O direito administrativo nos Estados Unidos

28 de maio de 2015

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peterDebater o Direito comparado pode ser uma proposta complexa. A natureza do desafio varia conforme se queira comparar (i) sistemas em geral (por exemplo, o Direito Administrativo nos Estados Unidos da América (EUA) e no Brasil); (ii) os grandes temas dessa área, como a revisão judicial de atos e decisões administrativas; ou ainda (iii) regras e práticas específicas do campo, como a remoção de funcionários de agências. Conheço uma brincadeira que visa a simplificar a comparação de diferentes sistemas de Direito que os senhores talvez apreciem.

Na França, tudo é permitido, exceto o que é proibido; na Alemanha, tudo é proibido, menos o que é permitido; na Rússia, tudo é proibido, inclusive o que é permitido; e na Itália, tudo é permitido – especialmente o que é proibido.

Em relação aos EUA e ao Brasil, no tocante ao Direito Administrativo, já não é tão fácil caracterizar seus sistemas jurídicos.

Primeiramente, a definição do que seria Direito Administrativo difere entre nossos dois países. Apesar de ambos os sistemas jurídicos serem relacionados a poderes e procedimentos de órgãos do governo e que afetam interesses fora da competência do Judiciário e do Legislativo, o Brasil define o objeto do Direito Administrativo de forma muito mais ampla que a forma como o vemos nos EUA.

O professor John Bell, da Faculdade de Direito da Universidade de Cambridge, apontou a diferença existente entre a tradição do Civil Law (ou Direito Codificado) e o Common Law (ou Direito Costumeiro) acerca da definição de “Direito Administrativo”. Ele discorre:

Na tradição da Europa continental, o Direito Administrativo […] se preocupa com os poderes e organização dos órgãos executivos do Estado. O uso do termo “Direito Administrativo” pela Common Law funciona mais como um sinônimo de contencioso administrativo […] comumente chamado de “revisão judicial” [de um ato administrativo].

Assim, nos EUA, o Direito Administrativo é mais ligado ao processo de regulamentações e aos processos administrativos em agências administrativas. No Brasil, em contraste, o Direito Administrativo preocupa-se não só com essas funções, mas com a organização, poderes e processos da Administração Pública em geral.

Note-se também o seguinte: nós não achamos necessário definir subcategorias de Administração Pública, tal como direta (centralizada) e indireta (descentralizada), a exemplo do Brasil. Nesse ponto, vale esclarecer algumas diferenças em nomenclatura entre o direito administrativo norte-americano e brasileiro, para afastar o risco de falsos cognatos. Em primeiro lugar, quando falamos em “executive agencies” podemos estar nos referindo tanto aos ministérios quanto às agências administrativas. Em segundo lugar, não se deve confundir o termo “executive agencies” com “agência executiva”, que no Brasil significa uma autarquia ou fundação com um contrato firmado com a Administração Pública para executar uma função específica e é considerada um componente da administração indireta. Nós definimos nosso Direito Administrativo de modo que inclua as “executive agencies” (conforme nós as definimos) e as agências regulatórias independentes, que se aproximam das suas agências reguladoras (como os senhores as definem).

Para nós, as outras entidades que seu direito administrativo abarca tendem a ser reguladas por leis aplicáveis a corporações e associações em geral. Assim, uma “executive agency” é a entidade sobre a qual o Presidente possui pleno poder de nomeação e remoção de seus diretores. Essas “agencies”, como a “Environmental Protection Agency” (Agência de Proteção ao Meio Ambiente), exercem funções regulatórias e, como dito, são incluídas dentro do que consideramos ser objeto do Direito Administrativo. O que chamamos de “independent regulatory agencies” (agências reguladoras), que também são objeto do nosso Direito Administrativo como parte do poder Executivo, existe de modo mais ou menos independente da Presidência, que pode nomear seus diretores, mas que só pode removê-los justificadamente. Um exemplo é “National Labor Relations Board” (Conselho Nacional de Relações Trabalhistas). Não é sempre fácil saber por que algumas “agencies” foram estabelecidas como “executive agencies” ou agências independentes, visto que, em muitos casos, ambos os tipos de agências podem exercer funções regulatórias. O ponto é que, para nós, tanto as “executive” quanto as agências regulatórias estão compreendidas no nosso Direito Administrativo.

Ademais, quando se fala em Direito Administrativo nos EUA – e aqui eu me refiro às leis federais, em oposição às leis estaduais, mesmo que todos os estados possuam legislações processuais administrativas que compartilhem de similaridades com as leis federais –, trata-se de leis essencialmente processuais, não substantivas. No que se refere a essa legislação processual, falamos primeiramente sobre as funções de regulamentação e de resolução de processos administrativos das agências, não sobre como elas são criadas, quais são seus poderes regulatórios, quais seus deveres, quais diretores serão nomeados, qual deve ser o mandato dos seus diretores etc. Claro, nos EUA há várias leis ordinárias que criam agências administrativas que são substantivas em sua natureza, como as leis que criam a nossa Agência de Proteção ao Meio Ambiente ou a “Securities Exchange Comission” (Comissão de Valores Mobiliários e Câmbio), mas essas são classificadas e estudadas separadamente do Direito Administrativo, como as Leis Ambientais e as Leis de Regulação de Valores Mobiliários e Câmbio.

Há outra importante diferença entre os EUA e o Brasil quando falamos em Direito Administrativo. Nós não fazemos muita distinção entre Direito Público e Privado, como é comum na tradição do Civil Law. Nesse sentido, o Professor E. Allan Farnsworth aponta em seu livro “Introduction to the Legal System of the United States”:

A divisão do Direito substantivo em Público e Privado, embora comum, não apresenta a mesma utilidade que a divisão do Direito em substantivo e processual. Como a Corte Suprema dos Estados Unidos afirmou, “Muitas vezes é conveniente descrever as causas como invocando direitos públicos ou privados, e essa cômoda classificação é sem dúvida válida para algumas finalidades. Geralmente, porém, a significação geral e a consequência jurídica de cada termo dependerá de seu contexto e da natureza dos interesses para cuja definição é empregado”. Como não há um sistema judiciário especial para tratamento de matéria de direito público, raramente surge uma ocasião em que a distinção apresenta importância prática. Tem sido dito que o direito público abrange os direitos aplicados por meio do processo administrativo, enquanto o direito privado se refere aos direitos cuja aplicação depende de iniciativa privada por meio dos Tribunais. Isso, porém, restringe o campo do direito público, pois, mesmo o direito constitucional, por exemplo, faz parte do trabalho quotidiano dos Tribunais ordinários, ao resolverem questões entre partes privadas. Talvez haja uma tendência dos advogados a considerar o direito público no sentido clássico de um ramo de direito dedicado ao funcionamento de governo e a regular as relações entre os indivíduos e o governo, enquanto o direito privado se ocupa com os direitos dos indivíduos entre si. Naturalmente, mesmo essa definição é de difícil aplicação ao número crescente de situações em que o Estado intervém ou se envolve em relações entre os indivíduos privados.

O ponto é que, em sua maior parte, nos EUA, as agências administrativas são sujeitas aos mesmos preceitos legais que cidadãos ou entidades privadas. Por outro lado, reconhecemos que existem alguns princípios únicos que se aplicam às agências administrativas. Entendemos, como aponta o Professor Bell, que o núcleo das relações jurídicas de direito público é composto pelas relações entre sociedade civil e Estado, tendo como ponto focal os interesses gerais. Além disso, ressalte-se que, nos termos do Professor Farnsworth, “as relações entre o Estado e seus cidadãos envolvem a autoridade do Estado para impor deveres e fardos unilateralmente, mas também o dever de prover proteção, respeito e participação ao cidadão, e tudo isso em um contexto em que o Estado determina e implementa o bem comum”.

E quanto às fontes do Direito Administrativo nos EUA?

Diferentemente da Constituição brasileira de 1988, a Constituição dos EUA não menciona a Administração Pública (que é o objeto do Direito Administrativo) em nenhum momento. Nossa Constituição estabelece conceitos amplos, como os do Devido Processo Legal e o da Igual Proteção Perante a Lei, que possuem aplicação em virtualmente todos os procedimentos governamentais, incluindo, é claro, o Direito Administrativo. Ademais, nossa Constituição estabelece que o Congresso possui autoridade para editar tais leis se assim julgar necessário e apropriado para cumprir suas funções legislativas, um poder que o Congresso tem comumente delegado para agências administrativas, dentro de limites, regras e regulamentações que implementem estatutos editados pelo legislativo. Entretanto, no que diz respeito à Constituição dos EUA, é só o que há. A Constituição Brasileira de 1988, por outro lado, contém todo um artigo, o artigo 37, que se debruça especificamente sobre a Administração Pública e seus princípios constitucionais.

Há, claro, muitas leis ordinárias editadas pelo Congresso dos EUA que criaram diferentes agências administrativas, começando, em 1887, com a criação da “Interstate Commerce Commission” (Comissão de Comércio Interestadual). Mas não foi até 1946, com a edição do “Administrative Procedure Act” (“APA”, ou Lei de Procedimentos Administrativos), que o Congresso criou amplo estatuto aplicável a virtualmente todas as agências administrativas. Houve algumas peças de legislação ordinária esparsas desde então, incluindo o “Freedom of Information Act” (Lei de Livre Acesso à Informação), de 1966, do qual tratarei mais à frente.

E há, é claro, a jurisprudência que ajudou a moldar e implementar os postulados constitucionais e legais. De fato, o Direito Administrativo nos EUA foi, em grande parte, definido pela jurisprudência, mais especificamente pelas decisões da Suprema Corte, mesmo sendo as decisões das Cortes Federais Regionais de Recursos e até das Cortes Distritais deveras influentes na construção do nosso Direito Administrativo. É importante lembrar que, no que diz respeito às decisões da Suprema Corte, que elas possuem efeito vinculante em relação a todas as outras cortes, e isso inclui as decisões da Corte interpretando o “Administrative Procedure Act”.

O Brasil, em contraste, enquanto possui longa experiência com o conceito de Direito Administrativo, tornou-se muito mais profundamente envolvido com a matéria nos anos recentes, em grande parte como resultado das grandes reformas do aparelho estatal promovidas durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Assim, mesmo tendo tomado emprestado alguns conceitos e termos do sistema norte-americano, algumas importantes diferenças permanecem.

É claro, o Brasil possui uma única jurisdição, a ordinária, que lida com a revisão judicial de decisões administrativas, como os EUA, e ao contrário de outros países como a França que mantém um sistema de jurisdição administrativa à parte e que conta, inclusive, com uma Corte de última instância, o Conselho de Estado da França. Todavia, é importante notar que, no Brasil, há algumas Varas que possuem competência exclusiva sobre determinadas matérias administrativas, como as varas especiais da justiça federal que lidam com assuntos como direito previdenciário e ambiental. Como regra, não temos esse grau de especialização no nosso sistema judiciário.

É também importante ressaltar que muitos dos princípios aplicáveis à administração pública no Brasil – como os princípios da legalidade, imparcialidade, moralidade, publicidade, eficiência e racionalidade – são conceitos que encontram eco no direito norte-americano seja na Constituição (como o direito ao Devido Processo Legal ou ao igual tratamento perante a lei), seja na jurisprudência.

Entretanto, é necessário ser cuidadoso ao supor que esses princípios possuem sentido idêntico ou mesmo parecido em ambos os sistemas. O princípio da proporcionalidade, por exemplo, que constitui um dos principais parâmetros levados em consideração no momento da revisão judicial de decisões administrativas no Brasil. Até que ponto o judiciário pode e deve respeitar a decisão administrativa? Nos EUA, o respeito pela decisão administrativa é bastante considerável. Já no Brasil, o escopo da revisão judicial dos atos administrativos discricionários parece estar se alargando em tempos recentes. Cada vez mais, o controle judicial da discricionariedade administrativa parece ser feito não apenas com base no postulado da legalidade em stricto sensu, mas com base nos princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade.

Por outro lado, de acordo com o ilustre juiz federal e professor de Direito Administrativo Ricardo Perlingeiro, da Universidade Federal Fluminense, o foco do problema não é se o Direito Administrativo brasileiro falha em reconhecer e dar um sentido mais pleno a esses conceitos, mas se trata, sim, de uma questão de capacitação e treinamento de agentes públicos e sua habilidade em apreciar como esses princípios seriam aplicados na prática, tendo em vista as recentes reformas ocorridas.

Finalmente, gostaria de tecer algumas palavras a respeito da atividade regulatória das agências administrativas nos EUA e, então, focar minhas observações principais no processo decisório e na questão da revisão judicial, o que imagino ser de maior interesse para uma audiência composta por juízes e juristas.

As agências nos EUA possuem autoridade para criar regulamentos (em inglês, rule-making). Elas se engajam em uma espécie de processo sublegislativo pelo qual criam regras, regulamentações e diretrizes que pretendem aplicar no futuro – determinações essas que terão efeito vinculativo sobre todas as entidades ou cidadãos aos quais são direcionadas. O público é obrigado pelas regras das agências, assim como as próprias agências. Há, entretanto, alguns requerimentos dispostos na nossa Lei de Procedimentos Administrativos que devem ser obedecidos no processo de formulação dessas regulamentações.

Sob o prisma da Lei de Procedimentos Administrativos norte-americana, deve haver uma notificação pública acerca da proposta de regulamentação antes mesmo de as agências ingressarem no processo de criação de tal regra, devendo tal notificação ser publicada no Registro Federal – uma publicação oficial na qual as regulamentações administrativas federais são publicizadas. Pessoas interessadas têm, então, a oportunidade de participar no processo de criação das normas, incluindo a possibilidade de apresentar dados, relatórios ou até mesmo fazer sustentações orais, em certos casos. Isso se chama regulamentação por “notificação e opinião”. Não é o mesmo que uma audiência formal; apenas é necessário que a agência publique a notificação da regulamentação proposta no Registro Federal e dê às pessoas interessadas a oportunidade de participar. A agência, é claro, deve responder as críticas relevantes, mas, ao final, é ela quem promulgará a versão final das regras em discussão. Se a agência está buscando regulamentar alguma lei, as cortes devem considerável deferência à interpretação dada pelas agências, mesmo se tiverem uma visão diferente do que seria mais razoável.

O conceito de “notificar e discutir” existente em nosso Direito Administrativo tem muito em comum com os requerimentos para consultas públicas no processo administrativo brasileiro. A Constituição brasileira de 1988, em seu artigo 37, parágrafo 3, institucionaliza o conceito de participação pública em decisões administrativas. Isso originou as consultas e as audiências públicas. Com certeza, há diferenças entre Brasil e EUA no que diz respeito às maneiras específicas em que o público participa nos processos administrativos nos dois países, mas nós certamente compartilhamos dos mesmos objetivos de democratizar a burocracia governamental.

No que diz respeito aos processos administrativos, a Lei de Procedimentos Administrativos norte-americana estabelece procedimentos formais. Aqui eu me refiro ao procedimento adversarial (em oposição ao sistema inquisitorial) – ou seja, aquele que envolve a apresentação de evidências a um “Administrative Law Judge” (“ALJ”, i.e., um “quase-juiz” de Direito Administrativo) em audiências que se assemelham a um julgamento da justiça ordinária – no qual indivíduos podem ser negativamente afetados. A esse respeito, a Lei de Procedimentos Administrativos e a jurisprudência foram muito importantes no estabelecimento do direito aplicável.

Dessa forma, em julgamentos administrativos, deve haver:

a)notificação quanto à matéria e às questões controvertidas envolvidas (aviso prévio);

b)apresentação de evidências e argumentos (plena defesa);

c)o direito ao contraditório e outros meios apropriados de produção de provas;

d)o direito à representação por advogado;

e)uma decisão baseada apenas em evidências nos autos;

f)um registro completo, não apenas documental, mas de todos os testemunhos e relatórios apresentados no processo; e

g)motivação para a decisão da agência, por escrito.

Isso não quer dizer, entretanto, que haverá uma audiência em todos os casos, especialmente os de minimis (i.e., de mínima ofensividade). As partes podem – e frequentemente assim o fazem – renunciar o direito de serem ouvidas.

Gostaria de tecer mais algumas palavras sobre os ALJs. Meu colega na Faculdade de Direito da American University Professor Jeffrey S. Lubbers conversou sobre isso quando esteve diante dos senhores uns poucos anos atrás. Permitam-me revisitar alguns pontos-chave.

A Lei de Procedimentos Administrativos norte-americana estabelece, dentro de várias agências, um grupo de servidores independentes chamados de “Administrative Law Judges”. Esses, vamos chamá-los “juízes”: conduzem audiências, administram juramentos, tomam testemunhos e fazem determinações legais e factuais. Eles, então, emitem decisões recomendando ao chefe da agência – seja uma pessoa ou um conselho – o que a agência deveria decidir em determinados casos. A Lei de Procedimentos Administrativos estabelece que a parte “tem direito a apresentar seu caso por evidências orais ou documentais” e a conduzir o apropriado contraditório de outras testemunhas. Regras estritas sobre provas não são normalmente aplicadas como, por exemplo, a regra sobre os depoimentos “por ouvir dizer”, os quais, em um processo normal, são afastados, valendo apenas os depoimentos prestados durante o julgamento. Na via administrativa, entretanto, depoimentos prestados fora do julgamento, inclusive “boatos”, são válidos, desde que confiáveis.

Tenham em mente: ALJs NÃO são parte do Poder Judiciário. Enquanto são encontrados dentro de agências específicas, como, por exemplo, as ligadas ao Poder Executivo, eles são essencialmente independentes das demais funções da agência.

Sob o prisma da Lei de Procedimentos Administrativos norte-americana, os ALJs são protegidos de influência política e não podem ser sujeitos à supervisão de servidores que investiguem ou processem os casos. Os servidores das agências não podem interferir no trabalho desses juízes. Comunicações ex parte com os ALJs são proibidas. Os ALJs são escolhidos de um registro central de candidatos elegíveis, têm salários fixados por lei e são isentos de avaliações de desempenho, além de só serem passíveis de demissão por justa causa após o devido processo disciplinar.

Dito isso, os ALJs nos EUA parecem-se muito com os juízes federais distritais. ALJs são juristas que, no final das contas, conduzem julgamentos. Mas, mais importante, eles não possuem posto vitalício e não podem, via de regra – e sem a devida ordem emanada pelas cortes distritais – aplicar sanções ou executar suas decisões.

Caso não seja interposto recurso, a decisão inicial dos ALJs se torna a decisão da agência. No caso de recurso, entretanto, o conselho diretor da agência possui todos os poderes para proferir nova decisão. A agência pode também receber novas provas (ao contrário de uma corte federal de segunda instância) e, ao analisá-las, pode reafirmar a decisão prévia dos ALJs ou rejeita-la e modificá-la. A agência pode reverter a decisão dos ALJs mesmo não se tratando de uma decisão errada.

O colegiado da agência deve expor suas conclusões por escrito, incluindo suas razões e o direito aplicado ao caso e, em sua decisão final, se manterá a sanção, se estabelecerá nova sanção, se absolverá ou se negará a absolvição previamente estabelecida. Ademais, é importante notar que a decisão da agência – incluindo suas interpretações acerca de leis e diretrizes – se torna precedente para casos semelhantes.

Quanto à revisão judicial, a Suprema Corte declarou, no caso Marlow v. Collins, que “A revisão judicial de atos administrativos é a regra e a impossibilidade de revisão é a exceção que deve ser demonstrada”.

A maior parte das legislações federais que criam agências administrativas aborda explicitamente a possibilidade de revisão judicial dos atos administrativos. Entretanto, mesmo que tal dispositivo não esteja explícito, isso não significa que há a intenção de bloquear a análise do Judiciário. De modo geral, a parte que se sentir prejudicada por uma decisão da agência deve exaurir todas as vias administrativas antes de acionar a justiça. Então, se, por exemplo, uma parte se mostra insatisfeita com uma decisão dos ALJs, ela deve apelar para a última instância da agência antes de acionar o Judiciário. Outra importante observação é que as revisões judiciais dos atos administrativos são, como regra, conduzidas nas cortes federais regionais de apelos, e não nas cortes federais distritais.

Quanto ao escopo da revisão judicial, deve-se ter em mente que se trata de um procedimento recursal e, de acordo com a prática dos EUA (diferentemente do que se passa no Brasil), recursos devem se limitar ao que foi apresentado na via administrativa. A Corte recursal não poderá receber provas adicionais e poderá apenas considerar aquelas que foram apresentadas na via administrativa. Caso verifique-se a necessidade de novas provas, remeter-se-á o caso à agência para que sejam produzidas lá.

Dito isso, os tribunais tratam os atos administrativos com grande respeito, devido à expertise da agência. Assim, a agência é presumida como expert, não o Juiz leigo.

Dessa forma, as cortes federais só revisam as decisões administrativas para determinar se elas são suportadas por “evidências substanciais”. Essa avaliação não aborda a correção da decisão em si. Tudo que é necessário é que as evidências sejam tais que seria razoável aceitá-las como base para a decisão da agência, mesmo que os julgadores possuam diferente ponto de vista quanto ao teor da decisão.

Isso é verdadeiro no que diz respeito aos fatos, mas, em certa medida, também é verdadeiro no que diz respeito ao alcance da revisão judicial das interpretações da agência administrativa quanto ao teor das leis.

No caso Chevron v. NRDC, 467 US. 837 (1984), a Suprema Corte estabeleceu um procedimento de duas etapas no que diz respeito à análise da autoridade das agências para interpretar leis. Visto que o Presidente e o Congresso tomam as decisões políticas, se a legislação é clara e objetiva, a agência deve segui-la. Entretanto, se a lei for menos clara, as cortes são orientadas a considerar com significativa deferência qualquer interpretação razoável que a agência confere à lei. Resumindo, o precedente estabelecido em Chevron atribui às agências autoridade significativa para interpretar a lei e exercer sua discricionariedade.

Mesmo assim, ainda há resistência por parte de algumas cortes a esse respeito e pode haver mais envolvimento do Judiciário de forma mais ativa hoje em dia, particularmente quando as decisões administrativas afetam direitos fundamentais, como os direitos à vida, à saúde e à liberdade. Cidadãos, afirma-se, precisam ser protegidos de arbitrariedades da administração e, portanto, há um clamor por um escrutínio maior dos atos administrativos discricionários.

Ainda assim, o caso Chevron permanece como principal parâmetro para a revisão judicial.

Por último, devo tecer algumas palavras sobre a Lei de Livre Acesso à Informação nos EUA, promulgada em 1966 e codificada como parte da Lei de Procedimentos Administrativos. Esse estatuto federal, aplicável às agências administrativas federais, dá o direito a qualquer pessoa, sem exigir qualquer requisito, de acessar arquivos e documentos governamentais. As agências devem publicar informações relativas à sua organização, funções, procedimentos e diretrizes, documentos sigilosos e dados financeiros, arquivos de pessoal, relatórios médicos e similares que devem ser mantidos caso surja a necessidade de sua verificação em investigações.

O propósito do estatuto é reverter a atitude autoprotetiva das agências. Agora, apenas informações expressamente isentas pela Lei podem ser mantidas em sigilo.

O Brasil, é claro, possui a Lei de Acesso à Informação, de número 12.537, de 18 de novembro de 2011, em vigor desde 2012. A Constituição brasileira afirma, de fato, o direito fundamental do acesso à informação, enquanto a Constituição dos EUA é silente nesse aspecto. No Brasil, a lei se aplica a todos os poderes e esferas federativas. Aqui existe uma diferença muito importante. A Lei de Livre Acesso à Informação dos EUA se aplica somente às “executive agencies” federais (como definido anteriormente), mesmo que existam algumas legislações estaduais similares, não sendo aplicada ao Legislativo ou ao Judiciário. Os procedimentos para obtenção de informações no Brasil foram descritos como fáceis e intuitivos mas, ao mesmo tempo, como nos EUA, há exceções à possibilidade de fornecimento de informações, como as matérias de interesse público crítico (e.g., informações que possam por em risco a integridade territorial, saúde pública e a segurança do país). Além disso, na esfera privada, há exceções à lei no que diz respeito aos segredos industriais e há a previsão (e isso parece incrível para um observador americano) de fornecimento da folha salarial de servidores públicos.

Concluo com uma menção às críticas direcionadas ao Direito Administrativo hoje em dia.

As agências administrativas nos EUA regulam virtualmente todos os aspectos da vida do americano, inclusive a comida que comemos, o ar que respiramos, a água que bebemos. Embora eu reconheça que no Brasil o “quarto poder” se refere à Mídia, nos EUA diz-se, justificadamente, que as agências administrativas representam um “quarto poder governamental” (para além da tradicional divisão tripartite de poder), visto que suas atividades em regular a vida cotidiano são tão extensivas.

Entretanto, desde o início do Direito Administrativo nos EUA, com a expansão do aparato regulatório, há uma divisão de opiniões quanto ao papel das agências administrativas. Muitos acreditam que a regulação por parte do governo de vários aspectos da administração pública é um desenvolvimento necessário para lidar com as complexidades da vida moderna. Isto é, muitas pessoas pensam que esse desenvolvimento é necessário para conter abusos na iniciativa privada e nas suas práticas – seja pelo controle dos preços na indústria ferroviária, pelas intervenções no mercado de capitais, seja pela promoção dos direitos do consumidor e quanto à preservação do meio ambiente.

Por outro lado, diz-se que as agências administrativas seguem um caminho perigoso, que pode resultar – e eventualmente resulta – em poder absoluto, contrário ao espírito da Constituição. De fato, há não muito tempo, um painel público foi organizado pelo Cato Institute, um think tank conservador e libertário, perguntando “seria o Direito Administrativo ilegal?”, no qual um professor da Faculdade de Direito da Columbia University defendera que, de fato, o Direito Administrativo seria ilegal!

Os críticos argumentam (e isso inclui a “American Bar Association” em mais de uma ocasião) que a delegação de poderes para as agências administrativas – tanto no aspecto normativo quanto no aspecto decisório – seria inconstitucional por violar o postulado da separação dos poderes. Ao mesmo tempo, há críticas no sentido de que o Executivo, mais precisamente o Presidente, tem interferido em várias das decisões das chamadas agências independentes, o que também é considerado impróprio.

Vale ressaltar que foram impostos controles, pelas leis, às agências administrativas nos últimos 30 anos. O “Office of Management and Budget” (Departamento de Planejamento e Orçamento), que data do governo Reagan, agora revê as propostas de regulamentações de pelo menos algumas agências sob o prisma do custo-benefício quando o impacto de dita regulamentação pode superar os US$ 100 milhões. Em 1995, o Congresso passou o “Unfunded Mandates Reform Act” (Lei de Reforma dos Mandatos não Financiados), que obriga agências a fornecerem informações ao público quanto ao custo dos projetos e suas regulamentações e a verificar se há alguma outra alternativa mais acessível e menos dispendiosa.

O debate sobre o papel do Direito Administrativo permanece acalorado e atual. O Presidente Obama, por exemplo, foi criticado por interferir nas decisões da Receita Federal e por fazer indicações de interinos ao Conselho Nacional de Relações Trabalhistas e à direção da “Consumer Protection Agency” (Agência de Proteção ao Consumidor) quando o Congresso ainda estava em sessão (mesmo que em sessão por pouco tempo em todos dias precisamente para bloquear as indicações do Presidente). Fala-se, inclusive, no Congresso processar o Presidente devido às ações executivas que ele tomou no que diz respeito ao “Affordable Care Act” (Obamacare).

Ainda assim, apesar das fortes críticas, o Direito Administrativo atual já se tornou parte da estrutura governamental. É, portanto, altamente improvável que haverá uma mudança nas práticas públicas que essencialmente sustentam a regulação administrativa hoje em dia e que a sustentará no futuro.

NOTAS ___________________________

1 Professores e magistrados convidados participaram de uma série de palestras em um seminário promovido pela Escola de Magistratura do Tribunal Regional Federal da 4a Região (Emagis), em setembro de 2014. Com a coordenação científica dos desembargadores federais Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz e Ricardo Teixeira do Valle Pereira, as conferências foram voltadas a magistrados federais e estaduais, membros do Ministério Público, estudantes, servidores e demais operadores do direito.

Um dos participantes do evento foi o magistrado norte-americano Peter J. Messitte, juiz federal distrital dos Estados Unidos pelo estado de Maryland, que falou sobre a experiência do Direito Administrativo no seu país, ora transcrita.