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Os mecanismos de pré-insolvência na reforma do sistema recuperacional brasileiro

8 de março de 2021

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O sistema brasileiro de insolvência passou por uma importante reforma, que trará benefícios que serão colhidos no futuro. A linha basilar de estruturação das inovações legislativas operadas pela Lei nº 14.112/2020 pautou-se no equilíbrio entre os interesses de credores e devedores e o interesse da coletividade.

O regime brasileiro de insolvência direciona-se para ser palco do balanceamento constante entre o interesse coletivo e social de um lado, e, do outro, o interesse dos credores e devedores, sopesados em um ambiente de eficiência econômica. Três premissas devem orientar esta prática: a busca pelo soerguimento da empresa viável; a liquidação célere da empresa inviável com a maximização do valor dos ativos e a ponderação entre os interesses do devedor e de seus credores com o interesse social.

A pandemia de covid-19 causou grande impacto no funcionamento das empresas brasileiras, resultando em prejuízos significativos em suas atividades. Como vem alertando o Ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, o Judiciário precisa de ferramentas para enfrentar a realidade econômica após a pandemia.

A falta de estrutura judicial apta a absorver a quantidade de demandas ligadas aos pedidos de recuperação judicial e falência, que estão por vir, ocasiona o receio de um colapso no sistema judicial, quando se considera que este já atua próximo do seu limite.

Para vencer esse desafio da atualidade fundamental socorrer-se dos mecanismos extrajudiciais de solução ou mitigação de conflitos, como é o caso da conciliação e da mediação. É nesse contexto que o legislador entendeu por bem inserir a Seção II- A no texto reformado da Lei de Falências e Recuperação Judicial (Lei nº 11.101/2005), restando expressamente prevista a possibilidade da utilização da conciliação e da mediação em procedimentos de insolvência.

O Conselho Nacional de Justiça, em sua Recomendação CNJ 58, de 22/10/2019, já vinha orientando que os magistrados responsáveis pelo processamento e julgamento dos processos de recuperação empresarial e falências, de varas especializadas ou não, promovessem, sempre que possível, o uso da mediação. E o Enunciado 45, aprovado na I Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, promovida pelo Conselho da Justiça Federal, pacificou o entendimento de que “a mediação e conciliação são compatíveis com a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, bem como em casos de superendividamento, observadas as restrições legais”.

A ampliação dos meios convencionais de solução de controvérsias, diversos da atuação jurisdicional, se alinha à perspectiva do sistema multiportas (multi door courthouse system). A ideia geral da denominada “Justiça Multiportas”, conceito apresentado pelo Professor Frank Sander (Harvard Law School), é a de que a atividade jurisdicional estatal não é a única opção das partes para colocarem fim ao litígio, existindo outras possibilidades de pacificação social. É como se existisse uma multiplicidade de portas, a depender do problema apresentado as partes seriam encaminhadas para a porta da mediação; ou da conciliação; ou da arbitragem; ou da própria justiça estatal.

Nesse cenário, importante mencionar a publicação do estudo denominado “Global Guide”, liderado pelo Banco Mundial e pela INSOL International. Neste buscou-se descrever medidas legislativas adotadas pelos países estudados para o enfrentamento da crise ocasionada pelo coronavírus em suporte aos negócios que passavam por dificuldade. Restou confirmado que a imensa maioria dos países optou pela flexibilização da sua legislação de insolvência.

Dentre as principais medidas está a implementação de mecanismos de pré-insolvência e de negociação, ao lado da adoção de suspensão temporária de procedimentos ou de atos executivos, possibilitando a existência de um espaço de negociação (breathing space) entre a devedora e seus credores.

O sistema de pré-insolvência inaugurado textualmente pela reforma da Lei de Falências e Recuperação Judicial traz incentivos para que empresas devedoras adotem mecanismos extrajudiciais para a renegociação coletiva de suas dívidas com mínima intervenção judicial.

Como bem ponderam Daniel Cárnio Costa e Ricardo Villas Bôas, a utilização da mediação e da conciliação preventivas necessitam da criação de estímulos para que sejam eficazes e adequadas:

“Os credores somente se sentarão à mesa para negociar se não puderem prosseguir nas suas execuções individuais. Por outro lado, a devedora somente terá condições de propor um acordo aos seus credores se tiver um espaço de respiro e uma proteção contra os ataques patrimoniais provenientes de ações individuais. Da mesma forma, um credor somente se sentirá seguro para negociar se houver uma proteção ao acordo entabulado, evitando-se que seja prejudicado pelo uso sucessivo de um processo de insolvência”. (CUEVA; COSTA. 2020)

De igual modo, foi incorporado ao sistema falimentar reformado a previsão de uma tutela cautelar de urgência (§ 1º, do art. 20-B) que permite a suspensão dos processos de execução iniciados contra a devedora pelo prazo de 60 dias, para a tentativa de composição com os credores, em procedimento de mediação ou conciliação já instaurado perante o Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) do Tribunal competente ou câmara especializada.

Por meio de decisão judicial cautelar a devedora passa a ter a proteção típica do stay period concedido em sede de recuperação judicial. Trata-se de mecanismo inovador, que contempla a criação de um breathing space, indispensável à efetividade de uma negociação coletiva.

Pondere-se que o período de respiro deve ser longo o suficiente para permitir a reestruturação a ser negociada e implementada, mas não mais do que isso. Caminha bem o legislador, e em sintonia com as regulamentações internacionais, quando limita o prolongamento do instituto ao prazo de 60 dias.

Ademais, com a finalidade de evitar o seu uso de forma predatório, apenas para permitir o prolongamento da proteção do stay contra os credores, a reforma faz previsão de que a proteção antecipada à devedora durante as negociações será deduzida do prazo de stay típico, na eventualidade de posterior pedido de recuperação judicial ou extrajudicial (§3º do art. 20-B).

Como forma de proteção aos credores, o parágrafo único do art. 22-C estabelece que se vier a ser requerida a recuperação judicial ou extrajudicial em até 360 dias contados do acordo firmado, o credor terá reconstituído o seu direito conforme as condições originalmente contratadas. Por outro lado, para que não seja prejudicado o devedor, há previsão de dedução dos valores eventualmente pagos e de ressalva dos atos validamente praticados em sede de conciliação ou mediação.

Esses mecanismos de pré-insolvência incorporados pela nova legislação não representam apenas uma inovação no procedimento de insolvência brasileiro. Na verdade, eles refletem uma prática que vem sendo adotada em diversos países, sendo fruto de estudos prévios e da evolução histórica.

Uma série de jurisdições introduziram reformas em seus regimes de reestruturação de dívidas nos últimos anos, muitas vezes com base no procedimento do Chapter 11 do United States Bankruptcy Code, considerado como o “padrão de ouro” dos mecanismos de reestruturação.

A inclusão de uma moratória de reestruturação é uma característica consistente dessas reformas. Como exemplo, a recente Diretiva de Reestruturação da União Europeia (Diretiva 2019/1023) em que a suspensão das ações contra o devedor representa uma parte fundamental do regime e, ainda, a moratória de reestruturação do Reino Unido, introduzida pelo Corporate Insolvency and Governance Act 2020.

A necessidade de alguma forma de restrição à ação do credor durante uma reestruturação é geralmente reconhecida como um aspecto central desse processo. A justificativa para a suspensão dos processos executivos por um período delimitado pauta-se no bem comum, considerando o ganho econômico quando se possibilita o soerguimento de uma empresa em crise, porém economicamente viável.

Sendo certo que a tutela de urgência cautelar (art. 20-B, §1º) envolve uma restrição significativa aos direitos legais dos credores, ela pode ser justificada quando a imposição é considerada benéfica para os credores como um todo, a fim de resgatar um negócio viável (apesar de financeiramente problemático).

Jennifer Payne, professora de Financial Law da Universidade de Oxford, ao abordar o tema em artigo intitulado “An Assessment of the UK Restructuring Moratorium”, pondera que a moratória pode lidar com o problema dos “anti-comuns”, ou seja, pode bloquear ações de credores individuais que procuram frustrar os desejos da maioria.

Segundo visão da autora:

“A suspensão da ação do credor pode, portanto, promover a sobrevivência da empresa, ou de seus negócios, maximizando o retorno para credores, e beneficiando outras partes interessadas, como funcionários, que dependem da continuidade operação do negócio. No entanto, esses benefícios ocorrem em detrimento da autonomia das partes uma vez que os credores minoritários ficam então impedidos de exercer suas obrigações contratuais e outras direitos. É necessário, portanto, um equilíbrio entre os benefícios para a empresa e os credores/ partes interessadas como um todo, por um lado, e os direitos dos credores individuais, por outro”. (PAYNE, 2020 – tradução livre.)

O cenário exposto permite afirmar que o deferimento da tutela cautelar de urgência demanda análise atenta do magistrado ao cenário econômico trazido pela empresa em crise, visto que tal medida é destinada a beneficiar financeiramente empresas em dificuldades que enfrentam uma crise de liquidez, mas que, no entanto, podem ser resgatadas. O mecanismo é fundamentalmente uma intervenção legal direcionada a promover o resgate de uma empresa ou negócio.

Não parece certo crer que toda e qualquer empresa, ainda que manifestamente inviável sob o ponto de vista econômico, poderá fazer uso do instituto de forma indiscriminada, sob pena de se esvaziar a intenção legislativa, que é justamente neutralizar o interesse de um credor individualmente considerado, para o bem da coletividade de credores, quando se permite a reestruturação de uma empresa viável.

A recuperação judicial é uma ferramenta de superação de crises. Neste ponto, a Lei nº 11.101/2005, em sua origem, foi formulada como um mecanismo de socorro para crises de empresas em situação de normalidade de mercado. Para crises sistêmicas, em que economia e o mercado passam a ser afetados como um todo, é fundamental que se reformule as soluções outrora pensadas.

As inovações inauguradas no sistema brasileiro de insolvência caminham junto com as atualizações implementadas nos países mais influentes economicamente do mundo, como é o caso do Reino Unido, o que permite uma visão promissora dos mecanismos de pré-insolvência introduzidos pelo diploma legal.

BIBLIOGRAFIA____________________________

COSTA. Daniel Cárnio. “A importância social e econômica da falência”. Brasil Jurídico, jan. 2018. Disponível em: https://www.brasiljuridico.com.br/artigos/a-importncia-social-e-econmica-da-falncia-por-daniel-carnio-costa. Acesso em: 27/01/2021.

COSTA, Daniel Cárnio. NASSER DE MELO, Alexandre. “Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência”. Curitiba: Juruá, 2021.

CUEVA, Villas Bôas; COSTA, Daniel Cárnio. “Os mecanismos de pré-insolvência nos Pls 1.397/2020 e 4.458/2020”. Migalhas de Peso. Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/depeso/335268/os-mecanismos-de-pre-insolvencia-nos-pls-1397-2020-e-4458-2020. Acesso em: 27/01/2021.

PAYNE, Jeniffer. “An Assessment of the UK Restructuring Moratorium”. Oxford Business Law Blog. Disponível em: https://www.law.ox.ac.uk/business-law-blog/blog/2021/01/uk-restructuring-moratorium. Acesso em: 27/01/2021.