Paridade de gênero no Poder Judiciário: rumo à mudança constitucional

1 de março de 2025

Luciana Paula Conforti Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra)

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No dia 17 de dezembro de 2024, a senadora Ana Paula Lobato (PDT-MA) apresentou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) no 52/2024, que concretiza política pública instaurada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para o necessário alcance de paridade de gênero no Poder Judiciário.

A proposta objetiva alterar a Constituição para garantir que mulheres e homens tenham oportunidades mais equânimes de acesso ao segundo grau de jurisdição. A regra prevê que, enquanto os tribunais não alcançarem 40% das vagas ocupadas por mulheres, as promoções por merecimento devem seguir a alternância das listas, compostas por homens e mulheres (mistas) e apenas por mulheres (exclusiva). 

Entre as justificativas da proposta, destaca-se a promoção de uma participação mais justa e equilibrada no sistema de justiça e maior equidade entre mulheres e homens nos cargos com poder de decisão, tornando os tribunais mais representativos da sociedade. A proposta de emenda constitucional está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal, no aguardo da designação de relator. 

A modificação constitucional apresentada foi inspirada na Resolução CNJ no 525/2023, que alterou a Resolução CNJ no 106/2010 (sobre os critérios objetivos para aferição do merecimento para promoção e acesso aos tribunais de segundo grau), para dispor sobre ação afirmativa de gênero, objetivando fomentar o acesso das magistradas aos tribunais de segundo grau. Com a alteração, foi incluído o artigo 1-A à Resolução CNJ no 106, com a seguinte redação: “Art. 1o-A No acesso aos tribunais de 2o grau que não alcançaram, no tangente aos cargos destinados a pessoas oriundas da carreira da magistratura, a proporção de 40% a 60% por gênero, as vagas pelo critério de merecimento serão preenchidas por intermédio de editais abertos de forma alternada para o recebimento de inscrições mistas, para homens e mulheres, ou exclusivas de mulheres, observadas as políticas de cotas instituídas por este Conselho, até o atingimento de paridade de gênero no respectivo tribunal”.

Entre as justificativas da Resolução no 525/2023, constou que “a igualdade é um pressuposto fundamental da democracia” e que “a sociedade democrática jamais poderá ignorar as capacidades, os saberes, a experiência e a criatividade das mulheres”. Também foi pontuado que “as desigualdades existentes entre homens e mulheres no mundo dos fatos são resultados de construções sociais, estereótipos de gênero e de papéis sociais diferenciados que há séculos sobrecarregam as mulheres e as impedem de exercer sua plena cidadania”.

A política pública instituída pelo Conselho Nacional de Justiça, assim como outras, já produziu efeitos, podendo-se ser citados os exemplos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o primeiro a promover magistrada pelo critério da Resolução CNJ no 525/2023, em abril de 2024, e o Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, que promoveu duas magistradas pelo mesmo critério, em novembro do mesmo ano. 

Em que pese os efeitos concretos citados, não se pode negar o imenso simbolismo que a alteração constitucional poderá representar. 

A própria assembleia constituinte teve incentivos para a maior participação feminina. A partir da criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), pela Lei no 7.353, de 29 de agosto de 1985, composto por mulheres como Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez e Ruth Escobar, entre outras, houve a idealização da campanha “Mulher e Constituinte”, tendo como slogans “Constituinte sem mulher fica pela metade” e “Constituinte para valer tem que ter palavra de mulher”, lançada em novembro de 1985, no Ministério da Justiça, com o objetivo de ampliar a participação de mulheres no Congresso Constituinte. Existiu grande mobilização em torno da campanha, com palestras, encontros, seminários, exibições na televisão, o que culminou com o Encontro Nacional, realizado em agosto de 1986, e com a divulgação da Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes, que marcou o lançamento da segunda fase da campanha “Constituinte pra valer tem que ter direitos da mulher”. O resultado, à época, foi imediato. Nas eleições de 1986, a bancada feminina mais que triplicou, passando de oito para 26 deputadas federais constituintes, em um total de 559 parlamentares eleitos. Embora o resultado possa parecer inexpressivo, é importante relembrar o contexto histórico em que esteve inserido: no período da redemocratização, em uma sociedade brasileira patriarcal, misógina e racista. O movimento das mulheres, liderado por 26 parlamentares constituintes, entre elas Benedita da Silva, pouco mais de cinco décadas após a conquista do voto feminino (1932), ficou conhecido como “Lobby do Batom” e foi considerado um dos maiores grupos organizados da sociedade civil, associando a democracia representativa — bancada feminista e a democracia participativa — a movimentos feministas. A atuação coletiva, com articulação política e engajamento, pressionou a participação das mulheres nas discussões constituintes, o que resultou no acolhimento de 80% das reivindicações constantes da Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes e na conquista do direito à igualdade entre sexos, assegurada no artigo 5o da Constituição. 

Referida disposição constitucional trouxe luzes para a superação das assimetrias, dos preconceitos, das limitações ou das distorções, em razão dos traços marcantes da sociedade, de subjugação, exclusão, dominação, precarização e violência contra as mulheres.

Sobre o tema, destaca-se o constitucionalismo feminista, que propõe a leitura e a aplicação constitucional com perspectiva de gênero no reconhecimento de direitos. Como apontam Cristiane Peter e Carolina Freitas Gomide sobre o constitucionalismo feminista: “Trata-se, portanto, de um olhar do constitucionalismo inclusivo, ou seja, de um modo de lidar com os problemas jurídico-constitucionais a partir de visão plural, aberta e tolerante, a qual tem, como vetor axiológico, a igualdade de todas e todos, como respeito às diferenças”.

Assim, reforça-se o simbolismo da alteração constitucional que propõe paridade de gênero nos Tribunais do país. No relatório da Participação Feminina na Magistratura 2023 (ano-base 2022), produzido pelo CNJ, o percentual de magistradas apresentou queda, de 38,8% para 38%, com expressiva diminuição nos postos mais altos da carreira, de 25,7% de desembargadoras, em 2019, para 25%. 

Apesar dos notáveis avanços da Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário, a discussão sobre o direito à igualdade como dever de não discriminação deve permear todos os espaços públicos e privados, daí porque o compromisso constitucional torna-se necessário. A paridade de gênero nos vários segmentos e esferas é essencial para que se assegure maior representatividade e espaços mais democráticos e plurais.

A Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário alinha-
se com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 5 da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU): alcançar a igualdade de gênero e empoderar mulheres e meninas. Referida norma destaca os efeitos multiplicadores que a participação das mulheres tem na política, na economia e em diversas áreas sobre o desenvolvimento sustentável e a importância da garantia de participação plena e efetiva das mulheres, em posições de destaque e em igualdade de condições com os homens, para decidir os rumos das instituições públicas.

Nesse quadro, necessário o incentivo para a maior participação feminina nos espaços de poder e a adoção das lentes de gênero, para a superação de estereótipos e de vieses tradicionais de gênero e raça, relações assimétricas de poder, o machismo estrutural e organizacional, o patriarcado, enfim, refazer os caminhos para o reconhecimento da igualdade material, como dever de não discriminação, imposto não só pela Constituição de 1988, como também pela Convenção Americana de Direitos Humanos e por outros diplomas internacionais, para que as normas não gerem efeitos desproporcionais sobre determinados grupos. 

Muito além de tema que poderia apenas representar o interesse das mulheres ou ser restrito à discussão no Sistema de Justiça, a promoção da igualdade de gênero deve ser vista e assumida como um compromisso de toda a sociedade. Por tal motivo, destaca-se a relevância da PEC no 52/2024, com a esperança de que seja aprovada. Afinal, seguindo o exemplo da campanha das mulheres durante a assembleia constituinte, “Judiciário sem mulher no segundo grau fica pela metade”. 

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