O trabalho nos tempos modernos

9 de junho de 2021

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Em 1936, Charles Chaplin nos ofereceu uma percepção daquela época, marcada pelo modelo de produção instituído desde a revolução industrial no filme “Tempos Modernos”. Atualmente, são inegáveis as conquistas sociais acumuladas pelos trabalhadores desde então, mas, infelizmente, o homem continua não sendo contemplado por políticas públicas alinhadas com a dignidade da pessoa humana (art. 1º, II, da Constituição Federal) visando capacita-lo para o atual estado de coisas no mundo do trabalho.

No dia 1º de maio, repetiremos as comemorações do Dia do Trabalho, inspirados pela famosa luta dos trabalhadores, ocorrida nos Estados Unidos em 1886. Mas, para além da importância simbólica desta data, há o que ser comemorado?

Nos últimos anos, o mundo do trabalho vem atravessando profundas alterações, com substituição de relações tradicionais de emprego por outras formas de prestações de serviços; aumento da tecnologia nos modelos de produção e advento de plataformas digitais para “aproximar” oportunidades e demandas de empreendedores individuais. Participamos da virtualização das relações sociais e, ao mesmo tempo, assistimos impotentes, a inserção de algoritmos entre pessoas e organizações, redesenhando desejos e preferências ou escolhendo as informações às quais teremos acesso no uso de ferramentas de busca.

As empresas também foram afetadas pela mudança drástica das necessidades e hábitos, impulsionadas pela oferta de tecnologia, desaparecendo grandes organizações pelo rápido obsoletismo dos produtos antes fabricados.

No curso da quarta revolução industrial de que falou Klaus Schwab, com a conexão entre os mundos físico, digital e inteligência artificial, surgem novas profissões e, com velocidade infinitamente superior, desaparecem tantas outras, superadas pelos ganhos que a tecnologia trouxe para as empresas, mediante substituição da mão de obra humana por sistemas ou robôs, sem que as ofertas de educação ou profissionalização dos trabalhadores aumentem na mesma proporção. Enquanto um grupo seleto e especializado de profissionais acessa oportunidades efetivas de ganho e sucesso, a grande massa concorre pelas vagas remanescentes, em um cenário de precarização e escassez de trabalhos dignos.

No Brasil, a Lei nº 13.467/2017 promoveu alterações substanciais na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), mas à exceção da tímida previsão do teletrabalho (artigos 75-D e seguintes), perdeu o legislador a oportunidade de preparar a sociedade para a era digital, embora desde 1988 já se vislumbrasse a necessidade de proteção dos trabalhadores em face da automação (art. 7º, XXVII, da Constituição Federal). Enquanto a reforma trabalhista operava seus efeitos, fomos surpreendidos por um fator ainda mais disruptivo dos paradigmas até então considerados – a pandemia da covid-19, que antecipou e intensificou os impactos da tecnologia nas relações trabalhistas, agora de modo não apenas setorizado como vinha ocorrendo, impondo uma disrupção em massa, jamais vista no mundo moderno.

A pandemia separou os profissionais intelectualizados dos demais, estes últimos distribuídos em tarefas de apoio e mantidos em atividades presenciais, sujeitando-se aos riscos de contágio pela essencialidade de seus serviços à sociedade ou necessidade de subsistência deles próprios. Por outro lado, as empresas (sobretudo as de pequeno e médio portes, que concentram a maior quantidade de postos de trabalho), exauriram suas parcas reservas para se manterem abertas durante as medidas de isolamento e, ainda assim, seguem desassistidas por parte do Poder Público.

Diversos países tiveram suas finanças e estruturas sociais testadas, pois a covid-19 exigiu o socorro a um grande número de pessoas, desprovidas de recursos básicos para enfrentamento da pandemia. Entre nós, no entanto, encerradas as vigências das medidas oferecidas pelo Poder Público, se maximizam os efeitos deletérios para o trabalho e empresas.

Pesquisas indicam que um pequeno grupo se manteve em regime de home office durante os períodos de isolamento social. Se de início eram propagadas as vantagens oferecidas por este modelo, com redução de tempo/gastos e conciliação do trabalho remoto com demandas domésticas, após pouco mais de um ano, o “fetiche” da virtualização vai perdendo força, revelando efeitos negativos importantes advindos das atividades remotas, suscitando a partir da experiência concreta, profunda reflexão sobre o modo de atuação no período pós-pandemia.

Apesar disso, há claro dissenso quanto à perpetuação deste regime, em especial no âmbito do Poder Judiciário: de um lado, os tribunais sinalizam para a adoção da Justiça 100% digital, supostamente mais célere e eficaz pela redução de gastos e tempo; de outro, os advogados se preocupam com a garantia de uma prestação jurisdicional democrática e segura ante ao contexto de exclusão digital que assola a população, com riscos concretos de supressão dos jurisdicionados do ambiente virtual, sobretudo na Justiça do Trabalho, onde a massa de litigantes é desprovida de recursos tecnológicos.

Além das profundas e incessantes mudanças no mercado de trabalho, incertezas de continuidade de muitas empresas após a pandemia e radicais alterações do modo de funcionamento dos órgãos do judiciário, o que dizer dos resultados de demandas que vêm sendo conhecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF)?

Temas de Direito do Trabalho (tão desprestigiado após a reforma trabalhista) foram pautados pelo Supremo Tribunal Federal em importantes casos nos últimos anos. Sem adentrar nas conclusões de fundo ali atingidas, verifica-se uma tendência de profunda revisão de paradigmas antes seguidos no bojo das relações laborais, em precedentes obrigatórios que, doravante, pautarão as condutas da nossa sociedade.

Para citar apenas alguns casos, os ministros do STF finalizaram em 30/08/2018 o julgamento da ADPF 324 e no RE 958.252, concluindo ser possível a terceirização de atividade fim, contrariando a jurisprudência construída ao longo dos anos pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST).

Em 19/03/2021, a Ministra Carmem Lucia concedeu liminar na ADC 48, entendendo ser da Justiça Comum a competência material para analisar a relação instituída entre a contratante de transportes e o motorista (Lei nº 11.442/2007), surpreendendo a Justiça do Trabalho, que sempre conheceu demandas relativas aos contratos de atividade para identificar a existência de vínculo de emprego (artigos 2º e 3º, da CLT), sob a premissa de que o próprio Código Civil, em seu art. 593, fixa como regra que apenas a prestação de serviços não subsumida às leis trabalhistas ou especiais será regida pelo direito comum.

O STF também julgou a ADI 5794, sobre a facultatividade da contribuição sindical, concluindo pela constitucionalidade dos dispositivos que alteraram a CLT, sepultando as arrecadações compulsórias. Sem aprofundar a análise da inadequação do nosso modelo sindical, é certo que as entidades não tiveram um período de transição e, igualmente, foram atropeladas pela pandemia, agora sem estrutura para representar os trabalhadores em tempo de profundos impactos sociais.

O STF ainda pautará a necessidade de autorização prévia do sindicato para promover as dispensas coletivas (ADI 6142); validade de instrumentos normativos que limitam ou restringem direitos trabalhistas (ARE 1121633) e constitucionalidade do art. 59-A, da CLT, introduzido pela Lei 13.467/2017, que contempla a adoção de escala de 12×36 por acordo individual (ADI 5994), com inegável potencial de fortalecer ou enfraquecer as negociações coletivas a partir destas decisões.

O STF irá julgar na ADI 5826, a validade dos dispositivos da CLT que criaram a figura do trabalho intermitente; verbetes de jurisprudência do TST, sobre a dobra das férias (Súmula 450, na ADPF 501) e que presume a discriminação na dispensa de portadores de doença estigmatizantes (Súmula 443, na ADPF 648). Aliás, verifica-se uma intensificação do uso de ADPFs, quiçá pelo conhecimento de temas afetos ao Direito do Trabalho pelo STF ou tendência crescente ali verificada de revisão dos pilares seguidos pelos tribunais trabalhistas.

Por fim, o STF analisou o critério de correção de créditos trabalhistas na ADC 58, concluindo que a TR-D não respeita o direito de propriedade deste credor. Porém, adotou solução que reduz ainda mais a dimensão do crédito, mas, ante à eficácia erga omnes desta decisão, nos resta a tarefa de acomodar o precedente no acervo de ações atingidas, torcendo para que não aumente o inadimplemento de dívidas trabalhistas.

Portanto, assistimos inertes à segregação de pessoas, ceifadas de educação ou recursos para participarem da “festa tecnológica”, em atividades operacionais cada vez mais precarizadas, ao lado de profissionais intelectualizados atuando com intermédio de uma tela.

Ante à ausência de leis que acolham pessoas excluídas e tolhidas de meios de subsistência, de políticas públicas que viabilizem a capacitação dos trabalhadores para essa nova era, espera-se ao menos do STF que vislumbre o futuro próximo para o qual conduzira nossa sociedade.