para Identificar as Ações Imprescritíveis”. In. “Revista de Direito Processual Civil”, ano II, vol. 3. Rio de Janeiro: Saraiva, Jan. a Jun. de 1961, p. 95-132.

[3] Pretensão, segundo a definição do Desembargador Federal André Fontes, “é o poder de exigir alguma prestação, pois em virtude do seu reconhecimento pela ordem jurídica é que se atribui ao sujeito a proteção para fazer atuar o seu direito subjetivo, cabendo ao termo poder a característica de ser conveniente mais amplo e compreensivo, além de ser diretamente utilizável no elemento conceitual. Dizendo-o mais sucintamente, e reportando-nos ainda à noção do legislador germânico, podemos assim definir: pretensão é o poder de exigir um comportamento.” In “A Pretensão como situação jurídica subjetiva”. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 10-11. Grifos do original.

[4] “Art. 10o – O disposto nos artigos anteriores não altera as prescrições de menor prazo, constantes, das leis e regulamentos, as quais ficam subordinadas às mesmas regras”.

[5] No mesmo sentido: REsp 1066063/RS e REsp 982811/RR

[6] Em verdade, temos sustentado a tese posta neste trabalho desde o ano de 2004, quando concluímos o curso de Mestrado na Universidade Candido Mendes, bem assim após a publicação da obra “Responsabilidade Civil das Agências Reguladoras”. Ed. Lúmen Júris, 2005.

[7] No mesmo sentido: Apelação cível no 2007.001.57337

[8] No mesmo sentido apresentam-se as doutrinas de José dos Santos Carvalho Filho, In “Manual de Direito Administrativo”. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 451, e de Carlos Roberto Gonçalves, In “Responsabilidade Civil”. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 190