O inimigo do povo

5 de outubro de 2003

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Existe um país, não muito distante do nosso, que desde os tempos da aristocracia enfrenta o crime organizado, com criminosos arvorando-se em defensores do latifúndio, cobradores de “pedágio”, para garantirem sistema de “proteção”, sem contar os benefícios estendidos aos amigos nas concorrências públicas, o tráfico de entorpecentes, de mulheres, a lavagem de dinheiro etc.

Anote-se que lá, como aqui, a proteção dispensada é  mais eficiente do que a do próprio Estado, enquanto os juízes são, ou foram, seus maiores perseguidores. Hoje, contudo, novas leis prodigalizaram proteção aos governantes, aliados ao crime (Andreotti, por exemplo), além de impedir o trato da criminalidade como fenômeno único, agora disperso em acusações individuais e de quadrilha ou bando. Releva notar, ainda, que a movimentação histórica da máfia ocorre em ciclos de aproximados dez anos, estando iminente nova onda criminosa, agora sob a batuta do magnata da comunicação e primeiro-ministro, Berlusconi.

No Brasil, vivemos o estupor ou a alegria de um governo legitimado pelas urnas e que, desde logo, promete dar comida, terra e teto aos famintos e excluídos, ao mesmo tempo em que promove reformas: tributária, da Previdência e do Judiciário. Nesta última verifica-se, diferentemente do que vem sendo propagado, que o Supremo Tribunal Federal apresentou projeto (de sua exclusiva iniciativa) para a reforma da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, paralisada no Congresso desde 1992. O povo, que desconhece esse e alguns outros fatos, e a mídia, igualmente preconceituosa e despreparada, dirigem como corolário à disseminação do ódio gratuito ultrajantes ofensas à magistratura.

Quer parecer, entretanto, que isso não aproveitaria o governo, salvo se obnubilado pelo poder numa perigosa aproximação à tirania. Servirá, então, aos membros do Legislativo? Crê-se que não, nada obstante nada façam para defender ou para promulgar urgentes leis que afastem a crise do judiciário. Bem, se não aproveita aos demais Poderes, a quem interessará denegrir a magistratura nacional? Deixando de lado aqueles que sofreram derrota jurídica ou se mostram insatisfeitos com insuportáveis atrasos na prestação jurisdicional, esse caos de incredulidade e desrespeito serve, e bem, aos inconfessáveis anseios da delinqüência, organizada ou não.

Assim, de nada adiantam as constantes advertências dos presidentes do Supremo Tribunal Federal ou do Tribunal Superior eleitoral de que esta geração não conseguirá ver restabelecidos os parâmetros éticos e morais de respeitabilidade ao Poder Judiciário – o que, num país em que a democracia apenas engatinha, não é pouco.

Apregoa-se, e publicam-se, inúmeras fanfarronices, como a de que os juízes são o inimigo do povo e que somente reagem quando feridos, mortalmente, diga-se em sua prerrogativa constitucional de vencimentos e aposentadoria dignos. O que, não há negar, é verdade! O juiz não cria ou apóia fatos políticos, ele os julga, para isso submetendo-se a prolongada formação acadêmica e disputadíssimo concurso público. A independência econômico-administrativa do Poder Judiciário nunca foi concretizada, submetendo-o a toda sorte de humilhações, sem contar com mudanças legislativas inconstitucionais, como a que impediu o juiz estadual de julgar o respectivo governador, num evidente esvaziamento da Federação e inexplicável inchaço da Justiça Federal.

Acresce que depende o juiz de seus órgãos de cúpula para a defesa das prerrogativas e integridade da classe ou para promover uma imediata reforma administrativa ou da legislação processual. Sujeita esta às designações do Parlamento, enquanto aquela sucumbe às eleições dos órgãos diretivos, ao menos nos tribunais inferiores e nos órgãos especiais, ao critério exclusivo e duvidoso de candidatos obrigatoriamente escolhidos dentre os mais antigos.

Por fim, mostra-se inútil a tentativa de diminuir o número de recursos, ainda que observados dados estatísticos confiáveis, que apesar dos 430 mil recursos represados nos tribunais de São Paulo, sofre ferrenha oposição da Ordem dos Advogados.

O que se há de admitir é a retomada das discussões sobre a reforma da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, que, ao afastar os óbices de uma reformada Constituição, deverá trazer soluções rápidas e objetivas, sem menoscabo à função jurisdicional e sem olvidem as palavras do magistrado Giovanni Falcone, pouco antes de seu brutal assassinato, quando enfatiza que, para o crime organizado, é necessário “deslegitimar para isolar. Isolar para deslegitimar. E, só então, pode-se matar” (cf. Luciano Violante, “II Ciclo Mafioso”, Editora Laterza, 2002).