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O Estado como realidade político-jurídico

5 de outubro de 2000

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Origem das Sociedades e dos Agrupamentos Sociais

Muito embora não possamos deixar de reconhecer a existência de algumas controvérsias a respeito do tema, é fato que modernamente a doutrina mais festejada tem defendido a tese segundo a qual o homem possui, independentemente de outros fatores, uma necessidade instintiva e insuperável de associação, o que, em última análise, forjou os primeiros agrupamentos sociais e, posteriormente, as sociedades primitivas.

“A primeira causa de agregação de uns homens a outros é menos a sua debilidade do que um certo instinto de sociabilidade em todos inato; a espécie humana não nasceu para o isolamento e para a vida errante, mas com uma disposição que, mesmo na abundância de todos os bens, a leva a procurar o apoio comum” (Cícero, in República, vol. I p. 15).

Em essência, ARISTÓTELES, com sua célebre afirmação, “o homem é naturalmente um animal político” (A Política, vol. I p. 9), foi o primeiro estudioso a defender a idéia do impulso associativo natural, seguido, em Roma (séc. I a.C.), por CÍCERO e, na idade medieval, por SÃO TOMÁS DE AQUINO. Modernamente, como bem lembra DALMO DE ABREU DALLARI (Elementos de Teoria Geral do Estado, 18ª ed., São Paulo, Saraiva, 1994, ps. 8-9), “são muitos os autores que se filiam a essa mesma corrente de opinião, estando entre eles o notável italiano RANELLETTI, que enfoca diretamente o problema, com argumentos, preciosos e colhidos na observação da realidade. Diz ele que, onde quer que se observe o homem, seja qual for a época, mesmo nas mais remotas a que se possa volver, o homem sempre é encontrado em estado de convivência e combinação com os outros, por mais rude e selvagem que possa ser na sua origem. O homem singular, completamente isolado e vivendo só, próximo aos seus semelhantes mas sem nenhuma relação com eles, não se encontra na realidade da vida.

Para RANELLETTI o homem é induzido fundamentalmente por uma necessidade natural, porque o associar-se com os outros seres humanos é para ele condição essencial de vida. Só com tais uniões e com o concurso dos outros é que o homem pode conseguir todos os meios necessários para satisfazer as suas necessidades e, portanto, conservar e melhorar a si mesmo, conseguindo atingir os fins de sua existência. Em suma, só na convivência e com a cooperação dos semelhantes o homem pode beneficiar-se das energias dos conhecimentos, da produção e da experiência dos outros, acumulados através de gerações, obtendo assim os meios necessários que possa atingir os fins de sua existência, desenvolvendo todo o seu potencial de aperfeiçoamento, no campo intelectual, moral ou técnico (ORESTE RANELLETTI, in Instituzioni di Diritto Pubblico, Parte Geral, p. 3)” (ob. Cit., ps. 8-9).

Origem das Sociedades dos Vínculos Sociais

É natural que o homem, desejoso de viver em comunidade, procure estabelecer associações (agrupamentos sociais no sentido amplo) a partir de algum tipo de identidade para com os seus semelhantes. Esta identidade natural que o compele a aproximar-se de outros é estabelecida inicialmente através da observação quanto à presença de vínculos comuns, tais como a identidade racial (vínculo mais imediato, em face de sua própria evidência, posto que independe de uma mínima convivência), e, de forma mais complexa (e posterior, dada a necessidade de estabelecimento de uma mínima convivência) as identidades lingüísticas, religiosas (ou de crença no sentido amplo, o que inclui eventualmente o próprio ateísmo), etc.

Sendo, pois, inerente ao gênero humano a aproximação inicial com aquele que julga mais próximo (ou seja, com aquele dotado de um ou mais vínculos em comum), o agrupamento social que passa a ser estabelecido acaba por conceber a própria noção de vinculação social (ou de vínculos sociais), dando origem, em última análise, ao vínculo maior da identidade nacional ou da nacionalidade (gérmen que origina a Nação em seu conceito primitivo) e, posteriormente, até mesmo o conceito mais complexo de cidadania.

Sociedade, Nação e Estado

Se considerarmos a expressão agrupamento humano como a forma mais primitiva de associação humana e, no extremo oposto, o Estado como sua derivação mais complexa, podemos entender o fenômeno humano associativo, à luz das teorias política e jurídica, como um conjunto básico (e inicial) de vinculações naturais, que se transmudam em vinculações sociais, originando, num primeiro momento, as sociedades (desde as mais primitivas até as mais complexas), passando pelas Nações, e, a partir do estabelecimento de um território fixo adicionado ao pacto (com a substituição, a partir deste momento, da prevalência da teoria do impulso associativo natural pela prevalência da teoria contratualista) pelo rompimento da prevalência do individual em nome do coletivo, concebendo-se um poder abstrato supremo e impiedoso denominado soberania, chegando finalmente aos Estados, como modalidades últimas de agregação humana.

Deve ser registrado, como o intuito de evitar possíveis confusões, que a teoria do pacto contratualista desenvolvida, sobretudo, por ROUSSEAU, somente pode e deve ser considerada (mesmo que parcialmente) no instante da formação do agrupamento humano mais complexo denominado Estado, pois somente neste momento, é que, inicialmente, por decisão de cada membro da sociedade nacional, ou seja, da Nação (posteriormente, vale assinalar que o pacto é uma efetiva imposição), se estabelece _ de comum acordo _ um poder abstrato e supremo (denominado soberania) que passa a comandar, de forma coletiva, os membros da comunidade, obrigando-os a sujeitarem-se ao regramento comum (e fundamental) estabelecido (denominado Constituição), independentemente de suas vontades  individuais, caracterizando a noção básica de prevalência do interesse público sobre o interesse privado, em nome do bem comum. Nesse momento, continua a predominar -sob a ótica – a teoria do impulso associativo natural a que nos referimos inicialmente (em contraposição à teoria contratulista), posto que o desejo associativo (independentemente de seu grau) é inerente ao ser humano; porém, na transformação da Nação em Estado, há de estabelecer necessariamente (pelo menos no que tange ao momento inicial) o pacto social de concessão ou autorização que permitirá, em última análise, a construção de um poder coletivo ( e abstrato) prevalente sobre a vontade individual originária e inerente ao ser humano).

Conceito de Estado

A par desta concepção evolutiva, podemos conceituar Estado, em termos objetivos, dentro de um conceito contemporâneo, portanto, como toda associação ou grupo de pessoas fixado sobre determinado território, dotado de poder soberano. É, pois, o Estado, em síntese, um agrupamento humano em território definido, politicamente organizado, que, em geral, guarda a idéia de Nação. Daí exatamente a construção do conceito sintético de Nação política e juridicamente organizada para definir conclusivamente o termo Estado. Dissemos que o Estado, “em geral, guarda a idéia de Nação”, porque nem sempre, todavia, estes dois vocábulos conjugam-se para explicar determinados grupos sociais, embora, freqüentemente, o Estado encerre o sentido de Nação.

“Nação é uma comunidade de base cultural. Pertencem à mesma Nação todos quantos nascem num certo ambiente cultural feito de tradições e costumes, geralmente expressos numa língua comum. Atualizado num idêntico conceito de vida e dinamizado pelas mesmas aspirações de futuro e os mesmos ideais coletivos. Embora a Nação tenda a ser um Estado, não há necessariamente coincidência entre Nação e Estado: há Nações que ainda não são Estado (pela sua pequenez, por exemplo) ou que estão repartidas por vários Estados, e Estados que não correspondem a Nações, como geralmente acontece nos países novos onde  a correm todos os dias emigrantes provenientes dos mais diversos cantos do globo, cada qual com o seu facies próprio. É que, em muitos casos, em vez de ser a Nação que dá origem ao Estado é o Estado que, depois de fundado, vai, pelo convívio dos indivíduos e pela unidade de governo, criando a comunidade nacional: é o que passa, por exemplo, nos Estados Unidos da América.” (MARCELO CAETANO, in Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, 6º ed., Lisboa, Coimbra Ed., 1972, tomo I, p. 123).

Nação deriva do verbo latino nascere, referindo-se, portanto, ao conjunto de pessoas da mesma origem racial. É unidade étnica, herança histórica e destino comuns de um mesmo grupo social, muito embora, contemporaneamente, como já afirmamos, seu sentido específico seja mais elástico para abranger qualquer vínculo (ou vários deles) em comum, tais como: raça, religião, credo, língua, etc.

(É conveniente lembrar que a Nação pode ser constituída de vários Estados (ex.: a grande Nação muçulmana). Por outro lado, a Nação pode estar também contida em apenas um Estado (ex.: a Nação basca na Espanha). De qualquer forma, a Nação é gérmen que dá origem ao Estado, como foi o caso da Itália antes da unificação.)

Temos, então, que uma Nação pode existir como comunidade histórica e cultural, independentemente de autonomia política ou soberania estatal (GERARD J. MONGONE).

“O homem não é escravo nem de sua raça, nem de sua língua, nem de sua religião, nem do curso dos rios, nem da direção das cadeias de montanhas. Uma agregação de homens sã de espírito e cálida de coração, cria uma consciência moral que se chama Nação” (ERNESTO RENAM, in Que é uma Nação).

O conceito de Estado evoluiu com o tempo: surgiu do termo polis, na Grécia, civitas em Roma e estado durante a Idade Média, tendo sido MAQUIAVEL, no entanto, o introdutor do termo Estado na literatura científica.

“A palavra Estado, derivada do latim status, surgiu na Renascença com o significado em que hoje a utilizamos, assim isolada e no sentido de nomear, sob feição gramatical, alguma coisa em sua substância (…)

Deve-se a NICOLAU MAQUIAVEL (1469-1527) a inclusão desse termo na literatura política, por meio, em pleno século XVI, de seu tão celebrizado Il Príncipe, escrito em 1513, publicado após sua morte apenas em 1531, e em cujo início se lê, como primeira frase, o seguinte: ‘Todos os Estados, todos os domínios tiveram e têm poder sobre os homens, são Estados e são ou repúblicas ou principados’ ( O Príncipe, p.7). É que antes de consagração obrada pelo discutido florentino, não possuía o vocábulo Estado a penetração que alcançou a partir da época renascentista, em virtude mesmo da aceitação, até aí, de outros nomes pelos quais foram designados a instituição política em epígrafe.

Os helênicos chamaram o Estado de polis, que quer dizer cidade de onde provém o termo política, a arte ou ciência de governar a cidade. (…) Entre os romanos o Estado é a civitas, isto é, a comunidade dos habitantes ou a res publica, isto é, a coisa comum a todos. Com o crescimento de Roma e sua conseqüente expansão ao mundo então conhecido, modifica-se o conceito de Estado que se amplia para o de imperium, convertendo-se a res populi  em res inperantis.(…) O período medieval dispõe de diversas expressões para designar as unidades políticas. Ao lado de imperium aparece o termo regnum, delas procedendo império e reino. Ademais, volta-se a falar em cidade  e agora em terra para designar cidades livres e domínios territoriais. Pelo medievo e pela era moderna, encontra-se o emprego da palavra Estado para designar as classes do reino. São os três Estados: 1. Clero, 2. Nobreza, 3. Povo, os quais na França se chamavam ‘Estados Gerais’, na Inglaterra ‘Parlamento’, na Alemanha ‘Dieta’ e a Espanha e Portugal ‘Corte do Reino’.

Foi quando a palavra Estado, no sentido hodierno, começou a ter curso na Itália, onde, ante o caráter especial dos Estados existentes, império ou regno era demais a città ou terra era muito pouco, usando-se, pois, aquele termo que se unia ao nome de uma cidade, por exemplo, Stato de Firenze. É provável que, ainda aí, esse vocábulo correspondesse ao antigo significado de status, isto é, ordem, condição, havendo algum informe, no entanto, de que no século XIV já se encontra na Inglaterra a palavra status como equivalente de Estado.

O certo, porém, é que, do século XVI em diante, o termo italiano stato se incorpora à linguagem corrente, adquire foros de universalidade e se generaliza, para designar a todo Estado, na tradução, correspondente de qualquer língua” (ANDERSON DE MENEZES, in Teoria Geral do Estado, 7º ed., Rio de Janeiro, Forense, 1995, ps. 41-43).

Por outro prisma, a acepção do termo Estado pode ser demasiado ampla, se levarmos em consideração as correntes formadas em vários campos do conhecimento que o estudam: Sociológica: o Estado é um fenômeno social onde existe uma integração de força/estratos sociais; Filosófica: o Estado é um fenômeno cultural/político; Jurídica: o Estado é uma entidade geradora de direito positivo; Política: o Estado é considerado uma Nação politicamente organizada, sendo sua organização palavra-chave, pressupondo, para tal, governantes e governados.

(PAULO BONAVIDES, a propósito do tema, destaca a necessidade de um ponto de apoio no elemento histórico para a concretização efetiva de uma Teoria de Estado, não obstante o reconhecimento de seus princípios abstratos, mesclando, destarte, sua posição interpretativa com instrumentos teóricos da filosofia política “para bem compreender e avaliar os fenômenos do poder e organização do Estado” (Teoria do Estado, 2ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1980).)

“Os gregos são os mais significativos antepassados de nossa formação. Se os romanos nos ensinarem a aplicar a lei, os gregos nos ensinaram a pensar. Um pensamento que, na religião filosófica do direito e do Estado, se volve invariavelmente para os alicerces éticos.

O advento dos Sofistas na Grécia marcou no quadro daquela época a emergência de uma crise sem precedente no Mediterrâneo da desintegração e colapso daquilo que outrora foi a hegemonia dos povos gregos” (PAULO BONAVIDES, in Teoria do Estado, 2º ed, Rio de Janeiro, Forense, 1980).

Defensor do caráter teleológico do Estado, o professor BONAVIDES argumenta que as doutrinas do pragnatismo jurídico ignoram o problema dos fins do Estado. Também, revela-nos o autor a importância das correntes da teleologia estatal, apoiada no jusnaturalismo, “para sedimentar a consciência jurídica dos povos civilizados” (ob. Cit.), precipuamente com relação à ordem política. Esta consciência política, preconizada e elaborada pelos filósofos do direito e que tem como tema fundamental justamente a teleologia estatal, institui o direito social e o direito individual, sob o ponto de vista da teoria do Estado, como o mesmo direito, “tomado apenas para prismas diferentes” (ob. Cit.).

De um modo geral, entretanto, o Estado comumente é definido conceitualmente como a organização político-administrativo-jurídica do grupo social que ocupa um Território fixo, possui um povo e está submetido a uma soberania.

O território abrange, de forma simplória, algumas partes componentes, tais como: o solo, o subsolo, o espaço aéreo, o mar territorial, a plataforma submarina, navios e aeronaves de guerra (em qualquer lugar do planeta, incluindo o território estatal estrangeiro), navios mercantes e aviões comerciais (no espaço livre, ou seja, nas áreas internacionais não pertencentes a nenhum Estado soberano) e, para alguns autores – apesar da existência de inúmeras controvérsias -, as sedes das representações diplomáticas no exterior (embaixadas).

O povo, por sua vez, engloba o somatório de nacionais no solo pátrio e no exterior, não se identificando, pois, com o conceito de população, que inclui os estrangeiros no território estatal.

A soberania, por fim, traduz-se no elemento abstrato, de matiz político, que permite, em última análise, a indispensável concreção aos denominados elementos perceptíveis (povo e território), viabilizando o Estado como inexorável realidade efetiva (vinculação político-jurídica).

Teorias sobre a Formação do Estado

Já, no que concerne especificamente à formação efetiva dos Estados, é importante consignar a existência de uma série de teorias explicativas que, de uma determinada maneira, aludem, ainda que por vias transversas, à origem primeira da sociedade e dos agrupamentos sociais.

De qualquer forma, vale assinalar que os Estados, de modo geral, possuem, alternativamente, ou uma formação originária (partindo de agrupamentos humanos que, desenvolvendo, uma concepção própria de coletividade, estabelecem um território fixo e uma vinculação político-jurídica) ou uma formação derivada (partindo de outros Estados preexistentes) por fracionamento (natural ou impositivo) ou união territorial.

No que concerne exclusivamente à primeira hipótese (formação originária) é que, em última instância, é possível proceder-se a um estudo mais apropriado (e aprofundado) das mencionadas teorias, dividindo-as em dois grupos: as teorias que sustentam a formação natural (não contratual) do Estado (onde a naturalidade é a tônica principal, existindo divergências apenas no que alude à origem), tais como as teorias familiar (matriarcal e patriarcal), de força (conquista), patrimonial e da potencialidade (desenvolvimento interno) e as teorias que sustentam a formação forçada ou artificial (contratual) do Estado (onde voluntariedade inicial e a compulsoriedade posterior são as tônicas principais, existindo, igualmente, divergências no que se refere à origem), tais como a do contrato social, organicista e do equilíbrio social.

(É fundamental observar que a nomenclatura e a própria designação nominal das várias teorias sofrem radicais alterações de autor para autor, sendo, por efeito, importante, neste especial, apenas a compreensão quanto a concepção, basilar e estrutural, da formação dos Estados e não propriamente a correta tradução dos vocábulos designativos das diversas teorias.)

Notas

Teoria Negativista do Impulso Associativo Natural

Independentemente de toda a sorte de considerações pela defesa da tese da imperiosa necessidade humana de se associar, cumpre registrar, em obediência às lições de DALMO DE ABREU DALLARI ( Elementos de Teoria Geral do Estado, 18º ed., São Paulo, Saraiva, 1994, ps. 9-10), que, “opondo-se aos adeptos do fundamento natural da sociedade, encontram-se muitos autores, alguns dos quais exerceram ou ainda exercem considerável influência prática, sustentando que a sociedade é tão-somente o produto de um acordo de vontades, ou seja, de um contrato hipotético celebrando entre os homens, razão pela qual esses autores, de modo geral, são rotulados como contratualista” (ob. Cit., ps. 9-10), destacando-se, nesta categoria, PLATÃO ( A República ), THOMAS MOORE ( Utopia ),  TOMMASO CAMPANELLA ( A Cidade do Sol ) e, principalmente, THOMAS HOBBES (Leviatã ) e ROUSSEAU ( O Contrato Social).

Da Nacionalidade e da Cidadania

O conceito específico de nacionalidade se encontra irremediavelmente adstrito à concepção básica de Nação e, em conseqüência, a tradução própria de identidade nacional, permitindo a construção vocabular do termo povo como um conjunto de nacionais.

Por nacionalidade, compreende-se o status do indivíduo em face do Estado. Em  face do Estado, todo indivíduo ou é ‘nacional’ ou ‘estrangeiro’. O nacional é o sujeito natural do Estado. O conjunto de nacionais é que constitui o povo sem o qual não pode haver Estado (…)” (MANOEL G. F. FILHO, in Curso de Direito Constitucional, 23º ed., São Paulo, Saraiva, 1996, p. 94).

Como a expressão Nação, em essência, deriva do verbo nascere, referindo-se, portanto, ao conjunto de pessoas de mesma origem racial, a idéia fundamental de nacionalidade encontra respaldo, particularmente, nos laços de filiação e, mais especificamente, de consangüinidade (jus sanguinis). Todavia, mais recentemente, o sentido político-jurídico de Nação tem permitido uma tradução mais elástica do termo nacionalidade, abrangendo, neste especial, qualquer vínculo (ou vários deles) em comum entre os habitantes de uma determinada localidade (ou mesmo de uma sociedade organizada), tais como os de natureza religiosa, lingüística etc. Neste particular, a concepção inicial de Nação (e, conseqüentemente, de nacionalidade) passou a abranger um maior espectro de possibilidades, permitindo, desta feita, a noção basilar de nacionalidade adquirida pelo local de nascimento (jus soli), independentemente da existência de laços de consangüinidade com outros originários.

Nacionalidade é a qualidade do nacional, isto é, da pessoa que é integrante de uma determinada sociedade politicamente organizada. A nacionalidade é uma situação jurídica, definida pelo Estado, em relação à qual a pessoa será considerada nacional ou estrangeira. Estrangeiro é aquele a quem o direito interno não atribui a qualidade de nacional. Será apátrida ou heimatlos, se não for nacional de nenhum país. Polipátrida é aquele que é aceito como nacional por mais de um Estado. Além disso, surgirão relações jurídicas distintas quando uma pessoa esteja ou não (como residente ou não residente) em país diverso daquele cuja nacionalidade possui, situações que serão objeto de direito internacional privado. O conjunto de nacionais forma o povo de um país, ao passo que a população será constituída de todos os residentes no seu espaço territorial (estrangeiros, apátridas, etc.). O primeiro conceito é político e o segundo, geográfico” (SÍLVIO MOTTA E WILLIAM DOUGLAS, in Direito Constitucional, Rio de Janeiro, Oficina do Autor, 1996, p. 102).

No que concerne particularmente ao conceito de cidadania, muito embora, em linguagem corrente, se utilizem indistintamente os vocábulos cidadão e nacional, em essência o primeiro caracteriza-se por um status associado ao regime político (forma de associação política), transcendente, portanto à própria identidade nacional originária, e que pode ser traduzido sob a ótica ativa (participação  como eleitor, por exemplo) e sob o prisma passivo (participação como candidato a cargos públicos e eleição, entre outros).

Cidadania também pode ser entendida em termos amplos (conjunto de direitos e deveres que regem e definem a situação dos nacionais) e em termos restritos (poder jurídico do nacional de participar do governo e da administração estatal, votando, sendo eleito, exercendo funções públicas, usufruindo serviços públicos e fiscalizando a atividade estatal (por exemplo: através do ajuizamento de ações populares)).

“Em um sentido amplo, cidadania é o conjunto de direitos e deveres que regem e definem a situação dos habitantes de um determinado país. No sentido amplo ou sociológico, cidadão será o indivíduo que tenha a plenitude do exercício de todos os poderes que lhe são cabíveis em uma determinada sociedade. (…) No sentido estrito, a cidadania refere-se ao poder jurídico do indivíduo de participar do governo, votando, sendo eleito, exercendo funções públicas, usufruindo serviços públicos e fiscalizando a atividade estatal. (…)” (NAGIB FILHO, in Anotações à Constituição de 1988, Rio de Janeiro, Forense, 1989, p. 127).

Conceito de Sociedade

Deve ser consignado, por oportuno, que a expressão sociedade contemporaneamente pode ser traduzida por pelo menos, duas diferentes acepções.

A primeira – como fizemos constar no texto em comento -, é relativa ao agrupamento social inicial (ou primitivo) que, a partir da existência de vinculações em comum, se estabelece para, num momento posterior,  evoluir no sentido de uma forma mais complexa de agrupamento humano, denominada Nação, que abrange o conceito de povo (conjunto de nacionais, com um ou mais vínculos em comum), viabilizando, num momento último da linha evolutiva, o estabelecimento de uma organização político-jurídica fundamental (ou, em outras palavras, uma Constituição), derivada de anterior pacto social, que abarca, por sua vez, a noção básica de soberania (origem do denominado Poder Constituinte, sua expressão máxima), e que, adicionada à prévia existência de um território fixo, gera, finalmente, a idéia básica de Estado.

A segunda acepção, contudo, transcende a noção evolutiva exposta, para permitir traduzir a vocábulo sociedade apenas como um aspecto finalístico do próprio agrupamento humano, independentemente de sua complexidade. Desta feita, existiria, neste sentido particular, a concepção genérica de sociedade (e, em especial, a acepção específica de sociedade política) concomitantemente com a concepção de Nação e de Estado, em duas diferentes vertentes básicas: a sociedade de fins particulares (sociedade simples), em que a associação é voluntária, e a sociedade de fins gerais (sociedade complexa ou política), na qual a associação é, em tese, obrigatória.

“Os agrupamentos humanos caracterizam-se como sociedade quando têm um fim próprio e, para sua consecução, promovem manifestações de conjunto ordenadas e se submetem a um poder, e no tocante à sociedade humana, globalmente considerada, verificamos que o fim a atingir é o bem comum. (…) Em linguagem mais direta, e considerando as respectivas finalidades, podemos distinguir duas espécies de sociedades, que são: a) sociedades de fins particulares, quando têm finalidade definida, voluntariamente escolhidas por seus membros (…) e b) sociedades de fins gerais, cujo objetivo, indefinido e genérico, é criar as condições necessárias para que os indivíduos e as demais sociedades que nela se integram consigam atingir seus fins particulares. (…) As sociedades de fins gerais são comumente denominadas sociedades políticas, exatamente porque não se prendem a um objetivo determinado e não se restringem a setores limitados de atividade humana, buscando, em lugar disso, integrar todas as atividades sociais que ocorrem no seu âmbito. (…) Entre as sociedades políticas, a que atinge um círculo mais restrito de pessoas é a família, que é um fenômeno universal. Além dela existem ou existiram muitas espécies de sociedades políticas localizadas no tempo e no espaço, como nas tribos e clãs. Mas a sociedade política de maior importância, por sua capacidade de influir e condicionar, bem como  por sua amplitude, é o Estado (…)” (DALMO DE ABREU DALLARI, in Elementos de Teoria Geral do Estado, 18ª ed., São Paulo, Saraiva, 1994, ps. 39-41).

Crítica Marxista à Concepção de Estado.

Deve ser assinalado que, consoante a teoria marxista, o Estado é o produto da sociedade em determinado período de sua evolução. A existência do Estado deve-se ao reconhecimento de contradições internas insolúveis, de antagonismo irreconciliáveis. Para evitar que tais contradições e antagonismos, que acabam dividindo a sociedade em classes irreconciliáveis, atirem os indivíduos a uma luta terrível e estéril, “tornou-se necessária uma força aparentemente colocada a cavaleiro da sociedade, força que, moderando o ímpeto das colisões, mantenha a sociedade nos limites da ordem ”. Essa força intrínseca à vida social, mas que vai progressivamente se destacando dela, é o Estado.

Não há, na obra de MARX, construção sistemática da concepção do Estado. Filósofo da economia, ciência das relações de produção sob condições históricas determinadas, sabia MARX que o Estado representa um dos elementos preponderantes na organização material da sociedade. A teoria marxista postula firmemente que o Estado, em cada época histórica, nasce nas classes sociais, que se beneficiam do conjunto das relações dominantes de propriedade. Surge, então, o Estado para proteger essas relações.

Imaginar o Estado como órgão naturalmente mediador entre conflitos, que surgiram do seio de um determinado tipo de relações de propriedade, seria admitir que tais relações constituem dado natural, indestrutível da estrutura social.

Para o marxismo, tais relações são históricas. Daí se segue que o Estado é instrumento do predomínio de classes para o fim especial de manter as relações de propriedade privada. Ele a consagra e protege como instrumento apropriado à defesa do sistema de propriedade.

Ao dizer-se que o Estado é órgão de classe, não significa que seja um órgão sinistro com meras funções opressoras. Tais funções se tornaram mais ou menos violentas, conforme os períodos críticos que o sistema de relações de propriedade atravessa. A conclusão marxista do desaparecimento do Estado é obscura, se não a entendermos como significado do desaparecimento classista do Estado.