O STF e a complexidade do Sistema Tributário Nacional

2 de junho de 2019

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Em sua palestra “Tributação das Empresas”, o Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luiz Alberto Gurgel destacou a complexidade do Sistema Tributário Nacional: a quantidade de contribuições sociais, onerando o setor produtivo e prejudicando o investimento no País; múltiplas incidências sobre a figura do faturamento das empresas; elevada carga da tributação sobre o consumo; dificuldades de implementação da necessária reforma tributária, tendo em vista a necessidade dessa envolver o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), maior imposto sobre o consumo, de titularidade dos estados, que não aceitariam ter seu principal imposto incorporado a um novo, de competência da União. Em síntese, para o ilustre Ministro, mudanças do sistema se fazem urgentes.

Neste breve artigo, quero destacar que o Supremo Tribunal Federal (STF) tem feito parte do problema. O Tribunal não tem sido capaz de responder com celeridade, nem com sistematicidade, os principais desafios contemporâneo do Direito Tributário, o que tem elevado a complexidade de nosso Sistema Tributário. Para expor esse quadro, abordo, na sequência, o papel que o STF poderia cumprir perante nosso Sistema Tributário e as razões pelas quais a Corte não vem cumprindo-o. Por fim, algumas conclusões.

Como se sabe, um dos fatos mais marcantes da trajetória política e social do Brasil pós-Constituição Federal (CF) de 1988 tem sido a expansão político-institucional do STF, que envolve os fenômenos primos da judicialização da política e do ativismo judicial. A Corte tem decidido questões morais e políticas comple­xas: união estável homoafetiva, aborto de fetos anencéfalos e sistema de cotas raciais; financiamento privado de campanhas eleitorais, procedimento de impeachment de presidente da República e requisitos para a sucessão presidencial. Do ponto de vista descritivo, essa ascensão é circunstância inegável. Sob o ângulo normativo, é objeto de muitas críticas: acusações de voluntarismo e de decisões que reescrevem a Constituição.

Diferentes fatores explicam essa ascensão: uma Constituição muito analítica e pretensiosa, e que ainda outorgou amplos poderes e acesso ao STF, incluindo forte controle de constitucionalidade das leis; alta fragmentação do poder político entre Executivo e Legislativo em um sistema multipartidário, o que impede a formação de poder político hegemônico, favorecendo a independência do Tribunal; o uso político da Corte pela oposição política, tornando-a a “última rodada do processo legislativo”, inclusive em relação aos processos de emenda à Constituição; transferência pelo Governo dos custos políticos à Corte para decidir sobre questões social e moralmente controvertidas; maior demanda individual e coletiva por direitos fundamentais; novas práticas interpretativas, mais propositivas e menos textualistas; nova percepção acerca da normatividade da Constituição e do papel que o STF pode e deve cumprir para assegurar os novos valores constitucionais.

Em relação ao panorama particular dos temas tributários, o estado de coisas é o mesmo. Além dos fatores para a judicia­lização em geral, o caso tributário possui particularidades que agravam esse quadro: a baixa qualidade das leis tributárias dos estados e dos municípios brasileiros; a forte articulação entre entidades representativas dos segmentos econômicos e os grandes escritórios de advocacia para litigar diretamente no STF; o elevado nível de conflitos de competência tributária entre os diversos entes federativos, existindo autêntica guerra fiscal; verdadeira “cultura do litígio” em matéria tributária decorrente da forte pressão fiscal que não permite que os contribuintes vejam o tributo como o “preço da cidadania”; e a própria complexidade de nosso Sistema.

Ante tal quadro, o que esperar do STF? Que coordene os elementos do sistema. O excesso de litigância amplia a já complexidade incomum de nosso Sistema. Ante tal situação, há necessidade da interpretação constitucional promover as conexões lógicas intrassistêmicas que são questionadas. Então, espera-se que o Tribunal ofereça estabilidade ao Sistema, na medida em que a interpretação constitucional sirva para encerrar as discussões com a autoridade da coisa julgada. Que o Tribunal ofereça previsibilidade para os contribuintes conduzirem seus negócios. Ao oferecer estabilidade e previsibilidade, o STF contribuiria para o comportamento seguro dos contribuintes. Que o Tribunal contribua para a eficiência do Sistema, na medida em que reduza os conflitos normativos ine­rentes ao desenho constitucional do processo legislativo tributário. Em síntese, espera-se que o STF ofereça racionalidade, segurança jurídica e isonomia na ope­ração do Sistema Tributário.

Essas são expectativas normativas. Porém, o que o STF de fato tem oferecido até aqui e por quê? Infelizmente, não tem oferecido nada disso, cumprindo de forma bastante deficiente o papel que dele se espera.

Com fundamentações contraditórias entre seus ministros, o STF não decide como tendo “única voz”, mas diferentes vozes argumentando e fundamentando diferentemente, muitas vezes isoladamente. Assim, o STF não favorece a coordenação lógica entre os elementos do sistema. Não raramente, ao decidir um caso, o STF produz novos litígios em razão da própria linha argumentativa fragmentada. O caso da exclusão do ICMS das bases de cálculo da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e do Programa Integração Social (PIS) é um exemplo.

Não oferece estabilidade porque: (i) demora muito a encerrar os julgamentos, mesmo os já iniciados – há exemplos de casos relevantes em que o STF demorou 20 anos para julgar; (ii) suas decisões, com alguma frequência, são revertidas por emendas constitucionais; (iii) o STF tem o costume de mudar sua jurisprudência sem, contudo, modular os efeitos da nova decisão, na maior parte das vezes em prejuízo à confiança legítima dos contribuintes.

Com elevado estoque de processos pendentes para julgamento, o STF chega a levar mais de dez anos para resolver os litígios tributários, o que é ruim independentemente do modelo de controle de constitucionalidade envolvido, mas que se revela ainda mais perverso no âmbito da repercussão geral, com prejuízo ao desenvolvimento decisório de todos os demais tribunais do País. Com tal baixa performance, o STF é incapaz de contribuir para os contribuintes no arranjo de seus negócios, oferecendo segurança jurídica. A ineficácia numérica do Tribunal produz insegurança jurídica.

Por fim, como o STF não é capaz de responder rapidamente às controvérsias tributárias, acaba aumentando a ineficiência do sistema: não contribui para reduzir a litigiosidade, e ainda incentivando estratégias evasivas.

Quero concluir dizendo que a complexidade legislativa do Sistema Tributário brasileiro é ainda mais agravada por esse déficit de eficiência do STF. A CF estabeleceu largas oportunidades para o litígio no STF em matéria tributária, mas a Corte não tem se mostrado capaz de satisfazer tal demanda. É necessária sim a reforma tributária, mas na medida em que certo número de litígios constitucionais naturalmente continuará, mostram-se necessárias também mudanças estruturais no funcionamento geral do Tribunal, que impliquem redução de sua agenda e aperfeiçoamento de como delibera e julga os temas em colegiado. O STF precisa deixar de fazer parte do problema e começar a contribuir com a solução.