O uso da inteligência artificial nos tribunais

7 de dezembro de 2021

Messod Azulay Neto Desembargador Federal Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região

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Introdução

Estamos imersos em tempos de uma aparente ficção científica, entre maravilhados e incrédulos, em razão não só das sofisticadas inovações tecnológicas, mas, sobretudo, pela velocidade das transformações da “tecnociência”, termo recém-criado que significa que ciência aplicada e ciência pura não podem mais ser separadas (termo cunhado por Gilbert Hottois, e inspirado pelo filósofo francês Gaston Bachelar).

Vivenciamos, atualmente, a Revolução Industrial 4.0 (Revolução Digital) que atinge o nosso cotidiano: quem já não ouviu falar em casa “inteligente” (controle de objetos, à distância, através de comandos de voz), automóvel “inteligente” (sem motorista), cirurgias à distância, cão-robô armado com rifle, soldados-
robôs, construídos com tecido semelhante ao humano para permitir mais agilidade e flexibilidade. Estaríamos caminhando para decisões judiciais “inteligentes”, sem a participação de um juiz? Este futuro é viável, é promissor e desejável ou é limitador e violaria garantias fundamentais?

Para responder a estas questões, vamos entender o que vem a ser inteligência artificial, seus métodos e mecanismos.

Desenvolvimento

A inteligência artificial (IA) refere-se a sistemas ou máquinas que imitam a inteligência humana e podem se aprimorar iterativamente com base nas informações que coletam, podendo resolver problemas, criar soluções e até mesmo tomar decisões no lugar do ser humano.

Para atingir a este propósito, a IA se utiliza de um grande volume de dados (big data), que analisados, identificados, comparados e correlacionados em padrões, se interconectam em “redes neurais” que permitem que a máquina aprenda com a experiência (machine learning), que seja capaz de classificar, reconhecer, detectar e descrever, ou seja, compreender (deep learning), de processar a linguagem natural (natural language processing), de proceder à mineração de dados (processo de encontrar anomalias, incongruências nos dados), de prever futuros julgamentos visando decisões estratégicas, através da jurimetria (análise de dados matemáticos e estatísticos para compreender tendências e repetições). Tudo isto é possível com a utilização dos algoritmos (sequência finita de ações executáveis para atingir a solução de um problema) e da lógica fuzzy (lida com o conceito de verdade parcial, possibilitando avaliar conceitos não quantificáveis).

No Direito, as inovações desta “tecnociência” digital só foram possíveis em razão do empenho e dedicação dos ministros dos tribunais superiores que promoveram uma verdadeira revolução tecnológica no Poder Judiciário; o STF e o STJ, de forma pioneira e competente, ao implantar os sistemas de IA, respectivamente, Victor e Sócrates, de acordo com as diretrizes emanadas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ/ que utiliza a plataforma Sinapses), focadas na preservação das garantias fundamentais, da ética, da dignidade humana, da transparência e publicidade, da manutenção do contraditório e ampla defesa e da possibilidade de auditoria dos sistemas de IA.

Os tribunais federais e estaduais, em sua maioria, têm se modernizado com a crescente virtualização jurisdicional. No TRF2, todo o esforço se volta para criar programas que vão desde o “Balcão Virtual” (Portaria TRF2 PTP nº 91/2021) e o “Juízo 100% Digital” (Resolução CNJ nº 345/2020 e Resolução TRF2 nº 59/2020), até o Núcleo de Justiça 4.0 (o TRF2 foi a primeira Corte a implantar a estrutura prevista na Resolução CNJ nº 385/2021) e o recente projeto piloto Intelligentia”. O TRF2 conta com o Centro de Inteligência (Resolução TRF2 nº 69/2021), com o NUGEPNAC, além do Centro de Conciliação 100% Digital (C100%) e o Portal MonitoraPrev

O “Balcão Virtual” e o “Juízo 100% Digital” possibilitam o acesso virtual dos atores-clientes (partes, procuradores e advogados) de forma democrática, célere e segura, a todos os procedimentos administrativos e judiciais.

O Centro de Conciliação 100% agiliza a realização de acordos em processos, com o uso de audiências virtuais e com a possibilidade de negociação direta entre as partes, pelo sistema e-Proc, e o Portal MonitoraPrev fornece dados estatísticos, em tempo real, sobre ações previdenciárias, e permite conhecer, de forma inédita, a realidade social das pessoas que buscam a Justiça Federal para reclamar direitos previdenciários, inclusive por meio de georreferenciamento.

O Núcleo de Justiça 4.0 consiste em uma nova forma de jurisdição e no TRF2 terá uma atuação especializada nas demandas relacionadas à saúde pública, em razão da eclosão da pandemia da covid-19.

O Centro de Inteligência (constituído por um Grupo Diretivo e um Grupo Operacional – Portaria TRF2 nº 393/2021) atende às expectativas do Núcleo de Gerenciamento de Precedentes e de Ações Coletivas – NUGEPNAC (Resolução CNJ nº339 /2020) e tem como um dos objetivos propor a implantação de projetos que envolvam o uso de mecanismos disruptivos, dentre eles, a inteligência artificial.

Neste contexto, elaborou-se o projeto piloto “Intelligentia”, da Vice-Presidência, que possibilitará o acesso dos atores-prestadores de serviços (juízes e assessores) aos mais inovadores recursos para automatizar, desde atos judiciais mais simples (despachos, expedientes, certidões) até minutas de decisões de admissibilidade de recursos especiais e extraordinários, por meio da detecção dos temas de repercussão geral e de recursos repetitivos, das hipóteses de sobrestamento de processos, e da identificação de precedentes judiciais qualificados.

A IA no Poder Judiciário brasileiro já é uma realidade, não se trata de aceitar ou não, de gostar ou não, ela se impõe; este é, exatamente, o momento   em que devem ser colocadas as questões quanto ao seu uso nos tribunais: benefícios e riscos, precauções e alertas, desafios e soluções.

Para apontar os benefícios da IA no Direito, vou sintetizá-los, correlacionando-os com os conhecidos 5 Vs do big data: Volume, Velocidade, Veracidade, Variedade e Valor.

Quanto ao Volume, são analisados trilhões de dados, não se fala mais em terabytes e sim em zetabytes e brontobytes, possibilitando maior consistência às decisões; em uma Velocidade incomensurável, algumas ações são contadas em milissegundos, permitindo uma maior celeridade ao processamento, com uma Variedade impressionante de informações, acarretando em uma maior precisão e congruência nas soluções; atentos à Veracidade das informações, assegurando maior imparcialidade e isonomia e com um Valor atrativo, reduzindo o custo de operação do sistema, garantindo, assim, maior economia aos cofres públicos, além de eficiência, efetividade e segurança jurídica à prestação jurisdicional.

Entretanto, observamos que já atravessamos os anos de admiração incondicional por estes inacreditáveis avanços, sendo que, neste ano de 2021, estamos iniciando o tempo das críticas, isto porque qualquer nova tecnologia não é positiva ou negativa em si, depende do uso que os seres humanos fazem dela.

O olhar crítico é fundamental para ajustarmos as inovações, corrigindo eventuais falhas. A principal precaução referente à IA se relaciona com o denominado “viés do algoritmo”, ou seja, certa subjetividade, eventuais tendências discriminatórias, por parte dos programadores, ou seja, toda a atenção se faz necessária quanto à qualidade das informações, dos dados, dos   critérios inseridos no sistema, para a construção dos algoritmos, já que, apesar  de, em tese, a automação garantir a isonomia, imparcialidade e segurança jurídica, em última instância, os robôs, mesmo quando detêm certa autonomia na criação de soluções e decisões, seguem os critérios e as ordens dos humanos.

Por esta razão, o CNJ editou a Resolução nº 332/2020 que dispõe sobre a ética, a transparência e a governança na produção e no uso de inteligência artificial, alertando para o respeito aos direitos fundamentais previstos na Constituição, à não discriminação, à publicidade, à segurança, ao sigilo de dados pessoais e à possibilidade de controle dos usuários.

Nesta toada, acredito que não seja aconselhável termos um juiz-robô porque, para se construir uma sentença, impõe-se a presença de um verdadeiro juiz. Sentença, que vem de sentir, não no sentido tão corretamente criticado de emoção, opiniões subjetivas, juízo de valor, mas sentir na acepção de sensibilidade de uma mente jurídica, do olhar humano na interpretação das normas em face da Constituição, dos princípios, de todo o sistema jurídico, visando uma sentença circunscrita aos limites da lei, mas que crie soluções para enfrentar o improvável, o imprevisto, contemplando a singularidade única de um caso concreto, em uma decisão justa, fundamentada de forma clara e transparente, contando com o “robô” como um suporte técnico complexo e eficiente da IA, mas sempre sob a supervisão de um magistrado, onde o novo se harmonize com as tradições, buscando equilíbrio e segurança jurídica

Conclusão

Por fim, sabemos que o sucesso da utilização da IA nos tribunais federais e estaduais, que permita alcançar satisfatoriamente os anseios da sociedade por um judiciário célere, eficiente, eficaz, coerente e justo, mitigando as possíveis falhas e vencendo os inúmeros desafios, só se efetivará com a elaboração de novas regulamentações que foquem nos direitos fundamentais e com a cooperação técnica, constante e solidária de todos os órgãos do Poder Judiciário brasileiro.

Referências__________________________

BRASIL, Justiça Federal. Tribunal Regional Federal da Segunda Região PORTARIA Nº TRF2-PTP-2021/00091, de 8 de março de 2021. Rio de Janeiro, 2021.

BRASIL, Justiça Federal. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 345, de 9 de outubro de 2020. Brasília, 2020.

BRASIL, Justiça Federal. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 385, de 6 de abril de 2021. Brasília, 2020.

BRASIL, Justiça Federal. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 339, de 8 de setembro de 2020. Brasília, 2020.

BRASIL, Justiça Federal. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 332, de 21 de agosto de 2020. Brasília, 2020.

BRASIL, Justiça Federal. Tribunal Regional Federal da Segunda Região PORTARIA Nº TRF2-PTP-2021/00128, de 29 de março de 2021. Rio de Janeiro, 2021.

BRASIL, Justiça Federal. Tribunal Regional Federal da Segunda Região RESOLUÇÃO Nº TRF2-RSP-2020/00059, de 18 de dezembro de 2020. Rio de Janeiro, 2020.

BRASIL, Justiça Federal. Tribunal Regional Federal da Segunda Região RESOLUÇÃO Nº TRF2-RSP-2021/00038, de 13 de maio de 2021. Rio de Janeiro, 2020.

OLIVEIRA, Maria Teresa. “Inteligência artificial e o Poder Judiciário”, 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-abr-20/maria-teresa-oliveira-inteligencia-artificial-poder-judiciario

HOTTOIS, Gilbert. “Technoscience et bioethique: Éclairages de Gilbert Hottois”. Univ. Européenne, 2018.

BRANCO, Leo. “Softwares jurídicos geram debate ético no exterior”. 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/softwares-juridicos-geram-debate-etico-no-exterior-1-24225948

Notas__________________________

1 O CNJ regulamentou o disposto na Lei nº 11.419/2016 (Lei do Processo Eletrônico) e no Código Civil de 2015, através da edição de várias Resoluções que compatibilizam os novos modelos de gestão com a observância dos princípios inerentes à Lei nº 13.709/2018, Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), à Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), à Comissão Europeia para a Eficácia da Justiça (CEPEJ).

2 “O uso de inteligência artificial no Poder Judiciário foi regulamentado pelo CNJ e será feito por meio do Sinapses, plataforma virtual que centralizará as iniciativas da tecnologia.”(https://www.conjur.com.br/2020-dez-16/cnj- regulamenta-uso-inteligencia-artificial-judiciario)

3 “A transformação digital da Justiça foi reforçada como eixo da gestão do Ministro Luiz Fux, que publicou a Resolução CNJ nº 335/2020, que institui a política pública para a governança e a gestão de processo judicial eletrônico, e visa integrar os tribunais do País com a criação da Plataforma Digital do Poder Judiciário Brasileiro, mantendo o sistema PJe como sistema de processo eletrônico prioritário do CNJ”.

4 O CJF editou a Portaria nº 369, de 19 de setembro de 2017 que instituiu os Centros de Inteligência (CIn). Devido aos excelentes resultados alcançados, o Ministro Raul Araújo, em gestão posterior, apresentou ao Conselho da Justiça Federal proposta para referendar a criação dos Centros de Inteligência, que foi aprovada em 1º de outubro de 2018, por meio da Resolução nº 499, do Conselho da Justiça Federal, sob a liderança do Ministro João Otávio de Noronha.

5 O sistema MonitoraPrev, do TRF2, ficou em primeiro lugar na categoria “Boas práticas dos magistrados na Justiça Federal” do V Prêmio Ajufe Boas Práticas de Gestão.

6 Portaria nº TRF2-PNC-2021/00003, expedida pelo coordenador do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos da 2ª Região (NPSC2).

7 “A iniciativa “Justiça 4.0 – Inovação e efetividade na realização da Justiça para todos” foi desenvolvida pelo CNJ, em parceria com o Conselho da Justiça Federal (CJF) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Seu objetivo é facilitar o acesso à Justiça, em especial à Justiça Federal, com o uso colaborativo de novas tecnologias e inteligência artificial”.

8 Cabe ao NUGEPNAC a administração do Banco de Dados de Precedentes do Tribunal, com o encaminhamento das informações ao CNJ; a difusão da informação sobre os precedentes qualificados dos tribunais superiores e do TRF2 junto aos magistrados de 1º e de 2º graus, a realização de estudos que subsidiem as políticas administrativas, judiciais e de formação relacionadas às ações coletivas, uniformizando a gestão dos procedimentos e implementando sistemas e protocolos voltados ao alcance da efetividade processual, com o aprimoramento das soluções consensuais de conflitos de modo coletivo.

9 “Em outubro de 2021, a Comissão Gestora de Precedentes e de Ações Coletivas criou o “Boletim do NUGEPNAC”, com a finalidade de destacar, dentre os precedentes qualificados, os mais relevantes para a jurisdição federal. O Boletim terá periodicidade mensal e compilará os temas mais relevantes do STF, do STJ e da Turma Nacional de Uniformização (TNU), sendo disponibilizadas todas as versões em meio eletrônico no Portal TRF2, na aba “Gestão de Precedentes e Ações Coletivas”.

10 “Segundo a juíza do TRF2, Isabela Ferrari, mestre em Direito pela UERJ e coordenadora acadêmica do Instituto New Law: “Quando usamos inteligência artificial e aprendizagem de máquinas nós estamos falando de robôs que criam a própria programação para que seu programador não precise fazer. Isso faz com que, em alguma medida, nós percamos o domínio sobre as razões determinantes daquele resultado que os programas nos entrega. O programador olhando o resultado tem dificuldade de entender o que o algoritmo fez para chegar naquele resultado, portanto, a opacidade é um grande problema”. (https//:www.emerjtjrj.jus.br/paginas/noticias_todas/2021/Justica-Robos-eDigitalizacao- e-tema-de-webinario.html)

11 Resolução nº 332/2020: Art. 7º As decisões judiciais apoiadas em ferramentas de inteligência artificial devem preservar a igualdade, a não discriminação, a pluralidade e a solidariedade, auxiliando no julgamento justo, com criação de condições que visem eliminar ou minimizar a opressão, a marginalização do ser humano e os erros de julgamento decorrentes de preconceitos.

12 Resolução nº 332/2020: Art. 6º Quando o desenvolvimento e treinamento de modelos de inteligência exigir a utilização de dados, as amostras devem ser representativas e observar as cautelas necessárias quanto aos dados pessoais sensíveis e ao segredo de justiça.

13 Na Estônia, está em desenvolvimento o “juiz-robô”, um dispositivo de IA que será utilizado para mediar e julgar causas com valor inferior a sete mil euros, e com o intuito de legar aos juízes “reais” a decisão de processos com maior complexidade jurídica.

No Reino Unido, o órgão que supervisiona os tribunais civis recomendou soluções on-line em causas no valor de até 25 mil libras.

No âmbito dos direitos do consumidor, a União Europeia criou uma plataforma chamada “On-line dispute resolution”, através da qual grande parte das reclamações são resolvidas fora do Judiciário (https://www.conjur.com.br/2021-abr-20/maria-teresa- oliveira-inteligencia-artificial-poder-judiciario)

A China vem testando nos últimos dois anos o uso de robôs para substituir o próprio juiz. Segundo um estudo divulgado pela Suprema Corte chinesa, no ano passado (2019) mais de 118 mil casos foram julgados dessa maneira numa corte de Hangzhou, cidade litorânea com 7,9 milhões de habitantes. Cortes de outras 12 províncias estão testando o sistema, entre elas as de centros importantes, como a capital Pequim e o polo industrial Guangzhou, a despeito de críticas internacionais sobre a invasão de privacidade das partes envolvidas. Os registros, sejam inquéritos ou audiências virtuais, ficam armazenados em servidores aos quais as autoridades têm acesso fácil e organizado por robôs. (https://oglobo.globo.com/politica/softwares-juridicos-geram- debate-etico-no-exterior-1-24225948)